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Mulheres protagonizam um mundo em evolução


Elas iniciaram o processo de transição de gênero e voltaram atrás

A tradutora Luck Palhano - Arquivo Pessoal
A tradutora Luck Palhano Imagem: Arquivo Pessoal

Luiza Souto

Colaboração para Universa

15/06/2018 04h00

Ser ou não ser foi uma questão para Luck Palhano por longos 13 anos.

A tradutora, que nasceu menina, a partir dos 18 anos, perseguiu um caminho de traumáticas mudanças no corpo para virar homem. Injetou, por conta própria, testosterona no corpo, teve os seios retirados de maneira clandestina - e os mamilos necrosados – e consultou médicos para tentar retirar o útero. Só que, num determinado momento dessas provações, quando tinha 31 anos, Luck começou a se sentir mal com o processo. As agressivas intervenções, psicológica e fisicamente não faziam mais sentido. E Luck decidiu parar a transição de gêneros. 

Não fosse a decisão, per si, suficientemente dolorosa, Luck teve de enfrentar uma outra difícil e inesperada consequência negativa: ameaças de morte de pessoas trans, que a acusavam de “traidora” e de “fingir ser homem”. A experiência dessas batalhas vai agora virar um livro, escrito pela tradutora.

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Nascida em Recife e única negra de dois irmãos brancos, Luck diz que se identificou como bissexual na adolescência. Vaidosa na época, aflorou trejeitos femininos ao morar com uma tia, na Itália. Chegou a tomar aulas de maquiagem. Mas foi na Europa, que a vontade de mudar de gênero aflorou. Amante dos patins de quatro rodas, o roller, adotou roupas mais confortáveis ao esporte e aboliu de vez o salto alto. Cortou os cabelos e foi confundida com um menino. Gostou da ideia.

“Fui gostando dessa transformação. Sentia que ela me dava autonomia”, conta Luck, hoje aos 33 anos, coçando a barba por fazer.

A importância da avaliação psiquiátrica

O psiquiatra Alexandre Saadeh, coordenador do Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual, do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas (HC), em São Paulo, frisa a importância da avaliação médica e psiquiátrica antes de qualquer procedimento de readequação de gênero, justamente para não haver arrependimentos nem problemas de saúde.

“Existem muitos quadros psiquiátricos que podem ter como manifestação uma questão de identidade de gênero. Eles podem, inclusive, fazer com que alguém ache que é transexual ou travesti, sem que isso seja a realidade. A distinção é muito importante. Se for transexual, a mudança corporal é muito importante; se for travesti, nem tanto”, explica.

Feridas profundas, cirurgia ilegal e expulsão do consultório

Na época em que Luck começou a transição tudo era feito ainda na clandestinidade – mais do que nos dias de hoje. Os hormônios masculinos que usava, conseguia na academia de ginástica, e os seios eram disfarçados por apertadas faixas que resultaram em feridas profundas na pele.

Os efeitos estéticos dos remédios apareceram em seis meses. Os problemas de saúde, que atacaram principalmente seus pulmões, segundo Lucky, perduram até hoje, três anos após interromper a hormonização.

“Fiz isso tudo por uma necessidade de que os outros tivessem uma leitura masculina de mim. Quando você olha uma pessoa com barba, não vai duvidar de que é um homem. E parar de menstruar também é uma grande questão para o trans”, justifica ela, que nunca conseguiu se livrar dos pelos que adquiriu no corpo.

A cirurgia de retirada dos seios aconteceu em 2008, também de forma ilegal. Um médico amigo, que cobrou R$ 6 mil pelo procedimento, sequer fez seu prontuário médico e a liberou do hospital logo após o ato, para não ser pego.

“A clandestinidade me empurrou para a luta, para brigar por um atendimento mais humano para a pessoa trans. Na época, cheguei a procurar um endocrinologista para me ajudar na transição; mas ele me expulsou do consultório”, diz Luck.

Grupos trans se sentiram traídos

Durante o processo de transição, Luck participou da fundação do Instituto Brasileiro de Transmasculinidade (IBRAT) e da primeira Associação Brasileira de Homens Trans (ABHT). O primeiro encontro nacional do grupo aconteceu em 2012, com oito integrantes. No de 2015 compareceram cerca de 200. Segundo Luck, a ideia era investir em pesquisas; tais como as que descobrissem os efeitos a longo prazo do uso de hormônios e também do binder, o colete usado para disfarçar os seios.

Por causa de todo esse ativismo, não foi compreendida quando decidiu parar a transição. Mesmo explicando seus motivos, recebeu ameaças de morte, foi acusada de “fingir ser homem” e de ter se tornado feminista radical.

“Eles se sentiram traídos. E ficaram com medo de perder algumas garantias de direito”, justifica.

Luck insiste que nunca pretendeu deslegitimar o movimento trans, mas que cada um tem sua vivência. No caso dela, pontua, as questões emocionais, por exemplo, não se resolveram com a transição de gênero. 

“O movimento trans é válido. Devemos olhar para essas pessoas, porque elas estão morrendo, sofrendo por falta de emprego e caindo na prostituição. Perdi muitas amigas trans”.

Luck chegou a fazer uma vaquinha virtual para se submeter a uma cirurgia de reconstrução dos seios e sessões de depilação a laser. Arrecadou R$ 935 dos R$ 4 mil desejados e conseguiu apenas fazer algumas sessões de laser no rosto. Sua pele, no entanto, não reagiu bem.

“Não queria mais ser lido como homem e, para isso, precisava que me vissem como mulher”, explica ela, que hoje não deseja fazer nenhuma intervenção no corpo.

“Uma pessoa preta em diáspora”

Mesmo identificado como homem trans, Luck conta que viveu e presenciou as mais diversas faces do preconceito. Nunca foi vista conforme desejava e identificava discursos machistas dentro do movimento. O homem trans, segundo ela, repete discursos machistas, e a mulher trans se vitimiza.

“Isso é performance de gênero”, analisa.

Luck respira fundo quando é instada a identificar seu gênero. Ela não pronuncia mais seu nome ou sexo, desde a mudança.

“Hoje não reivindico o lugar de homem. Nunca fui um. Jogo para as pessoas. Meu nome ou meu sexo são as coisas mais difíceis de se responder. Eu me identifico como uma pessoa preta em diáspora”.

Tentativa de suicídio

Natural da região Norte do Brasil, a universitária Annanda Mello, de 21 anos, não passou pelo processo de hormonização e nem por cirurgia, mas escondia os seios tal qual Luck, e adotou a identidade masculina por dois anos. Até tentar o suicídio.

Annanda conta que nunca esboçou traços femininos. E que as cobranças acerca da sua falta de trejeitos fizeram com que ela mesma questionasse sua sexualidade. Para a universitária, o mal-estar em relação ao gênero ocorre a partir de imposições, algumas delas, externas.

“É um problema uma mulher não performar feminilidade em uma sociedade que tem tanta imposição em cima disso. Ser homem acabou sendo mais fácil, mas, com o tempo, vi que eu estava num caminho errado, de fuga”, diz ela.

Annada diz que se sentiu pressionada pelo movimento LGBT a passar pela transição de gênero, e que o processo acarretou num ódio ao próprio corpo.

“Começou com situações leves como: ‘Você não quer que eu te chame no masculino?’, até chegar no pior dos comentários: 'Ela não assume a transexualidade’. Foi tanta imposição do meu meio social que me vi na obrigação de fazer a transição. Mas ela foi triste demais. Eu comecei a adoecer emocionalmente”. 

Annanda tentou o suicídio, tomando remédios, após chegar ao estágio máximo do ódio ao corpo. Como Luck, adquiriu sérios problemas de pele ao tentar esconder os seios. No lugar de binder, usava fita adesiva. Introspectiva, não procurou ajuda médica e preferiu se isolar.

“Em outros países, pessoas que sofrem de disforia de gênero têm acompanhamento psicológico, psiquiátrico e jurídico. No Brasil, a carência desses cuidados é absurda; o que faz com que cresça muito o número de pessoas que se arrependem da transição”, avalia.

A estudante conta que todo o suporte que recebeu de pessoas trans para transicionar sumiu durante o caminho inverso. Segundo Annanda, pessoas do movimento LGBT a acusavam de negar sua transexualidade, e consideravam uma ofensa falar sobre destransição. “Essa é a parte que mais me dói”.

Annanda diz que, hoje, não esconde mais os seios, e que não tem a sexualidade definida. “Eu sigo pesquisando sobre esse assunto”, diz Annanda, que se relaciona com uma mulher.

Pesquisadora luta contra “naturalização” da transição de gênero

Estudiosa do tema, a jornalista carioca Eugenia Rodrigues critica o que chama de naturalização da transição de gênero, e trava uma batalha contra a hormonização de crianças. Suas análises seriam debatidas na XI Semana de Psicologia da Universidade Federal Fluminense (UFF), nos primeiros dias deste mês. Seriam, porque na véspera do evento, foi desconvidada pela faculdade devido a pressões de grupos LGBT, conforme relata. Para eles, conta Eugênia, seu discurso é transfóbico, vai contra a luta trans e, por isso, não deveria ser propagado.

Em nota divulgada, a UFF atestou o recebimento de diversas manifestações contrárias à presença da jornalista e cancelou as palestras que ela faria.

Eugênia participa do debate feminista desde 2014, ano em que começou a se incomodar com o discurso sobre "crianças transgênero" na mídia. Ela considera o transativismo um "movimento violento".

"O debate sobre o tema, que é urgente e necessário, está sendo silenciado por meio de ameaças, censuras e até agressões físicas. Precisamos nos engajar num diálogo aberto e racional sobre as consequências das hormonizações e cirurgias. As crianças vão cobrar mais tarde o que estamos fazendo com elas", analisa. “Acredito num caminho de aceitação e respeito do corpo”.

Reversão: “a pessoa não volta a ser quem e como era”

O entendimento sobre ser ou não uma pessoa trans se dá a partir da puberdade, diz Alexandre Saadeh, do HC. Na infância, a pessoa não passa por intervenções, apenas, acompanhamento.

O Ministério da Saúde estabelece que a idade mínima para procedimentos ambulatoriais como hormonioterapia aconteçam a partir dos 18 anos. Para cirurgia, a idade mínima é 21. Antes dos 18, atenta Saadeh, são utilizados bloqueadores da puberdade. Ele garante que quando há acompanhamento médico é raro a pessoa apresentar problemas de saúde.

“O diagnóstico - que não significa que haja doença - é fundamental para não haver arrependimentos”.

Para as cirurgias de redesignação de gênero são dois anos de acompanhamento psiquiátrico e psicológico. Saadeh diz nunca ter atendido pessoas querendo reverter o processo.

“Temos muito cuidado com os diagnósticos e as indicações de intervenções hormonais ou cirúrgicas. Não é uma questão estética. É sério e muitas intervenções não são reversíveis. O custo de uma "reversão" é alto e a pessoa não volta a ser quem e como era”.