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Mulher e careca: elas assumem a calvície e encaram a vida sem cabelos

Mulheres com alopécia se livram de lenços e perucas e assumem sua beleza única - Getty Images/iStockphoto
Mulheres com alopécia se livram de lenços e perucas e assumem sua beleza única Imagem: Getty Images/iStockphoto

da RFI

09/06/2018 10h01

De um dia para outro, elas começaram a perder os cabelos até o momento em que pouco ou quase nenhum fio restou sobre a cabeça.

A história se repete a cada relato. Elas adoravam seus cabelos e nunca poderiam imaginar viver sem eles. Até o momento em que eles começaram a cair. No banho, na escova, no travesseiro, os fios passaram a mechas inteiras e recuperá-los virou o principal objetivo da vida dessas mulheres. Exaustas de um combate muitas vezes sem resultados, várias resolvem assumir a vida com o crânio nu.

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É o caso de Corinne  Furon, de 34 anos. À RFI, ela contou que uma sequência de graves incidentes gerou um forte estresse e terminou por exterminar por completo suas madeixas. Depois de uma maratona de especialistas, vários tipos de tratamentos invasivos e dolorosos e uma depressão, ela resolveu repensar sua vida – um longo e delicado processo que envolveu também uma mudança de cidade, já que no local onde vivia, Corinne não podia mais encarar os olhares alheios.

Apostando em uma vida nova na turística Ile d’Oléron, no oeste da França, Corinne não conseguia deixar de lado, no entanto, os lenços e as perucas para esconder a cabeça. Até que um fotógrafo alemão que conheceu a convenceu a posar nua. Os amigos passaram então a questionar o paradoxo entre aceitar exibir sua nudez corporal e a necessidade de esconder sua calvície. “No dia em que comecei a sair sem lenço na cabeça, não foi porque eu assumi minha condição, mas porque eu me dei esse desafio. Passados onze anos, viver sem cabelos é um combate de todos os dias”, diz.

No entanto, Corinne recusa a ideia de que se assumir sem as madeixas foi uma escolha. “Ninguém quer ser careca. Eu não pedi para perder meus cabelos”, frisa.

Por outro lado, não tem dúvidas que a experiência lhe trouxe benefícios. “Cada um tem seu caminho a percorrer e está claro que precisamos de suporte psicológico para conseguir se aceitar e evoluir, consciente de que não há uma solução milagre. Eu não morri porque perdi meus cabelos, mas é verdade que encontrei outras forças dentro de mim. Claro que, se pudesse escolher, gostaria de ter meus cabelos de volta. Mas não teria avançado tanto na vida se não os tivesse perdido”, conclui.

A enfermeira Coriande Coche, de 34 anos, perdeu seus cabelos depois de viver um choque emocional. O namorado, pelo qual abandonou o emprego e mudou de cidade, levando a filha de um relacionamento anterior, anunciou de repente que não a amava mais. “Dois meses depois, comecei a perder meus cabelos em grandes mechas, até ficar completamente careca. Depois, começaram a cair os pelos do corpo, até meus cílios e sobrancelhas”, lembra.

Depois de consultar diversos especialistas e tentar vários tratamentos durante 12 anos – entre acupunturas, magnetismo, homeopatia e mesmo um medicamento originalmente utilizado para câncer de próstata – Coriande conta que os fios oscilavam entre a queda e o crescimento, mas nunca voltaram ao normal. “Foi muito difícil. Eu tinha um cabelo lindo, loiro, que era muito importante para mim, me fazia sentir feminina. Mas em um determinado momento, eu não tive outra opção além de aceitar”, diz.

Muitos verões se passaram até que Coriande desistisse de aguentar o calor das perucas e dos lenços e tivesse a coragem de descobrir a cabeça na praia ou na piscina. No entanto, a enfermeira conta que ainda hoje sente o peso do julgamento alheio, que associa a calvície feminina a doenças e dificulta até mesmo as entrevistas de emprego. Vários hospitais onde se candidatou recusaram a possibilidade de contratar uma enfermeira careca, conta a jovem.

Em paralelo, Coriande conta que desenvolveu o gosto por tatuagens. “Senti a necessidade de cobrir meu corpo para lutar contra a falta que me fazem os cabelos. Isso também me ajuda a lidar com o preconceito. Quero que os outros prestem mais atenção em minhas tatuagens do que em minha calvície.”

“Acho que não sou a melhor pessoa para ser entrevistada nesta reportagem porque não sou um exemplo de mulher que assume a calvície”, diz a funcionária dos correios franceses, Frederique Gauthier, de 57 anos. “Ainda é muito difícil para mim mostrar minha cabeça nua. Não é bonito de ver uma mulher da minha idade careca”, reitera.

 À RFI, ela conta que começou a perder os cabelos aos 18 anos; em apenas um mês suas madeixas caíram e nunca mais voltaram a crescer. Quase 40 anos depois, Frederique ainda lembra como era difícil frequentar a escola e aguentar as observações de alguns professores sobre o boné que a então adolescente se recusava a tirar durante as aulas.

A solução que a família encontrou para atenuar o sofrimento da garota foi comprar uma peruca. A experiência de usar cabelos falsos em pleno verão foi uma mostra do calvário que sofreria a garota do litoral sudeste da França durante as próximas décadas de sua vida. “Passar por essas situações foi muito difícil e mudou meu caráter. Em plena adolescência, desenvolvi um forte respeito em relação às diferenças”, diz.

O desespero dos pais em tentar encontrar médicos por todo o país que colocassem um fim ao sofrimento da jovem e o olhar dos moradores da pequena cidade do interior também marcaram a vida de Frederique. O medo de não encontrar namorado fez com que a jovem jamais revelasse seu verdadeiro estado aos pretendentes. “O único homem para quem eu mostrei meu crânio nu tornou-se, mais tarde, meu marido.”

Sair com a cabeça descoberta, até hoje, acontece em raras ocasiões e apenas quando Frederique sabe que enfrentará apenas os olhares de desconhecidos. Recentemente, em uma trilha que fazia na montanha, ela conta que cruzou com uma moça usando uma perna artificial. A naturalidade da garota em se exibir incentivou Frederique a retirar a peruca e seguir o caminho sem medo de julgamentos.

Durante a entrevista, reconhece que deveria adotar essa atitude mais vezes. Ao ser questionada se poderia enviar uma fotografia sua para reportagem, hesita: “Sem a peruca?”. Promete que vai tentar fazer uma selfie, mas não garante que conseguirá se exibir sem os cabelos artificiais. Minutos depois, Frederique envia uma imagem sorridente, ao sol, com o crânio nu.

O desabafo da atriz e cantora canadense Anne-Lise Nadeau, ou Anne-Lune – seu nome artístico –, sobre o preconceito que sofreu quando seus cabelos começaram a cair está publicado em seu blog. Um comentário sobre sua aparência que ouviu da mãe de um coleguinha de seus filhos foi “como um tapa no rosto” e a incentivou a fazer “coming out” sobre a calvície.

Em 2016, a artista começou a perder os cabelos – o que para ela, foi uma prova de que não era “invencível”. Meses depois, resolveu se adiantar à queda dos poucos fios que ainda restavam e raspou a cabeça.

“Não, não tenho câncer. Não, não estou morrendo. Não, não estou fazendo quimioterapia. Estou bem. Estou cheia de saúde. Mas estou ficando careca. E isso me forçou a tomar uma decisão: raspar a cuca”, escreveu em seu blog.

Apoiada pelo companheiro, a família, os amigos e por todo o carinho que recebeu após seu “coming out”, Anne-Lise resolveu dar um ousado passo e se apresentar careca em seu espetáculo para o público infantil. Embora as crianças não tenham reagido de forma negativa, as experiências que viveu no meio artístico “foram extremamente difíceis”.

“Na minha profissão, a imagem é muito importante. Nossos rostos e corpos são nossas ferramentas de trabalho. Pode ser que tenha sido apenas coincidência, mas senti que não era mais chamada para trabalhar por causa dos meus cabelos. Por outro lado, virei intérprete de personagens com câncer. Cada vez que precisavam de alguém para um personagem doente, me chamavam”, conta.

Nos últimos meses, os cabelos da artista canadense voltaram a crescer, e Anne-Lise não esconde sua felicidade em recuperar suas madeixas. “Não sou mais careca. Essa é uma boa notícia!”, comemora. Apesar de toda a militância e os esforços para lutar contra os tabus, a jovem canadense reconhece: “Confesso sinceramente que eu prefiro ter cabelos”.

A psicóloga brasileira Andréia Kleinhans trasnformou sua calvície em uma dissertação de pós-graduação. "Stress e raiva em mulheres com alopecia androgenética" é como é intitulado o trabalho acadêmico que se baseou uma experiência que viveu na pele.

Durante a realização da dissertação, Andréia percebeu a falta de estudos científicos sobre a calvície feminina. “A perda de cabelos pelos homens é muito estudada, tanto que os medicamentos são especialmente destinados a pacientes masculinos, embora haja uma grande quantidade de mulheres que sofram com esse problema”, ressalta.

As madeixas de Andréia voltaram a crescer. Mas se a queda de seus próprios cabelos motivaram essa pesquisa, ela também abriu as portas para que a psicóloga ofereça hoje suporte, através da terapia cognitiva comportamental, a várias mulheres que passam pelo mesmo problema. “A raiva foi um dos sentimentos mais fortes que vivenciei quando comecei a perder os cabelos. Então quis entender essa reação para poder ajudar outras mulheres que se deparassem com a mesma situação”, diz.

Nas entrevistas que realizou com pacientes femininas com alopecia, Andréia percebeu uma outra reação em comum, o medo de se sentir feia e querer se isolar. “Eu mesma, quando passei por esse período de queda do cabelo, evitava lugares muito iluminados, como shopping centers, ou me recusava a aparecer em fotografias”, lembra.

Andréia explica que o cabelo tem uma importância sociocultural para as mulheres. Ela lembra que as perucas e os tratamentos de cabelo existem desde o Egito antigo. “Ao contrário do que acontece com os homens, a sociedade não aceita uma mulher careca. O cabelo tem importância estética, para a feminilidade e para a autoestima da mulher, embora a exigência de se encaixar nesses parâmetros já estejam mudando hoje em dia”, avalia.

O foco do trabalho que a psicóloga desenvolve com suas pacientes que perderam cabelos é uma técnica chamada de reestruturação do pensamento. “Vamos nos concentrar em outras qualidades: a beleza do corpo, do rosto, a personalidade, lembrando que o cabelo é importante, mas não é o principal. O grande objetivo desta terapia é que a mulher se aceite dentro desta nova condição de viver sem cabelos, sem jamais se esconder”, conclui.