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Casais homoafetivos que adotaram filhos contam como lidam com o preconceito

"Quem questiona os novos formatos de família ainda está preso ao modelo da propaganda de margarina", diz a psicóloga - iStock
"Quem questiona os novos formatos de família ainda está preso ao modelo da propaganda de margarina", diz a psicóloga Imagem: iStock

Carolina Prado e Simone Cunha

Da Universa

01/11/2018 04h00

Casais homoafetivos que adotaram filhos ainda enfrentam muitos preconceitos no Brasil. São frequentes os comentários --alguns são feitos sem a intenção de ofender-- carregados de julgamentos e que expressam absoluta ignorância sobre as famílias formadas por um casal LGBT.

“Em geral, quem questiona os novos formatos de família ainda está preso ao modelo propaganda de margarina que, na realidade, é um dos formatos existentes na sociedade, mas não é o único”, afirma a psicóloga Anna Paula Uziel, professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

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Ela diz que ainda há muito preconceito velado. Por isso, casais homoafetivos que adotam crianças recebem críticas e olhares de espanto. E precisam lidar com isso, diariamente. “Ao saber do processo de adoção, minha própria mãe questionou se eu achava que aquilo estava correto. Ela queria saber como eu ia explicar para a criança depois”, conta Marcos Leonardo*, 36 anos, cientista político, casado há 14, pai de um menino de cinco anos.

Na família da Fernanda Simões, 37 anos, coordenadora comercial, as maiores dificuldades começaram a aparecer quando as crianças entraram na escola. Ela e a companheira, a bancária Andrea Markoski, de 32 anos, têm três filhos adotivos, Pedro, de 11 anos, Matheus e Isabelly, de 9. “O preconceito dos pais dos outros alunos é extremamente forte e eles repassam isso aos filhos”, diz. Perguntas como: “Vocês sentem falta de uma figura masculina?” ou “Quem faz o papel de homem?” ainda são bem comuns. E, muitas vezes, são feitas às crianças.

De acordo com a psicóloga, é importante conversar com os filhos a respeito do assunto, para que possam enfrentar as violências que eventualmente venham a sofrer. A escola também precisa estar seriamente engajada no propósito de garantir o respeito à diversidade. “Atividades pedagógicas adequadas às idades das crianças, incluindo essa temática, são fundamentais. As histórias com modelos diferentes de família são um bom exemplo. E há muitos livros em português para trabalhar essa questão”, afirma.

Constrangimentos também são comuns nas datas mais tradicionais do calendário, como Dia das Mães e Dia dos Pais. “Todo ano, o Dia dos Pais é um grande problema, porque a escola faz referência a isso. Nesse período, os dias acabam ficando bem turbulentos aqui em casa, para todos nós”, conta Fernanda.

Ainda é preciso repetir: ninguém aprende a ser gay

Juntos, o professor Toni Reis, 54 anos, e o tradutor David Ian Harrad, de 60, adotaram Alyson, 17, Jéssica, 15, e Filipe, 13. Eles encontraram uma maneira diferente de abordar a situação. “Pedimos para os nossos filhos listarem as perguntas mais inusitadas e, depois, nós os ajudamos a respondê-las”, conta. E a lista foi feita. Nela, apareceram questionamentos como: “Seus pais influenciam você a ser gay?”, “Quem é o ativo e quem é o passivo?”, “Você acha sua família normal?” e “Seus pais já sentiram atração por você?”. Toni acredita que foi um exercício saudável e que esse tipo de conversa ajuda a prepará-los para viver em sociedade.

“Em geral, as crianças se saem muito bem na defesa de seus núcleos”, avalia Anna Paula. A especialista reforça, ainda, que é essencial esclarecer que ninguém ensina ninguém a ser gay. “O desejo não é passível de condução”, destaca.

Já o presidente da Associação Brasileira de Famílias Homotransafetivas, Saulo Amorim, reforça que o preconceito é resultado da falta de informação, que pode cursar ou não com um viés ideológico ou com crenças religiosas. “Há quem considere que é melhor que a criança fique em um abrigo”, lamenta.

Amorim defende que é preciso responder aos comentários preconceituosos: “Não é o caso de devolver violência com violência. Mas quem fala qualquer besteira não deve ficar sem resposta”. Ele acredita que é preciso aproveitar os momentos oportunos para esclarecer e passar informação correta.

Comentários que machucam

“Meu filho não para quieto um minuto, como qualquer outra criança. Mas é visto por muitos como problemático”, diz a professora Priscilla Justus, 34 anos, casada com Rafaela Justus, 33 anos, empresária. Ambas são mães de Marília, 8, e de Luís, 6. Segundo Priscilla, toda indisciplina da criança é associada, pelos mais preconceituosos, à questão da adoção. “Tem gente que diz que sente pena deles”, comenta.

O advogado Pablo Henrique Silva dos Santos, 39 anos, conta que, quando adotou a filha Laura, 8, com seu ex-companheiro, uma cuidadora do abrigo se manteve muito próxima durante um bom período. “Só depois ela revelou que havia ficado preocupada porque a adoção tinha sido feita por dois rapazes”, lembra. Eles também são pais de João Paulo, de 3 anos. 

Para a psicóloga, a melhor maneira de lidar com os percalços é trazer as situações para a realidade, para acabar com essa visão equivocada de que não se trata de uma família como qualquer outra. “Dividir histórias de família e memórias afetivas pode ser uma estratégia. Assim, aos poucos, as pessoas vão deixando o ódio e a desconfiança de lado”, finaliza.

*Nome trocado a pedido do entrevistado