"Sou um preto, de 16 anos"

Regina Casé se sente assim, também uma "neoabolicionista" e fala como dá "um puta trabalho" pro maquiador

Natacha Cortêz Da Universa
Gabo Morales/Universa

Você já pode ter pensado que o modo como Regina Casé leva a vida - entre a favela e o Leblon - não é lá muito fácil de engolir. Por que uma artista do primeiro escalão da Globo, com grana e amigos do naipe de Caetano Veloso e Fernanda Montenegro escolhe subir o morro para almoçar num domingo?

Porque Regina "faz tipo", diriam alguns. Fala que gosta de pobre para criar um personagem e, com ele, ganhar programas na TV, papéis em filmes e, quem sabe, virar garota-propaganda de algum produto popular. Essa resposta a artista ouve há uns vinte anos. Porque ela gosta, pode ser uma outra resposta. E gosta, porque o caldeirão de afeto, política e cultura que aprendeu com Caetano, bancado pelo dinheiro que ganhou da Globo e moldado pelo que a fama a proporciona faz de Regina alguém capaz de identificar e gozar as delícias que existem em todo mundo e em todo canto. Essa é a resposta certa, ela informa.

No fim do ano, Regina estreia um novo programa, "Enlouquecendo o Algoritmo", nome provisório, que trata da nossa relação com a tecnologia. Esta será sua sétima atração na TV. Em seu currículo constam ainda 21 filmes, 19 especiais, nove séries, seis novelas, seis peças de teatro e três seriados. Os algoritmos mais preciosos de Regina são Roque, o filho de cinco anos e Benedita, a filha de 28. Falar deles a faz chorar de amor e alguma dor. "Ouço coisas terríveis, do tipo: 'É uma graça esse menino que você pegou pra criar'", conta Regina, sobre o que falam de Roque. 

Aos 64 anos, casada com o homem "que mais ama" - que quase perdeu, numa queda de cavalo - e cercada de um milhão de amigos (sim, Roberto Carlos é um deles), Regina reconhece ser "privilegiada", ataca quem a chama de "farsa" e contabiliza acertos e perrengues na carreira. 

"Regina só anda com preto, pobre e favelado"

Não-racista, antirracista e neoabolicionista

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Há quem diga que você se aproxima de pobres pra criar uma persona. Como vê essa crítica?

Cansei de ouvir: 'A Regina diz que gosta de favela, mas mora no Leblon'. Mais do que uma crítica, parece que se está descobrindo uma farsa sobre mim. Agora me diga: por que você não pode ficar amigo da sua manicure? E por que não posso fazer isso morando no Leblon? Não tenho vergonha de onde vivo, nem do dinheiro que tenho. Pra eu gostar da favela sou obrigada a me mudar?!

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Você vê alguma mensagem velada nessa fala?

Vejo um preconceito contra o outro, com as pessoas da favela. E tem nessa fala uma intenção de separar, de não deixar ter a comunicação entre os diferentes. Que é justamente só o contrário do que eu quero e do que faço. Se você ficar amiga da sua manicure, não é pra ter sua conta de diversidade alcançada. É porque ela é engraçada pra caramba. Não basta não ser racista. Você tem que ser antirracista, neoabolicionista.

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Você se considera branca?

Vejo os privilégios que tenho no Brasil por ser considerada branca - o que parece uma piada. Ninguém pode dizer que sou só branca. Tem até uma história curiosa sobre isso: quando me convidou pra fazer a (empregada doméstica) Val, do filme 'Que horas ela volta?', a (diretora) Anna Muylaert diz que viu em mim alguém que é preta, branca e índia. Mas, no fim das contas, 80% desta pessoa foi colonizada por africanos. Tudo que tenho de melhor, aprendi com eles.

80% desta pessoa foi colonizada por africanos. Tudo que tenho de melhor aprendi com eles.

Regina Casé

Arquivo pessoal Arquivo pessoal

"Uma graça o menino que você cria"

Aos 64 anos, Regina é mãe de Benedita, de 28, de Roque, que tem cinco, e avó do Brás, que está com 10 meses. A experiência de ter uma filha adulta ao mesmo tempo que é mãe e avó de crianças coloca a apresentadora num posto avançado de observação da maternidade. 

"Não digo que tem sido fácil. Mas, que com certeza, estou sendo uma mãe melhor do que fui para a Benedita. Eu era apavorada, superprotetora, tinha angústia em dividir meu tempo entre trabalho e cuidar de filho. Hoje, sou bem mais suave".

Roque, filho do casamento com o cineasta Estevão Ciavatta, de 50 anos, foi adotado quando tinha quatro meses de idade. Submetida aos emocionais e fisicamente complicados tratamentos hormonais para engravidar, ao saber, depois de quatro gestações perdidas que só seria mãe se usasse óvulos doados, Regina teve uma alumiação: "Entre adotar o óvulo de outra pessoa e adotar uma criança, que era outra coisa que eu sempre quis, preferi, claro, a segunda opção".

Recentemente, Regina se posicionou em um post no Instagram sobre o que chama de "insistência da mídia em enfatizar" que Roque é seu filho adotivo. "Ninguém fala "o filho que veio sem querer" ou "o filho que a fulana teve por doação de esperma". Se os filhos chegam de tantas maneiras, por que só mencionam "filhos adotivos"?

A adoção ainda é esteio, segundo ela, para outras formas de hostilidade. "Ouço coisas terríveis, do tipo: 'uma graça, esse menino que você pegou para criar' e 'tão bonito esse seu gesto de ajudar uma pessoa'. As pessoas não percebem o quanto isso é preconceituoso?"

"Parece que caiu um raio de amor"

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A celebridade mais "conservada"

  • Ter 64 anos te traz alguma chateação?

    Comecei a ver como isso estava me afetando. A gente acha que fez grandes conquistas feministas, mas a mulher ainda é pautada na idade de ter que casar e de ter filho. Você vê pessoas falando de uma mulher com 70, 80 anos: 'Nossa, ela deve ter sido linda'. Não, gente, ela é linda! Linda na idade dela. Isso sem falar na cobrança por plásticas o tempo todo. A barra é pesada.

  • E planeja fazer?

    Acho que uma hora vou ter que fazer, né, gente? Sou uma mulher da televisão e, confesso, tem um monte de coisa que me incomoda. Não quero, por exemplo, que me filmem de perfil, pra que não fique este queixo duplo aqui.

  • Já tentou botox, preenchimento?

    Nada. Acho que zero bala como eu, só a Laura Cardoso e a Cássia Kiss. Mas eu não estou me vangloriando. Isso é mais medo. Medo de ficar com a sobrancelha lá em cima, parecendo o diabo. De me estranhar no espelho. Mas olha que paradoxal: fui eleita a celebridade mais "conservada". Saiu até na [revista] "Veja".

  • E concorda com o título?

    Eu o entendo. É a questão do movimento. As caras e bocas, o peito que mexe quando eu corro, meu cabelo que não tem aplique e que por isso posso jogar de um lado pro outro sem me preocupar. Isso fica jovial. Fica natural.

"Nossa, ela ainda tá enxuta"

Quase ninguém se sente com a própria idade. Mas meu caso é mais grave. Me sinto um menino. Um menino preto de 16 anos.

Regina Casé

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"Estevão foi julgado como um aproveitador"

São 22 anos ao lado do diretor; o quarto e mais duradouro casamento de Regina

"Casei quando tinha 43 anos, e meu marido, 27. Quando eu tinha 15, não podia namorar o Estevão porque afinal, ele tinha meses. Isso é uma limitação estrutural. O resto, não é."

Quando se apaixonaram, Regina estava casada com o artista plástico Luiz Zerbini, o pai de Benedita, havia 15 anos. 

"Teve quem passou um tempo sem falar comigo por considerar a união com Estevão uma maluquice. Ele foi julgado como um aproveitador, que estava dando o golpe do baú. Não que ele não tivesse dinheiro, mas alguém de 27 anos nunca ia ter a grana que eu tinha", conta.

Regina diz que hoje "gosta de rir da situação". "Estevão construiu a carreira com uma produtora genial, que foi a primeira a usar carbono neutro (uma série de técnicas que reduzem e compensam emissões de gases de efeito estufa). Juntos, nós plantamos três florestas e matas ciliares. Ele está fazendo agora uma série sobre a vida do Santos Dumont. Cresceu tanto, graças ao talento próprio."

O diretor sofreu um grave acidente em 2008 e, por pouco, não ficou tetraplégico. Estevão caiu de um cavalo durante um passeio no sítio do casal, em Mangaratiba, no Rio de Janeiro. Ele passou por uma delicada cirurgia para descompressão da coluna e vários meses de fisioterapia para recuperar os movimentos.

Regina ficou um ano afastada da televisão, quase que exclusivamente, cuidando do marido. "Nem por um segundo" diz ter deixado que o medo de que ele morresse invadisse seus pensamentos. "Eu só pensava: o que pode ser feito hoje para ele ficar bem? Nunca duvidei que ele se recuperaria. Essa crença me fortaleceu".

Apenas três meses antes do acidente, Regina havia perdido o outro homem que mais amava, seu pai, Geraldo César Casé, produtor, escritor e diretor na Globo. O trabalho mais emblemático do pai foi a adaptação para a televisão das histórias do "Sítio do Picapau Amarelo", de Monteiro Lobato, entre 1977 e 1986. Regina fez uma participação no programa. "O sítio era de verdade, e ficava em Guaratiba, no interior do Rio. Eu ia com ele, nos fins de semana, dar comida pras vacas e cuidar do lugar. As lembranças daquele tempo são muito fortes em mim."

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"Apoiar político traria ódio e oposição para o meu trabalho"

Apesar de ter amigos envolvidos com a política, Regina diz que não faz campanha, nem declara voto

"Nunca fiz campanha política explícita. Quando tive amigos se candidatando [Regina é próxima de políticos como Eduardo Paes, ex-prefeito do Rio e de Fernando Gabeira, ex-deputado federal], ficava tentada, mas não declarava meu voto. Acho que uma declaração, ainda mais hoje em dia, pode trazer ódio, oposição e me atrapalhar de esticar a corda e trazer o outro para perto. Os nossos trabalhos "Programa Legal" (1991), "Brasil Legal" (1995), "Cidade dos Homens" (2002) e "Esquenta" (2011) são sempre altamente politizados. Essa é minha forma de fazer política." 

Outra questão delicada para Regina envolve o episódio da morte de Douglas Rafael Pereira, dançarino do "Esquenta". O rapaz foi assassinado durante uma ação militar do Pavão-Pavãozinho, no Rio, em 2014. Regina levou a mãe de Douglas ao programa. Maria de Fátima Silva, dias depois, disse: "A Regina Casé é uma farsa. Ela é uma artista, é uma mentirosa. Alguém jogou na minha bolsa uma agenda do programa escrita à mão, na qual dizia: Não pode falar que foi a polícia, solta as fotos sensacionalistas para a mãe chorar'. Em nenhum momento vocês viram a Regina Casé falar de violência contra a polícia. E toda vez que eu mencionava, era cortada". 

O assunto maltrata emocionalmente Regina até hoje. E a apresentadora não fala sobre ele. 

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Tina Pepper, Cabocla Jupira e "Sete Gatinhos"

Dos trabalhos marcantes como atriz estão a novela "Cambalacho" (1986), em que interpretava a modernete Tina Pepper, o humorístico "TV Pirata" (88 a 92), em que fazia, entre outros personagens, a Cabocla Jupira, e dois filmes, em especial: "Sete Gatinhos" (80), pornochanchada baseada na obra de Nelson Rodrigues, e "Que horas ela volta?" (2015), eleito um dos cinco melhores estrangeiros do ano pela "National Board of Review", respeitada organizações americana de crítica.

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"Sete Gatinhos": o corpo

O filme, que conta a história de uma família com quatro filhas que se prostituíam, tem uma cena memorável, envolvendo a artista. A que o personagem de Maurício do Valle come a calcinha da filha interpretada por Regina, Arlete, que sai correndo dele, desesperada e nua. "'Sete Gatinhos' passa direto no 'Canal Brasil'. Quando estou na padaria comprando pão, sempre ouço: "Poxa, você era tão magrinha quando fez aquele filme!". Lógico! Eu tinha 22 anos! Com 64, não posso ter o mesmo corpo!"

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Anos 80: "Nem sempre estava combinado de tirar a roupa"

Ao falar do cinema dos anos 80, Regina se dá conta que o assédio, tão combatido no cinema de hoje, era quase naturalizado naquele tempo. "Em alguns trabalhos, sem que eu percebesse, estava sendo usada. Nem sempre estava combinado que você ia tirar a roupa, nem que aquela cena ia ser de tal jeito. O cinema era basicamente pouca grana e muita improvisação. Tinha quem usasse essas condições de forma criativa ou horrível. Passei pelos dois lados."

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Três amigos de Regina

  • "Arruma um amigo pobre"

    "Nos 80, eu tinha em casa um mural de fotos. Um amigo olhou e disse: 'Fico malzão quando vejo quanto amigo negro você tem. Não tenho nenhum. Fica parecendo que sou racista.' Uns 10 anos depois, esse amigo me acompanhou numa premiação da CUFA [Central Única das Favelas] no Teatro Municipal do Rio, cuja maioria das pessoas da plateia era negra. Tive um insight e falei pra esse meu amigo: 'Arruma um amigo pobre. Mas tem que ser amigo de verdade. Se você não faz um movimento, se não tem intencionalidade, nunca vai ter amigos diferentes de você'.

  • "Mais cansado que o maquiador da Regina Casé"

    "Tem vários memes na internet sobre mim. O que eu acho mais engraçado é o que fala: 'Nossa, eu tô mais cansado que o maquiador da Regina Casé'. Tipo, que eu dou um puta trabalho pra ele! Fiz um boomerang (videozinho no Instagram), com o Ricardo Tavares, aos pulos, e escrevi: 'Tá vendo? Ele nem sempre tá tão cansado assim.' Para a mulher, a cobrança com idade é muito mais pesada."

  • "Uma amiga de oito anos"

    "Eu tenho uma amiga de oito anos. De verdade mesmo. Quando aviso aos pais dela que vou passar na casa deles pegar a menina, eles já perguntam: 'Por que não leva os irmãos também?'. Eu rio, né. Poxa, eu sou amiga dela, de passar horas conversando. Quando você vai sair com um amigo mais velho, leva os irmãos dele junto? Não! É isso: as pessoas não conseguem se misturar. Vivemos todos nas nossas regras quadradas."

+ Regina

Veja a versão estendida da entrevista com Regina Casé no YouTube

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