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"Enquanto for criticada, estou no rumo certo", diz ativista da Candelária

Yvonne, com os menores na década de 90: anonimato - Arquivo pessoal
Yvonne, com os menores na década de 90: anonimato Imagem: Arquivo pessoal

Vanessa Fajardo

Colaboração para Universa

23/09/2018 04h00

Faz 25 anos que oito jovens foram assassinados por policiais militares em frente à Igreja da Candelária, no Rio de Janeiro, e Yvonne Bezerra de Mello, de 71 anos, ainda é lembrada pelo trabalho social que fazia com os garotos.

De fato, foi neste episódio, ocorrido em julho de 1993, conhecido como Chacina da Candelária, que o trabalho da ativista pelos direitos humanos saiu do anonimato. Integrante de família de classe média do Rio de Janeiro, morou na Europa, estudou nas melhores instituições de ensino, Yvonne diz que hoje poderia “estar jogando tênis, mas decidiu contribuir para melhorar o país.” O voluntariado faz parte de sua vida desde a adolescência, aos 13 anos lia para crianças cegas, e aos 18, participou de um projeto de alfabetização no Nordeste. Não parou mais.

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“Ouço críticas de uma sociedade polarizada: ela é rica, ela é socialite e quer aparecer. Ela educa bandido, educa pessoas que vão nos assaltar depois. As pessoas me jogam estereótipos, deve ser porque algo que faço deve ferir. Enquanto eu for criticada, sei que estou no rumo certo. Eu entendo a crítica como algo de uma sociedade que está doente e precisa ser estudada como um fenômeno sociológico”, afirma Yvonne.
De lá para cá, Yvonne se consolidou como estudiosa dos problemas de aprendizagem nas crianças causados por traumas de violências. Em 1998, criou o projeto Uerê, na sede na Favela da Maré, que atende por ano 420 crianças e adolescentes da comunidade. A escola utiliza uma metodologia de ensino chamada Uerê-Mello desenvolvida por Yvonne que prioriza atividades orais e resolve os bloqueios cognitivos e problemas de aprendizagem nos alunos.

50 anos na pesquisa

Nos dias atuais: "a luta continua" - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Nos dias atuais: "a luta continua"
Imagem: Arquivo pessoal

“São quase 50 anos de trabalho de pesquisa. Nossa metodologia não exige que a criança faça cópias, ela só pode escrever o que conhece. Não se perde tempo em sala de aula, a irrigação cerebral é constante, respeitando o tempo de concentração e o espaço de sala de aula. Não é uma pedagogia estática, ela se move o tempo todo e privilegia exercícios orais”, diz.

Yvonne viaja pelo Brasil para aplicar – e multiplicar – a metodologia reconhecida pela Unesco. Quase 300 escolas da rede pública já foram capacitadas. Em comum, elas têm o fato de estarem localizadas em zonas de risco e atenderem crianças com maior dificuldade de aprendizado.
“Os problemas emocionais não afetam a inteligência do aluno. A escola precisa estar voltada para essa compreensão”, afirma.

Doutora em filologia e linguista, ela lembra que o embrião do Projeto Uerê foi uma escola instalada debaixo de um viaduto que atendia 200 crianças. “Foi um processo lento até eu ser reconhecida. Até a Chacina da Calendária eu trabalhava nas ruas, era minha fonte de pesquisa, tinha na rua uma escola sem portas e janelas. Mas depois que fui exposta, me fiz pergunta: e agora? Era uma linha de vida que tinha escolhido.”

Sequestro do ônibus 174

Sete anos depois da Chacina da Candelária, outro episódio envolvendo esta tragédia e o trabalho de Yvonne pela defesa dos direitos humanos também ganhou fama. Um dos sobreviventes da chacina, Sandro Barbosa do Nascimento sequestrou um ônibus da linha 174, na Zona Sul do Rio de Janeiro. Ele manteve reféns, sob a mira de uma arma, por mais de quatro horas. Em um momento encurralado pela polícia pediu que chamassem a “tia Yvonne” para intermediar as negociações.
Numa época em que não havia celular e redes sociais, Yvonne só soube disso anos depois, quando a história virou documentário e cena foi reproduzida pelo cineasta José Padilha.

Ameaça e medo

Embora as críticas sobre seu trabalho em defesa dos direitos humanos sejam constantes, Yvonne diz que elas nunca a impediram de continuar. Um caso, no entanto, ocorrido há quatro anos, a fez sentir medo. Ela ajudou um adolescente que estava preso em um poste com trava de bicicleta, depois de ser linchado, no bairro do Flamengo, na Zona Sul do Rio de Janeiro. O garoto seria um assaltante conhecido na região.
“O menino estava machucado e eu o soltei. Mas fiquei assustada com a reação das pessoas, sofri ameaça por praticar um ato de humanidade. Aquilo me fez pensar muito. Somos um dos países que mais lincham no mundo porque temos instituições frouxas e quem vai contra o movimento, vai contra a sociedade.” 
Para Yvonne, a educação é o caminho para uma vida com menos desigualdades. Mas não a “educação conteudista”, que segundo explica o que faz sentido para os alunos e reverbera em índices de aprendizagem muito ruins. “Esta já provou que não vai levar ninguém a lugar algum. A educação é algo mais amplo, tem relação com a família, com o Estado. Já a instrução é outra coisa, mas elas devem caminhar juntas.”
Yvonne diz que o trabalho vale a pena. “Conseguir dar continuidade ao sonho de ser educadora, fiz dois doutorados, minha felicidade é ver as crianças que não falavam, melhorarem a fala, ver os olhos, antes opacos, a ter vida. É capacitar professores, já foram 15 mil. Eu sou muito feliz.”