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Primeira vítima de homofobia registrada no Brasil foi índio morto em 1614

O índio tupinambá Tibira foi a primeira vítima de homofobia registrada no Brasil, em 1614 - Reprodução
O índio tupinambá Tibira foi a primeira vítima de homofobia registrada no Brasil, em 1614 Imagem: Reprodução

Marcelo Testoni

Colaboração para Universa

01/04/2019 04h00

Segundo o Grupo Gay da Bahia (GGB), o Brasil contabilizou em 2018 o assassinato de 420 LGBTs. Já de acordo com Julio Pinheiro Cardia, ex-coordenador da Diretoria de Promoção dos Direitos LGBT do Ministério dos Direitos Humanos, 8.027 pessoas LGBTs foram mortas no país entre 1963 e 2018 em razão de orientação sexual ou identidade de gênero.

Dados desse tipo, de antes da década de 1960, são mais difíceis de serem rastreados, mas entre as evidências de que LGBTs são perseguidos e mortos no Brasil não há anos, mas séculos, está o caso de Tibira, índio assassinado em 1614, amarrado pela cintura à boca de um canhão. Até o momento, esse é o registro de crime homofóbico mais antigo do Brasil.

São os tupinambás tão luxuriosos

No local onde o índio Tibira foi executado foi instalado um monumento à sua memória - Reprodução - Reprodução
No local onde o índio Tibira foi executado foi instalado um monumento à sua memória
Imagem: Reprodução

"Os índios do Brasil cometem pecados que clamam aos céus", escreveu à Coroa Portuguesa o jesuíta Padre Manuel da Nóbrega, em 1549. Já o historiador português Gabriel Soares de Sousa, em "Tratado Descritivo do Brasil", de 1587, registrou que: "São os tupinambás tão luxuriosos que não há pecado que eles não cometam".

Além dos portugueses, franceses, em especial um grupo que aportou no Maranhão liderado pelo frade capuchinho Yves D'Évreux, também ficaram chocados com a existência de tibiras --termo da língua tupi para designar índios gays. Um desses nativos, registrado por D'Évreux em seu diário "Viagem ao Norte do Brasil feita nos anos de 1613 e 1614", pertencia à tribo dos tupinambás e, apesar de parecer "no exterior mais homem", também era "hermafrodita" e tinha "voz de mulher" --o que justificava, na visão dos colonizadores, sua conversão e punição motivada por medo e também pecado de sodomia contra Deus.

Além dos tupinambás, outras tribos, como nambiquaras, guaicurus, tikunas, bororos e xambioás também aceitavam, de maneira natural, a homossexualidade. "Havia mesmo homens passivos que mantinham cabanas próprias para receberem seus parceiros e muitos possuíam 'tenda pública', recebendo outros homens como se fossem prostitutas. Aqueles que eram ativos chegavam a vangloriar-se destas relações, considerando-as sinal de valor e valentia, embora o termo tivira ou tibira fosse, por vezes, utilizado como ofensa."

"Entre as mulheres, algumas adotavam os penteados e as atividades masculinas, indo com eles à guerra e à caça, além de casarem-se com outras mulheres, adquirindo toda espécie de parentesco adotivo e obrigações assumidas pelos homens em seus casamentos; eram as chamadas çacoaimbeguira", explica o historiador Amílcar Torrão Filho em seu livro "Tríbades galantes, fanchonos militantes: homossexuais que fizeram história".

Assassinato disfarçado de exemplo

Com tantos indígenas cometendo "o mais torpe, sujo e desonesto dos pecados", como dizia d'Evreux, era preciso frear um contagio, que poderia atingir também o homem branco, e esse índio, imortalizado na história como Tibira, foi capturado e morto para dar exemplo do que poderia acontecer aos demais nativos e colonos. Seu fim foi registrado pelo próprio Yves D'Évreux, que ainda batizou Tibira com o nome do "bom ladrão", Dimas, perdoado por Cristo na crucificação.

Em "A Inquisição no Maranhão", de Luiz Mott, doutor em antropologia e professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA), é dito que depois o índio "foi amarrado na boca de um canhão sendo seu corpo estraçalhado com o estourar do morteiro, 'para purificar a terra de suas maldades'".

Tratada como um espetáculo cruel, essa execução pública aos pés do Forte de São Luís do Maranhão, apesar de arbitraria, sem autorização do papa ou da Inquisição, contou ainda com a participação do cacique Caruatapirã, rival de Tibira e aliado dos franceses, e a presença de autoridades civis e militares europeus e chefes de diversas tribos indígenas.

Reparação histórica

Pesquisadores e militantes LGBT pedem que Tibira seja reconhecido pela Igreja Católica como o primeiro mártir gay indígena das Américas - Reprodução - Reprodução
Pesquisadores e militantes LGBT pedem que Tibira seja reconhecido pela Igreja Católica como o primeiro mártir gay indígena das Américas
Imagem: Reprodução

Em dezembro de 2016, durante a Semana Estadual de Direitos Humanos, no Maranhão, ocorreu uma reparação histórica à memória do índio Tibira. Na ocasião, foi realizado o workshop "Tibira do Maranhão - Primeiro Caso de Homofobia na Era Cristã do Maranhão" e a inauguração de uma lápide em sua homenagem, na Praça Marcílio Dias, no centro de São Luís.

Na ocasião, o professor Mott, que também é militante LGBT e um dos pesquisadores mais influentes sobre Tibira, tendo publicado o livro "São Tibira do Maranhão, 1614-2014, Índio Gay Mártir", discursou: "Relembrar o episódio que aconteceu com o índio Tibira, que foi executado, vítima de homofobia, é um apelo à intolerância e ao respeito à diversidade. Dessa maneira, só posso pedir respeito aos LGBT, pois todos somos seres humanos e merecedores de respeito como quaisquer cidadãos".

Em 2014, o Grupo Gay da Bahia lançou uma campanha pela canonização de Tibira e seu reconhecimento pela Igreja Católica como o primeiro mártir gay indígena das Américas --o que até hoje não se concretizou. Tibira também inspirou o cordel "Tibira do Maranhão: Santo Homossexual", de autoria da pesquisadora Salete Maria da Silva, da Universidade Federal da Bahia, e o documentário "Tibira É Gay", do cineasta Emílio Gallo, lançado em 2007.