Elas são torturadas

As dores das mulheres brutalizadas na ditadura permanecem em seus corpos e almas. Comemorar o quê?

Jacqueline Elise e Talyta Vespa da Universa, em São Paulo Carine Wallauer/UOL

A ditadura militar aconteceu. E foi nojenta. Ela sequestrou, torturou, estuprou, espancou e matou pessoas. Não há um motivo sequer que justifique desumanizar alguém desse modo. Quem faz isso não deveria merecer a denominação de gente.

No relatório de 3 mil páginas divulgado em dezembro de 2014 pela Comissão Nacional da Verdade (instituída pelo governo do Brasil para investigar as graves violações de direitos humanos cometidas entre 18 de setembro de 1964 e 5 de outubro de 1988), consta que 191 pessoas foram mortas, 210 estão desaparecidas e 33 tiveram seus corpos achados finda a ditadura. Cerca de 20 mil mulheres e homens foram torturados. Da lista oficial da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos, constam os nomes de 46 mulheres. Entretanto, a CNV afirma que "o rol de vítimas aqui exposto não é definitivo": é quase certo que mais pessoas tenham sido brutalizadas e supliciadas.

O documento tem um capítulo específico sobre a violência sexual sofrida pelos presos políticos. Mulheres eram violentadas com choques nos genitais, tinham animais vivos, como ratos, enfiados em seus orifícios, eram chutadas, esmurradas e estupradas — muitas vezes, na frente de seus parceiros. Eram xingadas de "mães ruins" pelos algozes que as agrediam e ouviam que nunca mais teriam a chance de ver os filhos novamente. Passavam seus dias no cárcere pensando se o que os soldados lhe diziam era verdade ou tortura psicológica. Entravam grávidas e, muitas vezes, terminavam abortando após sessões de sevícias.

Sobre essas mulheres, é comum ouvir que "elas foram torturadas". A verdade, porém, é que elas continuam o sendo. As mulheres da ditadura são torturadas até hoje, seja na memória ou na sugestão de desmemória feita por muitos.

"A tortura não é só para fazer falar, é para fazer calar também, para que você nunca mais fale sobre o que aconteceu. É um instrumento para causar medo, uma forma de controle social. Neste momento, em algum lugar do Brasil, uma pessoa está sendo torturada. E a tortura acaba se naturalizando. 'Se você foi torturado, alguma coisa você fez. Você deu motivos'. Como se a desumanização do ser humano fosse justificável pelos atos dele".

A frase acima é de Cecília Coimbra, de 78 anos, professora de Psicologia da Universidade Federal Fluminense e fundadora do grupo Tortura Nunca Mais, do Rio de Janeiro. Cecília foi torturada por três meses e meio, e nunca esteve envolvida em atos ilícitos. Ela foi considerada subversiva pelos livros que lia e por causa das pessoas que conhecia.

Nesta reportagem, três mulheres sobreviventes relembram os momentos hediondos pelos quais passaram, detalhando sensações e pensamentos de uma das épocas mais espúrias da história do Brasil — para que ninguém jamais diga que ela não aconteceu. E para que limpem a boca os que falam em comemoração.

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Cecília Coimbra. Foto: Zulmair Rocha/Folhapress

A história de Cecília

"Fui violentada, levei choque e colocaram um jacaré no meu corpo"

"Tem um cheiro que nunca vai sair da minha memória. Nós éramos encapuzados quando nos levavam à sala de tortura. O bafo que saía da nossa boca ficava preso no capuz. O cheiro de podre que exalava da minha boca e que eu respirava ali dentro, lembro até hoje".

A professora Cecília Coimbra, 78, não treme a voz ao descrever os três meses e meio que passou sendo torturada. A única vez em que as lágrimas ameaçam cair, durante a entrevista, é quando ela lembra o dia em que chegou em casa e reencontrou o filho. Ex-militante do PCB (Partido Comunista Brasileiro), ela foi capturada em agosto de 1970, junto com seu ex-marido, José Novaes. Eles passaram três dias sendo interrogados no Dops e depois foram levados ao DOI-Codi do Rio de Janeiro. Cecília conta que uma denúncia anônima informou que eles estavam envolvidos no sequestro do embaixador norte-americano Charles Burke Elbrick, o que ela diz ser mentira. Presa, ela foi estuprada, levou choques, era obrigada a ficar nua e colocaram um filhote de jacaré em cima dela. Mas, para Cecília, a pior tortura era pensar que nunca mais veria o filho.

"A 'sala roxa' era a da tortura, os soldados a chamavam assim. As paredes todas eram roxas. Era lá onde ficava o pau-de-arara, a cadeira de dragão, onde nos eletrocutavam, e a coroa de Cristo, uma espécie de tiara de ferro que aperta o crânio. Tinham duas máquinas de choque elétrico. O farfalhar de chaves no molho, quando eles iam nos levar para a tortura ou para o interrogatório, é um som que ainda me aterroriza. Quando eles passavam pela minha cela e não me levavam, eu ficava aliviada por alguns segundos. Mas depois, me sentia mal porque isso significava que eles iam torturar outra pessoa.

Além de me colocarem nua, de darem choques nos meus seios, na vagina, no nariz e na nuca, eles também me molhavam para que os choques fossem mais intensos. Me fizeram ver meu marido sendo torturado. Colocaram um filhote de jacaré em cima de mim, com aquela pele gelada e pegajosa percorrendo meu corpo. 'E se me colocam com a cobra, como estão dizendo que vão fazer?'. Até desmaiei.

Me fizeram acreditar que minha mãe tinha sido presa também e que tinham dado meu filho ao Juizado de Menores. Eles gostavam de fazer essas ameaças. Nos chamavam de 'putas, vagabundas', meu marido era o 'corno manso'. Queriam nos desumanizar como mulheres e como mães. Os soldados passavam as mãos nos seios, na bunda, na vagina da gente. Muitas mulheres eram estupradas.

Não escovávamos os dentes, não tomávamos banho, usávamos papel pardo para segurar a menstruação e guardávamos os papéis embaixo de um colchão todo fodido, porque tínhamos que usar esses papéis para cobrir os pés quando estava frio.

Quando finalmente não conseguiram provar nosso envolvimento no sequestro, me levaram em um carro de placa fria (que não existe nos registros do Detran) e me largaram no meio de uma praça, sem nada. Fiquei acuada por algum tempo lá, não sei dizer quanto. Peguei um táxi e fui pra casa da minha mãe, mesmo sem dinheiro. Paguei com o dinheiro dela quando cheguei lá. Quando lembro do reencontro com meu filho, eu choro. Ele tinha três anos. Minha mãe disse praa ele que eu e meu marido estávamos na Itália, que a gente teve de viajar rápido. Aos poucos, quando foi crescendo, fomos contando para ele o que realmente tinha acontecido".

Cecília Coimbra em foto de 1995. Foto: Homero Sergio/Folhapress Cecília Coimbra em foto de 1995. Foto: Homero Sergio/Folhapress
Carine Wallauer/UOL

A história de Darcy

"Mãe, você amou mais a revolução do que a mim"

"Não vou lembrar de tudo. Eu fiz tanta força para esquecer o que aconteceu que acabei esquecendo". Darcy Andozia tem 70 anos e mora em um lar para idosos em São Paulo. Ela foi presa em 1974 por se posicionar contra a ditadura nas escolas onde era educadora, por meio de um grupo de jovens da Igreja Católica. Ela foi torturada física e psicologicamente. Seus algozes ainda destruíram emocionalmente seu filho Cacá, de menos de dois anos. Carlos Alexandre Azevedo se suicidou em em 2013.

"Meu marido era jornalista e trabalhava na Folha de S. Paulo. Um dia, ele foi trabalhar e não voltou. Quando soube que ele havia sido preso, pensei: eu sou a próxima. Não demorou. No dia seguinte, a polícia foi até o meu trabalho e me levou junto. Quando cheguei ao Dops (Departamento de Ordem Política e Social), dei de cara com meu filho, que tinha um ano e oito meses à época, e com a babá dele. Ele tinha um corte na boca e chorava muito. Mais tarde, descobri que o corte era resultado de um tapa que ele havia levado de um policial que se irritou com o choro. Ele passou o dia inteiro na cela sem comida.

Nessa noite, ele dormiu em uma cela e eu, em outra. Eu ouvia os policiais gritando com ele e dizendo: 'Viu como sua mãe não te ama? Você está sozinho aqui, com fome. É culpa dela que você está assim'. Do outro lado, eu chorava com as pernas encolhidas entre os braços. Doeu em mim também, mas isso ecoou na cabeça do Cacá a vida toda, até ele desistir de viver. Ele sempre se sentiu rejeitado. Um dia, durante uma discussão, ele me disse: 'Você amou mais a revolução do que a mim'.

Os policiais nos levaram até o porão, um espaço muito escuro, onde ficavam os instrumentos de tortura. Lá, estava o [Sérgio] Fleury e outros dois policiais. Um deles perguntou: 'O que a gente vai fazer com esse menino?'. E o Fleury disse que ele seria levado para a casa dos meus pais, mas que, se eu não colaborasse, o trariam de volta. Depois de dois dias preso, meu filho foi liberado.

Arquivo Pessoal

Foram 43 dias presa. Eu dividia a cela com uma colega. Havia uma beliche, uma privada e um chuveiro que mal pingava. Uma vez, fui castigada por ter conseguido com outra presa uma agulha e linha para costurar minha camiseta. Como punição, fui mandada para uma cela minúscula. Fiquei sem comida e sem água. Quando sentia sede, bebia água da privada.

Diariamente, os policiais me levavam para uma salinha - era tudo muito escuro lá, não tinha luz em lugar nenhum - para me interrogar. Eles abriam um álbum de fotos, apontavam alguém e perguntavam se eu conhecia, se a pessoa participava de reuniões antigoverno. E diziam: se você mentir, a gente mata o seu filho. Eu menti muito, tive que aprender a fingir. Treinava na minha cabeça, na cela. Mas eu não podia mentir em tudo, era a minha tática para que eles não percebessem.

Quando eu dormia, os agentes iam até a janelinha que ficava na porta da cela e gritavam que iriam me torturar. Sexual, fisicamente. Eu vivia em constante ansiedade, com muito medo. Um dia, um deles olhou para mim e disse: "Como você amamentou se você não tem seio?".

Faziam chacota do meu corpo o tempo todo. Depois de 43 dias, fui solta. Comecei a trabalhar em dois lugares, em uma ONG de educação e fazia roupas para vender. Meu marido tinha um emprego instável, então fui eu quem sempre banquei a casa. Tive mais três filhos, mas sempre tive que lidar com a instabilidade do Cacá.

Na escola, ele sofreu muito bullying. Foi chamado de terrorista pelos colegas, que não o deixavam comer. Eu morava no interior de São Paulo, todo mundo sabia da nossa história. Pegavam o lanche dele e jogavam no chão. Como eu trabalhava, a rejeição que ele sentia ficava mais forte. Ele me via pouco. Ele tinha crises de pânico e ansiedade, lembrava o tempo todo da ditadura, mas não falava comigo sobre o assunto. Era fechado, reservado, apesar de ser muito inteligente. Eu tenho certeza que foi o episódio na prisão que desencadeou tudo isso.

Sempre que ele chegava em casa, eu já estava dormindo. Acordava e dizia: "Cacá, chegou, meu filho?". E ele me dava um beijo, depois ia mexer no computador. No dia em que ele se suicidou, isso não aconteceu. Ele chegou, eu ouvi, mas preferi não falar nada. Se eu tivesse falado algo, quem sabe... Ele era muito gentil. Mas um amigo dele me contou que ele tinha dificuldade de se relacionar com mulheres. Eram muitos traumas que tomavam conta dele. Que tragédia.

Carine Wallauer/UOL Carine Wallauer/UOL
Carine Wallauer/UOL

A história de Marcia

"Fui presa grávida, torturada e abortei"

"Ai, não tô bem. Acabei de saber que policiais com metralhadoras entraram na USP hoje para prender um aluno. Falaram que ele havia cometido um crime muito grave, não disseram qual. Olha, só de imaginar essa cena, meu estômago fica embrulhado. O mesmo acontece quando ouço o Bolsonaro querendo comemorar o aniversário da ditadura. Meu coração até dispara", diz a jornalista Marcia Basseto, de 63 anos, andando apressada até a cozinha para pegar café. Rapidamente, ela se senta. "Podemos começar?".

Marcia fala com sobriedade sobre quando foi presa e levada ao Dops em abril de 1977. Ela trabalhava em uma metalúrgica e, de madrugada, panfletava no local reclamando dos baixos salários. Era contra a guerrilha, mas viveu cinco meses em uma cela de mais ou menos dois metros quadrados, foi agredida até perder a consciência mais de uma vez, afogada e recebeu choques elétricos. Transferida para a penitenciária do Carandiru, também em São Paulo, descobriu que estava grávida. Mas, logo, perdeu o filho.

"Eu não comia na prisão, meu corpo era pele e osso. A comida que chegava era intragável. O arroz e o feijão cheiravam mal, normalmente estavam estragados, e a gente lavava a carne antes de colocar na boca para tentar amenizar o gosto. Dividia uma cela com duas mulheres.

Lá dentro, vivi todos os tipos de tortura: fui para o pau de arara, afogada em baldes com água e tomei choques na cadeira do dragão (uma espécie de trono de ferro, onde as pessoas eram eletrocultadas). Eles mandavam que eu sentasse nua e jogavam água em mim. Os choques aconteciam por todo o corpo. Me deitavam e jogavam baratas pelo meu corpo. Era um desespero.

Arquivo Pessoal

Uma vez, dois policiais me tiraram da cela e me colocaram em um Fusca azul, vendada e deitada no banco de trás. Viajamos por horas, até que chegamos a um lugar ermo. Eles me tiraram do carro e me espancaram. Bateram tanto em mim, que achei que não sairia viva. Até que eles receberam uma chamada no rádio, que dizia: 'Tragam o peixe vivo'. Me colocaram no carro e me levaram de volta. Parecia que tinham quebrado todo o meu corpo.

A cela era muito pequena e não tinha vaso sanitário, só uma vala. Nós tínhamos que urinar e defecar ali. Aquilo ficava exposto e muitos ratos circulavam por ali. O cheiro era horrível. Eu não sabia, mas estava grávida quando fui presa. Eu namorava meu atual marido, que foi capturado pouco depois. Tínhamos 19 anos. Passei cinco meses no Dops, até ser transferida para o presídio do Carandiru.

Aos três meses de gravidez, tive uma hemorragia e muitas dores abdominais. Pensei que fosse uma consequência da tortura, mas eu estava tendo um princípio de aborto. Meu corpo conseguiu manter o bebê até os cinco meses. No Carandiru, o aborto aconteceu. Nossa, foi a pior sensação da minha vida, a de maior tristeza. Foi um baque que eu ainda não superei, tanto que ainda tenho dificuldade de falar disso. Olha, é difícil, mas preciso dizer que o aborto foi pior que a tortura.

Depois de ter sido solta e absolvida, tentei engravidar de novo, algumas vezes. Tive uma sequência de abortos. Isso construiu uma relação difícil entre mim e a maternidade, que veio depois, quando decidi adotar minha filha. Ela chegou em casa com dois dias de vida. Quando me ligaram e disseram que havia um bebê disponível, eu não perguntei nada. Queria aquele bebê de qualquer jeito, mesmo sem conhecê-lo. Minha filha é trans e estuda design. Somos amigas, mas brigamos, como toda mãe e filha.

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