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"Ele disse que queria me contaminar". Veja histórias de mulheres com HIV

O Dia Mundial de Luta contra a Aids foi criado há 30 anos  - Getty Images/iStockphoto
O Dia Mundial de Luta contra a Aids foi criado há 30 anos Imagem: Getty Images/iStockphoto

Luiza Souto

Da Universa

01/12/2018 04h00

“Sabe quando as pessoas falam sobre  HIV? Uma vez por ano, no Dia Mundial da Luta Contra a Aids”, resume a professora de inglês Aurea Carolina Coelho More, de 43 anos, que convive com o vírus há 12 anos.

A data, celebrada no dia 1º de dezembro, foi criada há 30 anos pela Assembleia Geral da ONU e a Organização Mundial de Saúde. À época, 65,7 mil pessoas tinham sido diagnosticadas com o vírus, e 38 mil haviam morrido em decorrência da Aids.

Três décadas depois, quase 37 milhões de pessoas convivem com o HIV (a sigla em inglês do vírus da imunodeficiência humana) pelo mundo, de acordo com a Unaids (Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS). Mas as mulheres infectadas dizem ainda faltar muita informação -- e responsabilidade para lidar com esse mal. À Universa, elas contam sua história, algumas sob anonimato para se proteger do preconceito que cerca quem contraiu o vírus.

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"Ele quis me passar o vírus para não me perder"

A professora de Educação Física Camila*, de 26 anos, foi casada por oito anos com o pai de sua filha, mas o casal de separou por seis meses, tempo suficiente para ela ter relações com um homem por duas vezes e contrair o vírus. Ela descobriu o HIV há dois meses, depois de fazer uma doação de sangue. Ela estava voltando para o ex, que não contraiu.

“Conheci esse cara em janeiro, por meio de amigos em comum. Ele sabia que tinha o HIV e falou na minha cara que quis me contaminar. Disse que fez isso por ser a única forma de não me deixar voltar com meu ex e ficar com ele. Me culpei por ter sido burra, me achei suja, que não tinha direito a nada na vida. Foi uma dor muito forte.

A primeira coisa que veio na minha cabeça foi a de que iria morrer. Chorei por 15 dias inteiros, perdi sete quilos. Só pensava que não veria minha filha de 5 anos crescer. Meu ex-marido teve muito preconceito comigo, disse que só contrai o HIV quem é vagabunda e faz sexo com qualquer um. Falou que eu ficaria igual ao Cazuza, que vou morrer seca. O preconceito machuca muito. Ele me deixou.

Ninguém da minha família sabe. Minha mãe teve AVC (acidente vascular cerebral) na mesma época que descobri ser soropositiva, e resolvi poupá-la. 

Não me relacionei com ninguém ainda, nem pretendo por um bom tempo. Uma pessoa queria ficar comigo e contei, logo na primeira investida, que sou soropositiva. Ele disse que trabalha na área da saúde, que não liga, mas não me sinto preparada.

Trabalho numa escola, e recentemente uma enfermeira foi dar palestra sobre HIV, Aids e sífilis. Ouvi dos professores que quem contrai é burro e tem mais é que morrer. Isso machuca muito. Tenho nível superior, sabia do preservativo, mas na hora da empolgação a gente esquece, confia que o parceiro é saudável. Não temos o costume de pedir para a pessoa fazer um teste antes de se relacionar. Ou usamos preservativo por um tempo e depois abandonamos. Precisamos nos cuidar mais".

mulheres com hiv - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
A professora Aurea Carolina tem HIV há 12 anos
Imagem: Arquivo pessoal

“Não quis descobrir se meu marido me traiu”

A professora de inglês Áurea Carolina Coelho More, de 43 anos e há 12 com o vírus, resolveu criar a página “Mulheres vivendo com HIV” para ajudar quem vive na mesma situação. Em 2006, ela tinha completado cinco anos de casada quando o marido ficou muito doente. Os dois descobriram o diagnóstico quatro meses antes dele falecer.

“Passamos dois anos procurando o que meu marido tinha, mas nunca pediram um exame de HIV neste período. Ele era lindo, alto, com 1,90 metro de altura. Quando descobrimos a Aids, ele já estava na fase terminal, pesando 42 quilos.

Assim que soube o resultado dele, fiz exame também. Deu positivo, mas nem consegui prestar atenção em mim porque estávamos lutando pela vida dele. Afastei o questionamento sobre de quem era a culpa. A gente faz escolhas. Nunca pedimos teste de HIV um para o outro. Diante de um sofrimento tão horroroso, eu só pensava em vê-lo bem. Mesmo que fosse procurar se ele me traiu, não era o momento.

Levei dois anos com medo de não acordar, ou de ficar perto de alguém com gripe e acontecer alguma coisa. Depois, entendi que eu não era um risco para a sociedade, não era nenhuma leprosa e que levaria uma vida normal como mulher.

Nossa família foi maravilhosa. Quem sugeriu pedir o exame de HIV para meu marido foi meu pai. Ele quem estava comigo quando abri o diagnóstico. Mas amigos e parentes evitavam compartilhar até copos comigo.

O maior preconceito que eu senti foi tentando construir minha vida afetiva. Eu revelo de cara a minha condição num encontro, e é uma situação muito dolorosa. Já aconteceu de uma pessoa surtar e falar coisas horríveis, sendo que ele nem tinha encostado em mim. A maioria fala que não consegue lidar com isso.

Me casei de novo, me divorciei e namoro há dois anos. São homens esclarecidos, sabem que, pelos meus exames, tenho uma carga viral indetectável. Isso quer dizer que não é possível transmitir o vírus sexualmente [explicamos como detectar abaixo]. E o amor e o afeto falam mais alto.

Tomo dois comprimidos por dia e penso em engravidar. Viver com HIV é como ter pressão alta e diabete: tem sempre que controlar. Eu me sinto muito bem, obrigada. Se tiver a cura, está bom, mas não vai fazer diferença.

As pessoas pararam de falar sobre preservativo e educação sexual. Só falamos de HIV uma vez por ano. As pessoas sequer sabem a diferença entre HIV e Aids. Todo dia me perguntam se vão pegar Aids pelo ar, na manicure. Quem descobre o diagnóstico, me pergunta se vai morrer. Não se pode sair de uma consulta com diagnóstico positivo com esse tipo de dúvida".

“Não vou te abandonar por conta disso”

A funcionária pública Angela Rafa, de 33 anos, descobriu ser soropositiva no começo do ano. Casada há quase dois anos, afirma que o marido ficou ao seu lado.

“No começo do ano, estava querendo engravidar, e procurei um ginecologista. Ele passou vários exames, incluindo o de HIV. Quando recebi o resultado, a primeira coisa que veio na cabeça é que logo iria morrer. Comecei, em seguida, o tratamento.

Sou casada há um ano e nove meses, mas o exame do meu marido deu negativo. Pensei que ele ia me deixar, mas me apoia até hoje. Quando pegou o meu resultado, ele olhou para mim e falou: 'Não vou te abandonar por conta disso'.

Desconfio de um antigo relacionamento, porque ele sumiu sem se despedir. Por muito tempo, me culpei bastante por ser promíscua. Achava que as pessoas eram sinceras e que o amor imunizaria tudo.

HIV x Aids

O vírus HIV ataca o sistema imunológico e causa a Aids. Quem é soropositivo, no entanto, pode não desenvolver a doença, mas é possível transmitir a outras pessoas pelas relações sexuais desprotegidas, compartilhamento de seringas contaminadas ou de mãe para filho durante a gravidez e a amamentação.

Também é possível que a mulher não transmita HIV ao parceiro, mas nem por isso elas devem deixar de tomar a medicação. Quem explica é o médico infectologista Rico Vasconcelos.

Os antirretrovirais (o "coquetel" anti-HIV) são capazes de reduzir a quantidade de HIV no sangue para níveis que são indetectáveis por testes laboratoriais padrão. Pode levar alguns meses até que se consiga reduzir os níveis de vírus a esses patamares e permitir que o sistema imunológico comece a se recuperar. Segundo pesquisas, pessoas com carga viral indetectável em seu sangue não transmitem o vírus sexualmente.

"Mesmo com a carga viral detectável, as diferentes relações sexuais não têm a mesma chance de transmitir o HIV. Uma mulher contaminada tem menos chance de transmissão para o homem do que o inverso. Então, se ela tiver a carga viral baixa, não estiver tomando antirretroviral, e só tiverem feito sexo vaginal, a chance de transmissão é bem pequena".

O novo Boletim Epidemiológico de HIV/Aids, lançado na última terça-feira (27) pela Secretaria de Vigilância em Saúde, aponta que no ano passado o Brasil contabilizou 42,4 mil novos casos de HIV e 37,8 mil casos de Aids. 

O levantamento revela ainda que desde 2012 a taxa de detecção de Aids no Brasil diminuiu: passou de 21,7 por 100 mil habitantes (2012) para 18,3 por 100 mil habitantes em 2017, um decréscimo de 15,7%.

O número de mortes por Aids também diminuiu: ano passado, foram registrados 11,5 mil óbitos, com uma taxa de mortalidade padronizada de 4,8 por 100 mil habitantes. Foi um decréscimo de 15,8% entre 2014 e 2017.