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"Pessoas-diário" dedicam-se a ouvir quem quer desabafar; é uma boa ideia?

Pessoas se disponibilizam para ser o "diário online" de pessoas deprimidas, ansiosas e suicidas - iStockphoto/Getty Images
Pessoas se disponibilizam para ser o "diário online" de pessoas deprimidas, ansiosas e suicidas Imagem: iStockphoto/Getty Images

Jacqueline Elise

Da Universa

13/05/2019 04h00

Em 1998, o escritor David Foster Wallace publicou um conto na revista Harper's chamado "A Pessoa Depressiva", que contava a história de um sujeito sem nome que tinha depressão e como sua doença foi evoluindo durante o tratamento. No conto, a pessoa depressiva tinha um sistema de apoio composto por suas amigas, para quem ligava quando queria desabafar, como se fosse um diário.

Anos mais tarde, em grupos online destinados a falar sobre saúde mental, começaram a aparecer as pessoas-diário, que se dedicam escutar quem precisa desabafar por um momento, mesmo sem se conhecerem. É o caso da assistente administrativa Tamires Silva, 27. "Sou diário há cerca de um ano".

"Eu conheci essa prática em um grupo do Facebook. O dono abriu um tópico no qual as pessoas se ofereciam para ser diário. Eu deixava um comentário que meu inbox estava aberto para quem quisesse. Sempre gostei do ser humano e acho fantásticas as reações que cada um tem a certos problemas vividos. Aliás, a curiosidade e vontade de aprender com o próximo me motivam para continuar sendo diário".

Ela conta que não opina sobre os problemas de quem está desabafando com ela. "Não dou palpites nem interajo com a pessoa, pois o diário é um objeto inanimado", diz. Tamires afirma que nunca usou o recurso para si, pois tem medo de algo ruim aconteça. "Fico receosa de vazar algum tipo de informação, aquilo que garanto que não vou fazer enquanto diário, porém, não posso garantir isso pelas outras pessoas".

A estudante Nathalia Xavier, 25, é diário há um mês também por causa de grupos do Facebook. "Comecei porque eu acho que as pessoas não têm dado muito ouvido aos outros. Mesmo que seja pouco, isso pode mudar o dia de alguém. A pessoa manda uma mensagem, e são pessoas que não conheço. Eu respondo de modo que a faça desabafar, mas não opino. Um momento de dor não deve ter opinião, deve ter acolhimento", pensa.

Tanto Nathalia quanto Tamires relatam que já fizeram terapia, mas que, atualmente, não têm psicólogo fixo. Elas reconhecem que ser diário pode ser uma carga mental pesada. "Acabo nem lendo a maior parte das conversas, mas a pessoa fica bem por ver que tem alguém ali, 'ouvindo' o que ela tem a dizer. Os dramas são fortes, fico receosa de despertar alguma sensação ruim em mim, porque, como todo ser humano, tenho meus problemas e mazelas", diz Tamires.

"Se eu ficar psicologicamente mal, talvez eu pare com o diário para cuidar de mim", pondera Nathalia.

Ter uma pessoa-diário pode ajudar, mas não substitui terapia

O psicólogo, doutor em neurociência do comportamento pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e diretor do Centro de Atenção à Saúde Mental - Equilíbrio (CASME) Yuri Busin explica que não é de se estranhar que certas pessoas prefiram se abrir para alguém que nunca conheceu antes, em vez de falar com amigos, por exemplo.

"A gente se sente envergonhado, com medo de ser julgado por pessoas próximas. Se for com uma pessoa aleatória, o julgamento dela não afeta tanto, porque o estranho não faz parte do convívio pessoal. Acho que [ter um diário] pode incentivar a reflexão, a organização. Obriga você a pensar um pouco sobre a situação pela qual está passando".

Mas, apesar de ter um potencial benéfico para a pessoa deprimida, ser diário pode se tornar prejudicial para ambos os envolvidos. "A pessoa-diário não tem o estudo ou preparação para ajudar o outro ativamente. Imagino que deve ser muito difícil ler tudo que estão contando e não se envolver, seja emitindo opinião ou absorvendo o problema das pessoas. Se ela emite opinião, pode acabar causando um estrago, mesmo sem querer. Também acho preocupante pensar em onde essa informação vá parar: alguém que está deprimido pode se abrir para um estranho mal-intencionado".

Busin crê que o lado positivo é ter uma pessoa de confiança que dará atenção sem julgar, e que isso pode ajudar no processo terapêutico --mas que nunca vai substituir o papel do psicólogo. "Na faculdade de psicologia, aprendemos a manter um distanciamento emocional para entender pelo que o outro está passando, mas sem sentir o que ele está sentindo. Isso não é tão simples quanto parece, por isso que o diário nunca vai substituir a terapia."

Não é a mesma coisa que o CVV

Apesar de fazerem isso voluntariamente, ser um diário é algo informal, diferentemente do que acontece no Centro de Valorização da Vida (CVV), que oferece apoio emocional e prevenção ao suicídio por telefone e online. Tino Perez, voluntário do CVV há dez anos e um dos porta-vozes da instituição, explica que, para que possa atender as pessoas no Disque 188, o aspirante a voluntariado deve passar por um treinamento que dura cerca de 12 semanas.

"Recebemos treinamento para não usar termos como 'vai ficar tudo bem', ou 'calma, tudo vai melhorar'. A gente não pode garantir que vai melhorar mesmo ou que tudo vai passar logo. Também somos orientados a não utilizar termos religiosos, como "Deus está contigo". Quando a gente conversa com a pessoa, não sabe quem está do outro lado, se ela acredita em alguma religião. Outra orientação é que não fiquemos só respondendo 'sim, sim, aham' do outro lado da linha. Incentivamos a pessoa a desabafar, contar sobre o que ela sente".

Ele explica que o trabalho do CVV é ser uma escuta empática, e que só fornece ajuda quando a pessoa pede. "Por exemplo, se alguém quer informações sobre como ajudar um filho que é dependente químico, alguém que passou por uma violência sexual e quer denunciar, ou se alguém precisa de acompanhamento psicológico e psiquiátrico. Nesses casos, informamos os órgãos públicos que possam atendê-los", conta.

Se você está passando por algo semelhante ou conhece alguém que precise de ajuda, disque 188 - Centro de Valorização da Vida. A ligação é gratuita.