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Com produtos fora do freezer, pesquisadoras já perdem com corte na educação

Elisa Soupin

Colaboração para Universa

14/06/2019 04h00

Muito vem sendo dito sobre o corte federal nas universidades públicas do país, que podem variar de 15,8% a 54%, de acordo com cada instituição, de acordo com dados da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior. O assunto gerou muita mobilização entre estudantes, professores, pesquisadores e a sociedade civil do país, que foi às ruas nos dias 15 e 30 de maio em manifestação contrária à medida. Nessa sexta (14), várias frentes mobilizaram uma greve que parou, inclusive, parte do transporte público.

Números e porcentagens dos cortes podem parecer uma abstração quando vistas em manchetes e notícias, mas tem implicações em vidas, sonhos, projetos e pesquisas reais. Universa conversou com três mulheres cujas vidas estão sendo diretamente impactadas pela política de contingenciamento, como o governo se refere aos cortes. Veja suas histórias.

Bolsa de mestrado conquistada, sonho interrompido

A estudante de veterinária Mariana Delorme, de 23 anos, procura agora um plano B. Na reta final de seu curso na Universidade Federal Fluminense (UFF), ela trabalha na área de alimentos e sua pesquisa desenvolve um leite condensado a partir de um tratamento ôhmico, um método de tratar o leite que promove crescimento por carga elétrica, garantindo uma qualidade nutricional maior. Há poucos meses, dedicou muito tempo e esforço ao estudo para conseguir uma bolsa de mestrado e dar continuidade à pesquisa iniciada na graduação.

Mariana Delorme, da UFF - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Mariana: conquistou a vaga, mas deve perdê-la
Imagem: Arquivo Pessoal

"Eram 10 vagas para o mestrado e apenas seis com bolsa. Fiz a prova no final de abril e passei em quarto lugar, fiquei muito feliz", conta ela, para quem a comemoração logo foi interrompida.

"Logo depois, saíram as notícias do corte. Quando eu fui fazer a matrícula, soube que as bolsas saíram do sistema. Agora, só os três primeiros lugares vão receber o auxílio financeiro. Como fiquei em quarto lugar, não deu para mim. É uma frustração imensa, o mestrado é dedicação exclusiva, demanda uma carga horária emocional e profissional enorme que as pessoas às vezes nem imaginam. Você elabora um projeto que, muitas vezes, dá errado, precisa recomeçar. Me dediquei muito, conciliando estudos com estágio e agora estou meio sem chão, torcendo pela liberação de mais uma vaga", conta ela. "Ter que interromper minha pesquisa é o que mais me deixa triste", conclui.

Faculdade fechada, bolsa interrompida e nenhuma certeza

A estudante de física Beatriz Almeida, de 20 anos, está preocupada. Toda a sua vida tem relação íntima com o Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro, o IFRJ, onde ela cursa Física. De acordo com a aluna, por conta dos cortes, a instituição deve fechar depois do fim do primeiro semestre, em julho, deixando a estudante sem aula e nenhuma previsão de formatura. A reportagem entrou em contato por email com a IFRJ para pedir nota sobre o encerramento das atividades, mas não teve retorno até a publicação dessa matéria.

Beatriz trabalhando no IFRJ - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Beatriz: museu interativo e ida às escolas ameaçadas por R$ 400
Imagem: Arquivo Pessoal

"Além disso, eu trabalho como mediadora bolsista no Espaço Ciência InterAtiva (ECI), um museu do IFRJ, que fica em Mesquita. Ele foi o primeiro museu da Baixada Fluminense e é de terceira geração, um museu interativo, com uma exposição sobre neurosensações, que atende o público geral. É maravilhoso. Também vamos em colégios, geralmente em áreas mais afastadas dos centros urbanos, levando experimentos sobre Física, Química, Matemática e Biologia", por esse trabalho de 20 horas semanais, Beatriz recebe uma bolsa de R$ 400 reais, importantíssima para garantir o transporte entre sua casa e a faculdade e também para ajudar com algumas contas.

"A informação que temos é que a faculdade vai deixar de funcionar no final deste período, e as atividades do museu vão terminar também", lamenta ela, para quem a faculdade era importante, ainda, para a saúde mental.

"Tenho Transtorno Afetivo Bipolar, e, na fase depressiva, eu fazia aula de Natação no campus, fazia academia, que eram coisas que eu precisava e me faziam sentir bem melhor. Agora, sem trabalho, estudo e essas outras ocupações, fico preocupada, a pior coisa para alguém depressivo é a desocupação", diz.

A pesquisa de uma vida interrompida

A professora titular da Universidade Federal de Minas Gerais, Ana Paula Salles, que tem 25 de seus 55 anos de vida dedicados à docência e à pesquisa, tem visto os 12 alunos que desenvolvem pesquisa sob seus cuidados sofrerem com as medidas federais. O salário dela não será afetado -- a lei proíbe cortes nesse sentido--, já a pesquisa pela cura da Leishmaniose, uma doença infecciosa transmitida pela picada de insetos, sofrerá muito impacto.

Esse, como outros projetos, precisa de acompanhamento contínuo e, caso sejam paradas, mesmo que por pouco tempo, podem perder toda a validade e precisarão ser reiniciados do zero.

A pesquisadora Ana Paula Salles: como fica agora? - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
A pesquisadora Ana Paula Salles: como fica agora?
Imagem: Arquivo Pessoal

"A mão de obra qualificada para desenvolver essas pesquisas, que têm impacto real e direto na vida e nas condições de saúde das pessoas, é sustentada pelas bolsas. Muitos estudantes abandonam seus empregos pelo sonho e pela perspectiva profissional de levar suas pesquisas adiante e vê-las virando soluções reais, como medicamentos e tratamentos", conta.

"Alguns dos estudantes já estão sem bolsa, e outros, conforme vão concluindo seus estudos, terão a bolsa congelada. Ou seja, o benefício não passará para outro estudante. Eu trabalho há muitos anos buscando o tratamento de leishmaniose e a pesquisa é um processo contínuo, a cada etapa, aprofundamos o conhecimento, para culminar na solução. É um processo longo, que precisa ser repetido, estudado para que tenha garantias de resultado. Com esse corte, tudo é interrompido", lamenta, com a voz carregada de pesar.

A professora lamenta, ainda, o sucateamento das condições de trabalho, que prejudica o avanço científico.

"Já começam a faltar insumos básicos, como luvas, material para desinfecção e assepsia dos utensílios, reagentes para preparos de solução e a manutenção de equipamentos. Estou com três equipamentos essenciais fora de uso e sem recursos para consertar", diz.

Esses equipamentos em questão são máquinas de gelo e um freezer, responsáveis por armazenar o material de um estudo genômico para curar a trombose.

"É patrimônio genético da população brasileira riquíssimo para estudo, colhido ao longo de anos, que está estragando, pedi para colocar no freezer de outro laboratório, mas não vai poder ficar lá por muito tempo. E é importante demais, é a busca de cura", diz a professora.

A reportagem entrou em contato com a UFMG para estimar quantas bolsas e pesquisas serão afetadas pelos cortes, mas ainda não obteve retorno.