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"Fui casada por 28 anos; um dia, acordei e ela tinha morrido"

Laïs de Castro perdeu a mulher, Ester, com quem viveu por 28 anos - Arquivo pessoal
Laïs de Castro perdeu a mulher, Ester, com quem viveu por 28 anos Imagem: Arquivo pessoal

Camila Brandalise

Da Universa

08/05/2019 04h00

A perda da mulher depois de 28 anos de relacionamento fez Laïs de Castro cogitar o suicídio. "Achava que não conseguiria sobreviver." Uma amiga sugeriu que ela fosse ao Uruguai, tomar uma injeção letal. Ela mudou de ideia, mas nem poderia levar o plano adiante: o suicídio assistido já é discutido, mas ainda não é legalizado no país. O que a levou a pensar em formas de morrer foi a tragédia de um domingo de 2018. Aos 72 anos, Laïs acordou e chamou pela mulher, mas não ouviu resposta. Ester tinha ido à academia da casa em que viviam, no interior de São Paulo, e sofreu um infarto fulminante enquanto caminhava na esteira. Foi encontrada no chão.

Um ano depois de perdê-la, Laïs, que é jornalista e escritora, lançou "Vida a Duas - O Livro do Nosso Amor", contando a história do casal. Escreveu nos seis meses seguintes à morte de Ester, quando se viu desesperada pela falta que a mulher lhe fazia. "Eu era feliz e sabia." Há um mês, voltou para a capital paulista --cidade onde viveu por quase toda a vida. Laïs mora em um apartamento amplo, em meio a uma reforma, com os móveis básicos e poucos objetos. Na casa, também vive Catraca, a gata de Laïs e Ester: "Ela fica muito no meu quarto. É velhinha e está doente." Leia, abaixo, o relato de Laïs:

"No dia em que a Ester morreu, tomei um pileque para conseguir dormir. Sentia uma tristeza profunda, profunda. O tempo foi passando, e eu achava que não sobreviveria. Falei para uma amiga: 'Não consigo segurar essa barra. Eu vou me matar'. Ela disse que, no Uruguai, eu poderia tomar uma injeção letal e me perguntou: 'Quer que eu te leve para lá?'

"Não te amo, mas quero ficar com você"

Ester e eu nos conhecemos em maio de 1990. Eu tinha 44 anos e ela, 40. A gente não se apaixonou de repente. Começamos a sair e gostávamos da companhia uma da outra. Cheguei a dizer: 'Olha, eu não te amo, mas quero ficar com você'. E ela disse que sentia o mesmo. Demorou uns seis meses para ver que era amor. Eu acordava e, se não estivesse com ela, já queria ligar. Queria ficar junto, sair, fazer algum programa.

A gente brigou bastante até as coisas se encaixarem. Eu era muito esquentada, do tipo que xingava no trânsito. Ela chegou a dizer que, se eu continuasse assim, terminaria comigo. Mudei na hora. E quanto mais a gente convivia, mais se gostava.

Carinho, cuidado, amor

Nossa relação era gostosa, tranquila e de muito carinho. Tínhamos muito cuidado uma com a outra. Quando eu acordava e ela não estava em casa, sempre encontrava um bilhete dela dizendo aonde ia, me deixando um beijo. Guardei todos. São centenas. Ela me chamava de 'baixinha'.

Construímos uma casa em uma cidade do interior, no meio do mato, e vivemos lá nos últimos dois anos e meio. Foram os melhores anos da minha vida. Estávamos maduras, com uma boa situação financeira, completamente apaixonadas. Nossos olhares eram uma troca de palavras. A gente ficava em casa vendo filmes, recebia casais de amigos para jantares e festas, viajávamos para fora do país...

Já me disseram que tive sorte por viver um grande amor. É difícil pensar assim. Sorte seria ter ela aqui comigo. Mas entendo porque me dizem isso: pouca gente consegue viver uma coisa tão boa quanto eu vivi.

Relação totalmente dentro do armário

Nossa relação era totalmente dentro do armário. Para todo mundo, a gente era amiga. Quando nos mudamos para Franca, no interior de São Paulo, ela me apresentava como prima. Dizia que eu tinha ido morar com ela porque não queria ficar sozinha em uma cidade nova.

As pessoas eram muito preconceituosas. Ela morreu e eu continuei como a prima. Não falo nem o sobrenome dela para não identificar o filho. Acho que ele pode sofrer preconceito. Por que não evitar uma amolação? Infelizmente ainda é assim.

A perda da melhor companheira

Na noite anterior à morte da Ester, eu estava no quarto me arrumando para dormir e ela, já na cama, sonolenta, me disse: 'Laïs, você é a melhor companheira que tive em toda a minha vida'. Respondi que a recíproca era verdadeira. Eu admirava demais a Ester. Ela era formada em física, de uma família simples, e se tornou reitora de uma universidade. Era inteligente, educada, simpática.

Quando ela me falou aquilo, naquela noite, nem dei muita bola. Hoje, fico pensando nisso, parece que tudo faz sentido. O dia seguinte era um domingo, eu acordei de manhã e, primeiro, achei que ela tinha saído. Mas aí vi a bolsa, o carro, o celular. Comecei a procurá-la. Chamava: 'Ester, Ester'. E não achei. Chamei um vizinho, ele foi até nossa casa e a encontrou.

Ela estava morta na academia. Foi fazer esteira e morreu. Teve um infarto fulminante. Saí de lá no dia seguinte, eu e o corpo dela, e nunca mais voltei. Não sei nem o que fazer com aquela casa.

Terapia do luto

Fiz terapia do luto por seis meses. A psicóloga me ajudou a mudar de postura e aceitar o que aconteceu. Eu já ia para as sessões com um rolo de papel higiênico. Chorava, chorava. Eu falei para ela: 'Vou me matar'. E ela falou: 'Calma, não vai ainda, não. Espera um pouco, vamos conversando, vamos ver o que dá'.

Esse pensamento passou um pouco. Eu me mudei para São Paulo e, aqui, tenho uma irmã de 89 anos, não posso fazê-la sofrer. Tem também minha gata, a Catraca, que depende de mim.

Minha casa está em reforma, estou vivendo. Mas nada mais tem graça como antes, nem as coisas simples, como ver um filme, ir a uma festa. Tenho um grupo de amigas que encontro para jogar cartas. São da época do colégio, e estamos todas sozinhas agora. É bom ter a companhia delas.

Já ouvi que tinha que ir para a igreja rezar. Sou agnóstica, não acredito em nada. Rezar não me deixaria em paz. Não fiz nem missa de sétimo dia. O que fiz foi lançar um livro quando a morte da Ester completou um ano.

Do desespero veio um livro

Eu estava desesperada após a morte dela e tinha que fazer alguma coisa para botar meus sentimentos para fora. Sentei na frente do computador e comecei a escrever o que dava vontade: poesias, cartas para a Ester, histórias nossas.

Um dia, percebi que o que tinha escrito poderia virar um livro. Conversei com uma amiga e pedi que ela o editasse. Ela leu tudo o que eu tinha e organizou o livro 'Vida a Duas'. Quero colocar à venda agora em maio. Por enquanto, estou dando aos amigos. Junto com o livro, entreguei uma foto da Ester com os dedos nos lábios e dizia: 'A Ester te mandou um beijo'. E escrevi em todas as dedicatórias um pedido: que ninguém se esqueça dela."