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Afinal, o que é a ideologia de gênero da qual o presidente fala?

Ideologia de gênero nega que exista uma divisão entre homens e mulheres? Entenda - Getty Images/iStockphoto
Ideologia de gênero nega que exista uma divisão entre homens e mulheres? Entenda Imagem: Getty Images/iStockphoto

Camila Brandalise

Da Universa

04/01/2019 04h00

Em seu primeiro discurso como presidente, na terça-feira (1), Jair Bolsonaro fez a seguinte declaração:

"Vamos unir o povo, valorizar a família, respeitar as religiões e nossa tradição judaico-cristã, combater a ideologia de gênero, conservando nossos valores."

Não é a primeira vez que a expressão é dita por ele, que já a usou em outras falas públicas, tuítes, campanha e entrevistas, assim como seus correligionários e apoiadores - na última vez, a ministra Damares Alves, de Mulheres, Família e Direitos Humanos, afirmou que "menino usa azul e menina usa rosa" como uma metáfora contra essa linha de pensamento.

Mas, afinal, o que significa ideologia de gênero?


De onde surgiu?

O termo foi cunhado pela Igreja Católica, na Conferência Episcopal do Peru, em 1998, para se referir a uma linha de pensamento que seria contrária à divisão da humanidade entre masculino e feminino. Nela, os gêneros são moldados de acordo com a estrutura cultural e social dos indivíduos. Essa ideologia é considerada pelos religiosos um perigo para o mundo, uma doutrina que poria em risco a concepção de família. 

No Brasil, a expressão reverberou a partir de 2004, quando foi elaborada a proposta da Escola Sem Partido, que teve como principal defensor o próprio Bolsonaro. Passou ser usada, principalmente, pela bancada evangélica. O projeto, que foi arquivado em 2018 na Câmara dos Deputados, propõe que o poder público não permita "qualquer forma de dogmatismo ou proselitismo na abordagem das questões de gênero". Os estudos de gênero, desde essa época, passaram a ser vistos como uma "doutrinação da esquerda" para atacar valores morais, como a família.


Não é um conceito teórico

A questão é que, entre pesquisadores da área, essa linha de pensamento nem sequer existe.

Doutora em estudos de representatividade de gênero pela UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), a escritora Fernanda Friedrich afirma que os teóricos não negam diferenças físicas e biológicas de homens e mulheres. "O que fazemos é identificar essas diferenças e compreender como elas criam desigualdades entre as pessoas. Por exemplo, por que um homem branco tem uma relação com a sociedade e uma mulher negra tem outra?", questiona.

Como explica o pesquisador Rogério Diniz Junqueira, do Centro de Estudos Multidisciplinares Avançados da UnB (Universidade de Brasília), o termo ideologia de gênero não é considerado um conceito teórico, mas um sintagma - ou seja, um termo inventado que passou a ser usado como slogan. 

Slogan para quê? "Para ir contra o gênero, contra as conquistas do feminismo e contra LGBTIs", afirma Junqueira. Ele diz que a expressão é usada em tom alarmista, chamando para enfrentar um "inimigo imaginário". "E, em nome da luta contra ele, se empreendem ações políticas voltadas a reafirmar e impor valores morais tradicionais e pontos doutrinais cristãos dogmáticos intransigentes", afirma ele em um de seus artigos.

"Querem impor essa ideologia"

Professora de Teologia do Uninter (Centro Universitário Internacional), Arlene Denise Bacarji discorda. Ela, que também tem artigos sobre o tema, afirma que o termo se refere à ideia de que a sexualidade humana é construída somente pela cultura e pela sociedade, o que, a seu ver, é um equívoco.

"O pessoal que criou essa teoria de gênero, como a [filósofa] Judith Butler, diz que é uma construção social, e que ser mulher ou ser homem não tem a ver com a questão biológica", afirma. "Querem impor essa ideologia. Podem até discutir, mas não podem fazer com quem não concorda com ela a aceite. E não é porque não acredito nessa teoria que sou homofóbica."

"É um perigo para nós", afirma mulher trans sobre termo

Presidente da Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais), Keila Simpson afirma que o argumento da imposição não é verdadeiro. "Cresci no interior do Maranhão, não há ninguém trans na minha família e desde os 12 anos me identifico como mulher, apesar de ter nascido com a genitália masculina. Ninguém me impôs nada, não é assim que funciona", diz. "Considero que a expressão foi cunhada para perseguir e aniquilar nossos direitos. Deslegitima nossas liberdades individuais, ainda mais quando faz parte do discurso de um presidente."

Para a escritora e ativista trans Helena Vieira, a ideia de que uma pessoa é definida somente pelos cromossomos os genitais retira dos trans o direito de existirem. "Dizem que somos doentes, que não é normal e que o problema precisa ser corrigido com medicina, com religião. Esse discurso autoriza a violência contra a população trans", afirma. 

A ideologia de gênero pretende acabar com a família ou ensinar crianças a serem gays?

Não. Os estudos de gênero, como explicado pela pesquisadora Fernanda Friedrich, têm como objetivo mapear diferenças sociais entre gêneros e não negá-las. A intenção é mostrar como as desigualdades surgem.

Não há, segundo pesquisadores, intenção de impor um estilo de vida, uma escolha ou uma determinada orientação sexual às pessoas. Tampouco doutrinar crianças nas escolas. A proposta de falar sobre gênero em sala de aula se baseia no compromisso ético da educação, segundo Jane Felipe de Souza, professora da Faculdade de Educação da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), coordenadora do Grupo de Estudos de Educação Infantil e Infância e integrante do Grupo de Estudos em Educação e Gênero. "A criança pode vir de uma família que menospreza mulheres, gays e lésbicas e, nesse caso, há um compromisso ético em falar sobre gênero para ensinar o aluno a respeitar o outro indivíduo."