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Fui considerada inadequada, diz médica de HIV demitida após cartilha trans

A médica sanitarista Adele Benzaken foi exonerada de seu cargo pelo Ministério da Saúde no último dia 11 - Divulgação
A médica sanitarista Adele Benzaken foi exonerada de seu cargo pelo Ministério da Saúde no último dia 11 Imagem: Divulgação

Jacqueline Elise

Da Unversa

18/01/2019 04h00

A médica sanitarista Adele Schwartz Benzaken foi exonerada do cargo de diretora do Departamento de Vigilância, Prevenção e Controle das ISTs (Infecções Sexualmente Transmissíveis), do HIV e Hepatites Virais do Ministério da Saúde no último dia 11. Adele trabalha há 40 anos com prevenção de doenças sexualmente transmissíveis, ficou por cinco anos e meio no Ministério da Saúde e foi convidada no governo do ex-presidente Michel Temer para o cargo no departamento. 

A exoneração da especialista foi motivo de comoção entre entidades médicas e grupos que trabalham pelo combate ao vírus HIV e à AIDS. A decisão do governo em demiti-la foi tomada depois da declaração do ministro Luiz Henrique Mandetta, de que "o governo precisava voltar a estimular a prevenção do HIV, mas sem ofender as famílias", e após a retirada de circulação de uma cartilha destinada a homens transgêneros para prevenção de DSTs.

A médica manauense, de 63 anos, trabalhava de 12 a 14 horas por dia. "Sou alguém apaixonada pelo que faz, e sei que vou sentir falta do trabalho e dos resultados. Eles podem dizer que eu sou inadequada, mas não podem dizer que sou incompetente", diz Adele em entrevista à Universa. 

O Ministério da Saúde informa que a médica foi convidada a continuar contribuindo com a política, mas ela diz que nada foi oficializado.

Por que a senhora foi demitida?

O que foi citado pelo secretário de vigilância Wanderson Kleber de Oliveira quando conversamos sobre a exoneração foi a cartilha para os homens trans. Como era um cargo de confiança, portanto, eles têm todo o direito de procurar outra pessoa, de achar que eu não tenho o perfil. Quanto à cartilha, ela é super antiga, foi idealizada em janeiro do ano passado e, em julho, eu estava ftrabalhando nela de acordo com o próprio ministro da saúde (o antigo).

O governo federal não aceitou o seu trabalho envolvendo pessoas trans?

Acho que fui considerada "inadequada" para este governo. Sou alguém apaixonada pelo que faz, e sei que vou sentir falta do trabalho e dos resultados -- eles podem dizer que eu sou inadequada, mas não podem dizer que sou incompetente. 

O que havia de tão "inadequado" na cartilha? 

Eu realmente não sei. É complicado pensar pela cabeça deles. O que posso dizer é que trabalho com DSTs antes mesmo do surgimento do HIV e da AIDS e que tenho 40 anos de experiência nesta área. Eu não sou filiada a partido algum, no meu Facebook não tem nada de política. Claro, trabalhei mais próxima ao governo Temer porque o ministro dele me chamou para ser a diretora do departamento, mas eu já tinha um cargo no Ministério da Saúde.

O novo ministro da Saúde, falando sobre sua exoneração, mencionou que pretende "estimular a prevenção do HIV, mas sem ofender as famílias". O que pode ter de tão ofensivo às famílias nisso?

Eu sou uma mulher de uma nota só, só tive um marido com quem tenho três filhos, que desde pequenos me ajudam nas ações de prevenção, e em nenhum momento eles se tornaram pessoas que não contribuem com a sociedade. Não sei o que tem, neste tema, que possa ofender famílias. E na cartilha, não tem palavreado chulo; as coisas são chamadas da forma que realmente são. 

A senhora foi convidada a continuar contribuindo para esta área e para o departamento. Tem interesse?

O ministro e o secretário ficam dizendo para os repórteres que me convidaram para assumir outro posto, mas eles não verbalizaram qual posto seria. Wanderson me perguntou se eu gostaria de ter outro cargo, mas o convite oficial ainda não chegou a mim. Eu sou uma profissional médica que trabalha para o Ministério antes mesmo de existir o departamento. Não é porque fui exonerada que deixarei de contribuir com eles. Sei que tenho com o que contribuir. Sou uma servidora do meu Estado, no Amazonas, e eu só pude estar aqui em Brasília por concessão do governo, e isso só acontece quando você tem um cargo comissionado. Agora, eu volto a ser médica da Fundação de Medicina Tropical de Manaus, dentro da pós-graduação, mas sempre que o departamento quiser minha colaboração como técnica, não terei problema algum em participar. Me dou muito bem com todos os funcionários. Agora, se eles vão escutar ou não, é outra história.

A senhora tem dito que o Brasil pode ter outra epidemia de HIV/AIDS. Como isso seria aconteceria?

O Brasil tem hoje o que a gente chama de epidemia concentrada. As taxas são elevadas em populações específicas e mais vulneráveis, como as profissionais do sexo, homens que fazem sexo com homens, pessoas que usam álcool e outras drogas e as pessoas trans. Se as campanhas pararem, essas pessoas, que chamamos de populações-chave, podem passar o vírus para o que chamamos de populações-ponte, que são os que se relacionam sexualmente com os chave. 

Em quanto tempo a epidemia pode acontecer?

Se o trabalho com estas populações não acontecer, o HIV pode se tornar uma epidemia generalizada entre quatro e oito anos. Um exemplo de onde estamos vendo isso é no Rio Grande do Sul: lá, já existem indícios de que a epidemia está se espalhando. O último estudo demonstra que existe uma prevalência portadores de HIV de 2% entre gestantes.

Quais foram os grandes feitos que fizeram parte de sua gestão no Departamento?

A mortalidade de portadores do HIV caiu; o número de mulheres infectadas pelo vírus também reduziu; a transmissão vertical, de mãe para filho, diminuiu; trouxemos a PrEP para cá, disseminamos o autoteste para saber se a pessoa possui o vírus. Nós incorporamos todas as recomendações da Organização Mundial da Saúde, e fomos muito elogiados por isso.