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João de Deus é o novo Roger Abdelmassih?

Reprodução/Casa de Dom Inácio - Divulgação
Imagem: Reprodução/Casa de Dom Inácio - Divulgação

As semelhanças da série de terror que assistimos desde sexta-feira passada sobre os ataques sexuais perpetrados pelo curandeiro João de Deus guardam semelhanças tétricas com o que vimos, sem fôlego, se desenrolar com o médico Roger Abdelmassih, há quase dez anos.

O "Doutor Vida", como o especialista em reprodução humana era chamado, já que tinha números estelares de bebês feitos em laboratório --forjados, suspeitam as autoridades, pela mistura de material genético dos pacientes - também tratava suas presas sexuais com prepotência, as acuava trancadas a chave dentro de seu consultório e, por décadas, machucou mulheres que não tiveram coragem de denunciá-lo porque, diziam, "ninguém ia acreditar" nelas. Pura verdade.

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Eu trabalhava na maior revista do país quando o caso veio à tona. Com exclusividade, tive acesso aos primeiros depoimentos das pacientes. A revista adiou por semanas a publicação da reportagem. Eram muitos os receios: um deles, o de se repetir o erro que a imprensa quase toda cometera no caso da Escola Base (em que os diretores foram acusados injustamente de molestar crianças). Mas havia outras razões; e a mais perturbadora delas é que a revista tinha embarcado, havia pouco tempo, nas histórias fantásticas de Abdelmassih. Como agora ia dizer que ele era um monstro?

Entrevistei o médico duas vezes. Da primeira, assim que que cheguei ao seu consultório, ele me tacou dois beijos molhados nas bochechas e perguntou: "Você tem filhos?". Eu disse que não. "Estou vendo que você é atlética, então, deixa eu te dizer uma coisa: é porque você faz muita ginástica. Mulher assim fica infértil. Pode parar". Podia ter dado um coice nele, afinal, o motivo podia ser um câncer no útero, mas preferi seguir adiante já que estava lá para ouvi-lo. Na segunda entrevista, quando já estava preso, ele pediu que eu apalpasse os músculos de seu braço para eu ver "que ele era fraquinho" e que não poderia ter segurado mulheres à força. O cara era muito louco: ele era musculoso, e sabia disso. O que ele queria é que eu visse - e sentisse - seus músculos. Sim, os apertei, e falei que ele era forte e que poderia, sim, ter feito o que era acusado de fazer. Ele sorriu e disse "Você acha?".

Como no caso de João de Deus, e que os médiuns nos desculpem de não tê-lo até agora chamado pelo nome certo, curandeiro, antes das primeiras reportagens sobre o caso Abdelmassih, o Ministério Público de São Paulo tinha cinco depoimentos de mulheres. Na primeira semana da primeira matéria -- dada pelo jornal Folha de S.Paulo -- eles subiram para 100. As vítimas contavam que também não o denunciavam porque, nas palavras emocionadas de muitas com quem conversei, os filhos delas estavam ali, na clínica dele, e elas achavam que se contassem sobre as violações pelas quais haviam passado, o médico e quem sabe o próprio marido, enfurecidos, podiam acabar com o tratamento. 

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João de Deus e Roger Abdelmassih eram procurados e bajulados por famosos. Os dois atacavam vítimas normalmente bonitas e/ou jovens. Ambos foram acobertados durante 20, 30 anos por pessoas e familiares que trabalham no mesmo lugar que eles. Esses dois senhores prometiam cura, no caso do médico, da infertilidade. Um era de Deus. O outro dava a vida.

Abdelmassih foi condenado a 278 anos de prisão, em 2010, pelo estupro de 52 mulheres e tentativa de violentar outras 39. Por decisão do ministro Ricardo Lewandowski do Supremo Tribunal Federal está desde 2017 cumprindo pena em casa. Que os deuses terrenos não sejam tão benevolentes com esse outro colega.