Afe, Laerte, cheia de graça

A cartunista fala de como seu orgasmo está "mais gostoso", da morte do filho, do "inimigo" Bolsonaro e tucking

Juliana Linhares e Jacqueline Elise da Universa
Rafael Roncato/UOL

Foram 40 anos escondendo o desejo. A jornada já seria severa se fosse "só" isso. Mas, em paralelas diversas, Laerte se tornou a mais famosa e produtiva cartunista do país. Casou-se três vezes, com ônus emocionais para todas as envolvidas. Perdeu um filho; o mais temido dos mergulhos no abismo. E declarou-se mulher. Uma mulher transexual.

O mais recente capítulo da vida de Laerte Coutinho, paulistana, de 68 anos, é o mais escandaloso e, por isso, para os desavisados, pode enevoar a carreira dessa chargista, algumas vezes já chamada de "gênio". Laerte participou de publicações históricas como O Pasquim, fez colaborações para a Veja, cobriu três Copas do Mundo, publicou na underground Chiclete com Banana, criou os personagens Piratas do Tietê e Overman e desenha diariamente para a Folha de S.Paulo.

Seu trabalho mais lembrado, por razões auspiciosas mas também hostis, são as tiras de Los Três Amigos. Junto com Angeli, Glauco (este, morto, com o filho, em 2010, por um dos integrantes do centro de Santo Daime que ele fundara --outra brutal perda para Laerte) e Adão Iturrusgarai, publicou por dez anos historinhas dos tais amigos --alter egos dos autores --que faziam troça de política e mazelas sociais, mas, especialmente, de violência, sexo, drogas e perversões.

Nesta entrevista, de pouco menos de quatro horas e ungida com a mesma quantidade de garrafas de vinho, Laerte, de maneira corajosa e saliente, revisita o passado familiar -- a mãe que nunca usou maquiagem e a agressividade com a qual, por vezes, tratou as ex-mulheres, por exemplo, analisa sua produção --ela assume ter feito piadas com estupro feminino e, hoje, passar por uma crise --e revela andanças afetivas/sexuais --este, um dos temas mais apetitosos da conversa.

Ele envolve orgasmos múltiplos, homens casados, Tinder e alguns (des) amores. "É uma coisa quase divina; cheia de graça", diz Laerte, sobre alguém que você só saberá quem é, se a nudez da Laerte, apresentada aqui, não te deixar sem gracinha.

Todas as cores de Laerte

Rafael Roncato/UOL Rafael Roncato/UOL

Freud, o riso e a banana

Laerte fala das coisas mais difíceis, sorrindo: preconceito, morte e desamor, por exemplo. Talvez seja uma forma de tentar ser amada. Pode também ser um vício profissional. Para ela, no entanto, trata-se de uma escapatória. "Vou fazer o 'Dr. Pica' agora", avisa.

"Freud falou, e foi a única coisa do Freud que eu li, que o prazer do humor é proporcional à economia de gasto emocional que você sabe que está fazendo. Quando você ri, sente que está 'não sofrendo'; que está passando a perna num monte de dor, e isso dá um prazer".

Para Angeli, cartunista com quem Laerte trabalhou junto por décadas, a amiga é "gênio". Então, vamos ouvi-la mais: "O prazer do humor é você saber que aquela situação horrorosa é uma piada e que aquilo não te afeta. O clássico dessa teoria é a escorregada na casca de banana. Não é você que cai. Então é engraçado, porque o outro 'se fodeu'", diz Laerte.

Depois de alguns goles de vinho, ela fecha esse assunto:

"Será que o amor também não é uma forma de escapismo; um jeito de driblar preocupações com coisas graves?".

"Me olho no espelho e fico 'que diferente com aquela blusa! E se eu colocar essa bota? Por onde eu começo? Pela pulseira, pela saia ou pelo sapato?'. Eu gosto de meia-calça; minha perna fica muito mais legal"

Laerte

A mãe e a meia-calça

A mãe de Laerte, Lila, é formada em biologia. A cartunista conta que, para a mãe, por causa de seus mais de 90 anos, e, especialmente, da formação científica, "homem é homem e mulher é mulher". Lila também é bem-humorada e inteligente. Assim, nem a idade e nem a (pseudo) ciência foram maiores do que a decisão pela manutenção do elo com a filha, quando ela revelou sua transexualidade.

E olha que graça: foi a mãe quem lhe deu as primeiras saias. Que Laerte tratou de encurtar todas para usar.

Lila não chama a filha de ela o tempo todo. "Mas ela faz algumas concessões". Nas conversas iniciais com a mãe, já enquanto ela, Laerte perguntou quando havia sido a primeira vez que ela havia se "sentido mulher". A mãe disse que foi quando deu à luz. Para Laerte, esse momento aconteceu quando ela depilou o corpo todo pela primeira vez. "Era um outro corpo; outra pessoa".

"Minha mãe não tinha brinco, nunca a vi maquiada, e as roupas dela eram basicamente as de ficar em casa. Ela privilegia a praticidade. Quando eu passei a usar coisas pouco práticas como saltos, saias e sutiãs, ela falava 'nossa, por que você fez isso?!'", conta Laerte, às gargalhadas. E ela responde agora, com os olhos virados para cima e um sorriso que se derrama:

"Eu me sinto tão bem explorando essas coisas... Me olho no espelho e fico 'que diferente com aquela blusa! E se eu colocar essa bota? Por onde eu começo? Pela pulseira, pela saia ou pelo sapato?'. Eu gosto de meia-calça; minha perna fica muito mais legal".

Desde que assumiu publicamente a transexualidade, há cerca de 10 anos, Laerte não usa calças. Não se sente bem com o volume formado pela genitália. "Dá pra fazer um tucking. Tem que enfiar as bolas para dentro do corpo, esconder o pinto e aí botar uma calcinha ou duas. Existem umas técnicas com esparadrapos, que já vi uma amiga fazendo; mas puta que pariu!".

E as dificuldades não são poucas. "Descolei um maiô de sainha, aqueles bem anos 40, porque eu queria ir à piscina. Achei que ia ser bonitinho, mas não tive coragem de usar".

"Não é uma coisa que console, você ouvir 'ele morreu rápido'. O que é morrer rápido para quem está morrendo?"

Laerte

A morte do filho

Laerte é pai de três filhos. A professora e tradutora Laila, de 29 anos, o cartunista Rafael, de 39, e Diogo, que se formou em psicologia e teria 36. Rafael e Diogo são filhos de seu segundo casamento, e Laila, do terceiro.

Diogo morreu em um acidente de carro, há 14 anos. Era um domingo de Carnaval, dia 6 de fevereiro. Ele havia passado na casa do pai com um amigo e feito um lanche. Os dois então seguiram para Juquehy, praia do litoral norte de São Paulo. Diogo estava dirigindo e, numa curva, um carro que fazia uma ultrapassagem na pista contrária foi para cima dele.

O amigo de Diogo contou a Laerte que ele morreu em poucos minutos. "Mas não é uma coisa que console, você ouvir 'ele morreu rápido'. O que é morrer rápido para quem está morrendo?", diz Laerte, num dos únicos momentos da entrevista em que seus olhos apontam para o chão.

Rafael foi quem recebeu o telefonema do hospital. Diogo já estava morto, mas os médicos não contaram. Disseram-lhe que a situação era muito grave. Ele, Laerte e sua namorada na época desceram para o litoral. "E fomos o tempo todo falando 'ele está machucado, mas está vivo'. Fomos com esse mantra. Aí, despencou".

"Um funcionário do hospital veio avisar que a gente ia ter que ser rápido. Eu estou lembrando disso agora... Ele estava todo envolvido em panos e coisas, porque estava muito quebrado. O Rafael queria desenvelopar o corpo, e eu falei 'não, Rafa, melhor não'. Quando o corpo apareceu para ser velado, já estava arranjando dentro de um caixão com flores...E estava tudo mais ou menos composto ali".

Laerte faz pausas longas durante o relato. "A morte não ensina nada pra gente. E nem o propósito é esse. Mas a vida ensina? Ter fome ensina a gente? Em alguns momentos, o que mais me perturba na ideia de morrer é o sofrimento. Ninguém morre que nem em desenho animado, que cai e tonhonhóim".

Diogo teve o corpo cremado e suas cinzas foram lançadas na praia para onde ele iria. "Foi um momento bonito, mas depois, não tinha mais nada. Não tinha um túmulo, um poste, uma árvore. E isso é uma falta. Eu fiquei com uma latinha. Mas ela não é um organizador da dor; é só a memória pura. É importante essa coisa de ter um túmulo".

"Estou elaborando uma possibilidade de organizar esse luto: escrever um livro sobre o Diogo. Mas não com desenho. Desenhar virou uma forma de produzir humor. E acho que não dá pra lidar com a memória do Diogo assim. Até já tentei. Mas saiu uma história de só seis páginas...".

Política: hoje, eu não tô bom

  • Bolsonaro

    Ele é o inimigo. Não é alguém que estimule um corpo de ideias. Só é um desejo anárquico e maluco. [Se você se visse numa situação, em que estivesse como Bolsonaro, sozinho, o que gostaria de perguntar para ele? Depois de 30 segundos pensando, ela responde]: Nada. A única coisa que dá para fazer com ele é neutralizá-lo e impedir que ele seja eleito de novo.

  • Lula

    Temos uma relação pessoal. Quando foi preso, desenhei uma carta ele, com o João Ferrador. Ele era um personagem meu que personalizava um metalúrgico combatente. E tinha um bordão: "hoje eu não tô bom". Na carta, João entra na cela, e o Lula fala "eu achei que você não vinha". E João responde: "não vinha mesmo, porque hoje eu não tô bom". Fiquei rindo quando escrevi.

A ponte

A transição de gênero de Laerte tomou força --e ficou pública --em 2009, quando ela tinha 58 anos. Cinco anos antes, no entanto, um perfume dessa mudança já se fazia sentir em suas personagens, especialmente em Hugo, um cara que personificava os problemas dos tempos modernos, como computadores e tamanho do pênis. Em um dado momento de 2004, Hugo decidiu "se montar". Tascou vestido, batom e salto alto. Laerte ainda não tinha total consciência, mas Hugo era seu alter ego.

Nessa época, ela já havia acabado o terceiro casamento, todos com mulheres, e identificado que nunca "foi um marido memorável". "Vivemos muitas tensões. É muito radical você bloquear a expressão do seu sexo e do seu desejo. É uma tensão que vai se colocando, você não sabe direito a origem, e aí se vê jogando coisas na parede", se autoanalisa. "Eu não as agredi fisicamente, mas com palavras, sim."

Naquele ano, Laerte achou que ia "cair na vida homossexual com pujança". Não foi assim. Primeiro, porque ela se diz "uma cagona", mas principalmente, porque a tragédia do filho, em 2005, tomou conta de tudo. Laerte mergulhou num precipício. Foi só quatro anos depois da morte de Diogo, que ela voltou a atenção para sua sexualidade. "E acho que a morte dele, de alguma maneira, me fez ter coragem para entrar nesse outro país."

Laerte começou a ler e frequentar reuniões de homens que gostavam de se vestir de mulher. O termo para esse gosto, na época, era crossdresser, e era assim que ela se denominava. "Comecei a comprar calcinha no Extra de madrugada", ela conta. Depois, aos poucos, foi colocando brincos, colares e pintando as unhas. "Hoje, parece que nem tenho armário, porque tem roupa pela casa inteira. Nem pra padaria eu vou de qualquer jeito", diz ela,

"A gente marca de transar e vai rapidamente para um motel. E ele fica aflito; quer que seja rápido. Depois, é aquele padrão masculino de 'então a gente se liga'. Então está bom, não estava esperando mais do que isso"

Laerte

O segundo sexo

A primeira experiência sexual de Laerte foi aos 17 anos e com um homem. Ela conta que sentiu muita dor. E além dela, um medo terrível "de ser viado". Laerte escondeu sua homossexualidade por 40 anos.

Desde que se colocou com uma mulher trans, passou a transar com homens. Ela diz que tem encontros muito prazerosos e outros, ruins, na mesma medida. Laerte se ressente de nenhum desses parceiros ter "se encantado" por ela.

"Faço sexo de vez em quando, mas eu não tenho uma relação. Nenhum dos homens com quem saí é alguém que eu apresente para as pessoas 'ah, esse é o meu namorado'. E tem outro problema. Eu tenho transado com pessoas que em geral são casadas. E que não podem ser vistas comigo".

Com muita coragem, Laerte descreve como alguns de seus encontros afetivos acontecem. "A conversa não é muito desenvolvida. A gente marca de transar e vai rapidamente para um motel. E ele fica aflito; quer que seja rápido. E aí, depois, é aquele padrão masculino de 'então a gente se vê, a gente se liga'. Então está bom, eu não estava esperando mais do que isso", ela murmura.

As relações afetivas de Laerte têm um outro componente delicado. Ela gostaria, em grande parte, de ter um corpo de mulher. Ao mesmo tempo, não vai fazer transformações cirúrgicas nele, seja colocar seios, e muito menos, a de redesignação sexual, em que o pênis é transformado em uma vagina.

"Tenho 68 anos e o risco de morrer numa cirurgia dessa é alto. Além disso, eu gosto e não gosto do meu corpo. Gosto porque sei operar. E não gosto porque ele me deixa frustrada. Organicamente, eu sou um homem, e isso me conduz ao campo do sexo homossexual".

  • O que ela adora fazer

    Ver filme. Todo dia vejo um. Aliás, uma quantidade um pouco maior do que eu deveria. Me vejo comendo o tempo que eu acho que devia estar trabalhando. Eu tenho um projeto que exige dedicação, que é uma historiona de 300 e tantas páginas, uma coisa megalomaníaca. Já podia ter acabado essa merda, se não tivesse visto tanto filme. Por outro lado, ver filme também é uma forma de criar. Então eu me desculpo!

  • O que ela detesta fazer

    Organizar as contas. Eu sou meio burralda e tenho bloqueios em me programar financeiramente. Mesmo com minha contadora na cola, fiquei anos sem pagar imposto. Resultado: tenho uma puta dívida. Que eu não sei de quanto é! Essa negligência com dinheiro tem a ver com uma certeza de que nunca ia faltar. Minha família não é sem grana e é muito solidária. Sempre contei com meus pais pra fechar conta, investir e dar entrada em casa.

Dança: a faísca apagou

Universa: Você dança?

Laerte: Danço nada. Eu sou travadinha.

Universa: Nem sozinha, em casa?

Laerte: Sim, e minha gata fica me olhando. Mas sem música. Eu não gosto de ouvir música. Acho que tem a ver com o lance do Diogo; um bloqueio de sentimentos. Eu parei de ter prazer em muitas coisas depois da morte dele. Quando vi, eu estava no meio de um mundo diferente, nebuloso e com uma camada de filtro. Eu penso "vai passar", mas ainda não passou. Música então, puta que pariu. Parece que tem uma cera no neuroreceptor. Não bate. Antes, chegava a fazer fazia faísca.

A dança sempre teve um lugar desajeitado para Laerte. Quando era adolescente, sua mãe "viu que os filhos homens eram dois travadinhos. E ela já tinha a experiência do marido frustrante, porque meu pai a levava para dançar quando eles eram noivos. Depois, nada. Clássico homem brasileiro".

Bem, sua mãe a colocou numa escola de etiqueta que "desde os anos 1920 ensina os jegues paulistas a se comportarem", segundo Laerte. Na escola, ela e o irmão aprenderam algumas danças. A ideia é que os dois socializassem com as mocinhas e as tirassem para dançar. "Eu comecei a me achar ridícula dançando, e aí, não deu, foi intransponível."

Rafael Roncato/UOL Rafael Roncato/UOL

É pau, é peito

A transformação física mais radical, por via médica, a qual Laerte pretende se submeter é a hormonização feminina. Em mulheres trans que fazem esse tratamento aos 20, 30 anos, uma das transformações mais aparentes e desejadas é o crescimento do peito. Com 68 anos, Laerte não tem essa garantia. Mas o que ela deseja com os hormônios é algo muito mais ambicioso.

"Eu gostaria de sentir como uma mulher sente. Organicamente. Será que isso existe? Eu não sei. Mas quero tentar".

À parte o risco de morte, a decisão de não passar pela cirurgia de construção vaginal foi tomada por causa de uma questão primeva. "Muitas trans dizem sentir ódio do pênis. Eu não tenho esse desconforto com a minha genitália".

A notável autoconsciência de Laerte não a protege, no entanto, de passar por situações profundamente incômodas.

"Uma das pessoas com quem eu saía esteve com travestis incríveis, de peitos perfeitos e pênis. Eu perguntei se ele tinha curtido, e a resposta foi: 'Sim, é diferente de transar com homem'. E eu: 'Você está me chamando de homem?'; aí ele 'Não, veja bem...'".

Ter peitos, nesse universo, funciona como um salvo-conduto para ser aceita pelos homens, ela diz. "Quando conheço alguém pelo app, já aviso: ó, eu não tenho peito, ok?". E o mesmo acontece com mulheres.

"Boa parte da diminuição de tensão que existia quando eu entrava no banheiro feminino foi superada quando passei a usar um aspecto de peito (sutiã de bojo). Bastou isso. Ao me verem entrar no banheiro agora falam 'ah, é uma mulher', e não mais 'ah, é uma travesti conhecida da TV'".

Los amigos

Julia Moraes/Folhapress Julia Moraes/Folhapress

Angeli

Ele me deixou muito comovida quando morreu meu filho porque ficou do meu lado de maneira absoluta. E ele acompanhou a mudança que fiz nas minhas tiras depois disso. Meu jeito de fazer humor passou a ser outra. E ele cavalgou ao meu lado. Somos grandes amigos.

Bel Pedrosa/Folhapress Bel Pedrosa/Folhapress

Glauco

Estávamos distantes por causa do Daime. A gente o hostilizou (por causa da seita), foi agressivo; e ele, na dele. Então, em 2003, eu falei "Glauco, quero experimentar o lanche". E ele me recebeu e me paparicou bastante. Na hora do chá, ele disse: "Vou dar uma dose pra te derrubar".

Divulgação Divulgação

Ziraldo

Chorei quando ele teve um infarto e achei que ele tinha morrido. E me assustei: "Eu tô chorando, mas eu não convivo com o Ziraldo!?". E me liguei: quem é o Ziraldo para mim? É uma figura paterna; no mundo das ideias e afetivamente também. Nunca sentiria isso pelo Millôr. O Millôr podia morrer cinco vezes.

Humor sem graça

Quem é leitor antigo das tirinhas diárias de Laerte na Folha de S.Paulo percebeu. E, se continuou leitor é porque aprovou. De cerca de dez anos para cá, o jeito dela de fazer humor mudou. Há quem diga que o trabalho ficou mais filosófico. Também há quem o classifique de hermético.

Personagens famosos foram abandonados por volta de 2004, caso de Overman, os Gatos e Piratas do Tietê -- que Laerte descreve como trabalhos de "humor menos sutil" -- e ela deixou de se preocupar (muito) com a linearidade das histórias. O novo jeito de trabalhar fez com que jornais que divulgavam seus quadrinhos a dispensassem.

A morte de Diogo em 2005 e o já começado processo de transição de gênero selaram a virada. Por causa do luto, Laerte quis parar de fazer quadrinhos; o humor tinha ficado estéril naquele mar de dor. Quando reconheceu que gostava muito do que fazia, que não queria parar, mas que as experiências da morte e da transexualidade haviam se tornado os pilares de sua nova vida, deu um cavalo de pau na carreira.

"Ainda hoje não é tranquilo pra mim produzir humor. Porque ele corteja o preconceito. Quando você faz uma piada, necessariamente precisa dialogar com o repertório comum das pessoas, para todos se reconhecerem. É dessa desse laminha que humor brota. Daí, muito frequentemente, você convoca os preconceitos das pessoas", analisa Laerte.

"O modo como vejo hoje o meu desejo e a minha identidade de gênero é diferente do passado. Eu os via como objeto de piada. E muitas vezes eu mesma fiz piada disso".

Laerte fala de maneira franca sobre chistes machistas e, por vezes, violentos, que, por décadas, produziu. "Sou convidada para participar de atividades no Dia da Mulher. Têm pessoas que falam: 'Tá, ela é uma mulher trans. Mas quando era homem, em Los Três Amigos, produziu tiras em que mulheres eram estupradas e isso produzia riso'. Eu fiz isso mesmo. Tenho que lidar com meu presente problemático e o meu passado problemático também."

Que porra de privilégio?

Laerte aspirou a ser chamada de mulher e até ensaiou um novo nome para si: Sônia. O desejo não durou muito tempo. Em primeiro lugar, porque ela não se sentiu plenamente confortável com a autodenominação; afinal, "eu não nasci mulher", reflete. E, em segundo, porque avaliou que esse desejo era desrespeito com a história das mulheres que, há décadas lutam por melhoras em suas vidas. "Lutas essas, das quais eu não participei".

"Sou uma mulher trans. Vivi 50 anos como homem e não tive problemas em ser homem. Essa coisa de 'nasci no corpo errado', para mim, não é assim; eu estava no corpo certo o tempo todo. É estranho? Pode ser, mas sei lá, estou aqui usando a minha minissaia. E é super legal. E estou me sentindo muito bem", diz ela.

Os confrontos, durante a transição, beiraram o absurdo. Houve quem acusasse Laerte de querer "usufruir dos privilégios de ser mulher". E falar disso, obviamente, a deixa furiosa.

"Que porra de privilégio?! Jesus do céu, as meninas têm salários menores, são escorraçadas, estupradas. De que privilégio estão falando? De poder usar um banheiro limpo? Puta que pariu, é só isso, o privilégio de mijar sentada?".

O orgasmo está não só mais gostoso, como agora é possível gozar mais de uma vez. E têm outras novidades, como o múltiplo orgasmo

Laerte

O gozo e a graça

Desde que passou a transar com homens, Laerte conta que seu orgasmo é diferente; na realidade, é melhor.

"Ele não só está mais gostoso, como agora, têm outras novidades, como o múltiplo orgasmo", diz ela. "Ao mudar o contexto das minhas relações sexuais, eu me possibilitei alcançar outras regiões".

Laerte sente que chegou a um tempo de satisfação, de um modo geral, com seu corpo; o que também ajuda na qualidade do sexo.

"Estou vivendo uma coisa que era o que eu queria. Quando estou acertando, eu reconheço que estou acertando. E quando eu rebolo por aí, com o quadril que eu gostaria de ter, sei que eu tenho minha graça", diz Laerte, com uma voz comovidinha. E, sim, ela rebola.

"É a ideia de graça que me interessa. Graça não é o que você consegue contar numa piada. É uma coisa quase divina, cheia de graça."

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