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"Fiquei cega aos 23 anos e tive que reconquistar a minha autonomia"

Nathalie Beccaro Werninghaus, 28, perdeu a visão por causa da retinopatia diabética - Arquivo Pessoal
Nathalie Beccaro Werninghaus, 28, perdeu a visão por causa da retinopatia diabética Imagem: Arquivo Pessoal

Natália Eiras

Da Universa

11/10/2018 04h00

Aos 23 anos, Nathalie Beccaro Werninghaus, atualmente com 28 anos e moradora de São Bernardo do Campo (SP), se considerava invencível. Diagnosticada com diabetes do tipo 1 desde os dois anos de idade, ela tinha uma vida ativa, trabalhava no departamento de Recursos Humanos de uma empresa e curtia tomar aquela cervejinha com os amigos no fim do dia. A partir de 2014, ela notou que as imagens começaram a escurecer aos poucos diante dos seus olhos, até que ela perdeu a visão. “Um dia acordei e não enxergava mais”, conta à Universa.

Dona de um senso de humor apurado e grandes olhos verdes, a jovem formada em Publicidade havia deixado os remédios para controlar a glicemia em segundo plano e acabou tendo retinopatia diabética, doença que afeta os pequenos vasos sanguíneos dos olhos, responsáveis pela formação de imagens. Desde então, a aspirante a musicista e YouTuber está trabalhando para reconquistar a autonomia para fazer atividades diárias como ir e vir dos lugares e mandar e-mails. “Ir até o mercado da esquina é uma vitória”, explica. Leia o depoimento:

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“Eu descobri que tenho diabetes do tipo 1 aos dois anos de idade. Sempre me cuidei, mas, quando comecei a trabalhar, eu perdi o controle. Na verdade, foi falta de vergonha na cara. Não tomava o remédio na hora certa, comia o que não devia, bebia bastante. Nessa época, eu perdi bastante peso. Cheguei a pesar 49 kg tendo 1,70 m. Eu parecia uma caveirinha.

Eu passei bastante tempo na minha juventude com a glicemia descompensada. Cheguei a ficar internada três vezes por conta disso. Mas, no fim de 2012, comecei a me cuidar um pouco melhor. Voltei a ir ao médico e a ter mais atenção com a minha alimentação.

Porém, no começo de 2014, percebi que a minha noção de profundidade da visão do olho havia diminuído um pouco. Os objetos pareciam que estavam mais longe do que realmente estavam. Fiquei preocupada e marquei uma consulta no oftalmologista para investigar o problema.

Um dia antes da consulta, eu acordei com uma mancha na visão do olho esquerdo. Quando fui à consulta, o especialista me disse que eu tinha tido uma hemorragia. Fizemos um exame de fundo de olho e ele percebeu que os dois olhos já estavam comprometidos. Eu tinha tido uma retinopatia diabética.

O médico me encaminhou para o CEMA (hospital especializado em olhos, ouvidos, nariz e garganta localizado na Mooca, zona leste de São Paulo (SP)), onde eu fiz um tratamento que durou cerca de 2 meses. 

Perdi primeiro a visão do olho direito. No começo de maio de 2014, acordei com a visão escura e fui direto para a emergência.

No dia 31 de maio, quando acordei, eu já não estava enxergando mais com o olho esquerdo. Eu tive outra hemorragia, por isso apenas tinha algum vislumbre de sombra ou de luz. Os médicos disseram que o meu olho absorveria o sangramento, mas desde então eu não voltei a enxergar.

Na época, eu ainda tinha esperanças de voltar a enxergar ou, pelo menos, recuperar um pouco da visão. Conforme fui passando por várias intervenções cirúrgicas, voltei a perceber sombras e movimentos, mas também comecei a entender que não voltaria a ver 100%.

No começo, eu fiquei bastante chocada. Eu estava sempre estudando, lendo muito, trabalhando. A princípio, acreditei que não ia servir para mais nada.

Eu trabalhava no departamento de Recursos Humanos de uma empresa, então precisava ter visão para fazer as fichas, escanear as coisas. Por isso, parei de trabalhar. Fiquei quatro meses em casa sem ter uma ocupação. Em outubro de 2014, eu decidi que precisava fazer algo, porque se eu ficasse sem fazer nada eu ia ficar doida, então comecei a ter aulas de música.

Comecei primeiro com a aula de canto, depois comecei com o violão. Foi algo que me ajudou a ocupar a minha cabeça. Foi como uma terapia. A gente tem uma sensação de que ninguém vai querer nos aceitar, se relacionar com a gente. As aulas de música, no entanto, me ajudaram a fazer novas amizades. 

No começo de 2017, a mãe de uma amiga me indicou o Centro Especializado de Reabilitação da Secretaria de Saúde de São Bernardo do Campo, onde passei a fazer terapia ocupacional e treinamento de mobilidade. Lá, comecei a aprender a usar bengala e ter autonomia para andar na rua e para fazer atividades do dia a dia. No mesmo complexo tem a Escola Rolando Ramaccioti, onde tenho aula de braile e de informática adaptada.

Inicialmente, achei que não ia dar muito certo, porque é bem complicado, principalmente o braile. Mas hoje em dia já estou conseguindo ler, já estou passando e-mail sozinha. Pouco a pouco estou recuperando a minha liberdade, ganhando mais confiança. Cada lugar que consigo ir sozinha é uma vitória. Inclusive estou pensando em voltar a trabalhar no ano que vem.

Quando aconteceu, eu me culpava muito por ter perdido a visão. Todo mundo falava para eu me cuidar mais e eu não estava nem aí. A minha mãe também se culpa um pouco, mas eu falo para ela que a irresponsabilidade foi minha. Quando a gente é jovem, a gente não leva em consideração o que pode acontecer com você se não se cuidar.

Mas, quando comecei a frequentar aulas de reabilitação, conheci pessoas que também passaram por isso. A psicóloga do centro me ajudou a entender que não posso me sentir culpada, porque é o tipo de coisa que acontece tanto com gente que se cuida como com quem não se cuida.

No centro, também conheci outras pessoas com deficiência visual que são mais velhas e que são bastante funcionais. Saem para a balada, se divertem. A gente percebe que os cegos não deixam de viver por conta de uma deficiência. Eu amo ir ao barzinho, para a balada. As pessoas até acham diferente eu continuar saindo. Eu perdi a visão, não morri. [risos]

Eu comecei a ver o humor na minha deficiência. O que tem de gente que tenta me evangelizar na rua [risos], como se só cego precisasse de Deus neste mundo. Tem gente que é preconceituosa, mas a maior parte das pessoas pecam por falta de informação. Por isso estou pensando em fazer um canal no YouTube para dar dicas e falar sobre a deficiência, ainda estou estudando a ideia.

A música começou mais como um hobby, mas agora eu estou pensando em trabalhar com isso. Montei uma banda chamada Treziela no começo do ano, mais como diversão. Porém estamos pensando em transformar isso em um trabalho para complementar a renda de todo mundo. Tocar em barzinho, sei lá.

Eu ainda tenho a esperança de voltar a enxergar. As pessoas estão inventando tanta coisa, a tecnologia está avançando tanto que um dia vão encontrar uma forma de eu voltar a ver. Mas, na realidade, não tenho pressa de voltar a enxergar não.”

Você também tem uma história para contar? Ela pode aparecer aqui na Universa. Mande seu depoimento, nome e telefone para minhahistoria@bol.com.br. Sua identidade só será revelada se você quiser