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Relacionamento abusivo: gays e lésbicas não estão livres dessa violência

Casais homoafetivos também sofrem com relacionamento abusivo  - Getty Images
Casais homoafetivos também sofrem com relacionamento abusivo Imagem: Getty Images

Simone Cunha

Colaboração Universa

18/09/2018 04h00

Durante dez meses, Jessica Barbosa de Souza, 30 anos, ao chegar em casa, precisava tirar foto da cama ou de uma parede, dar um print na tela do celular com data e horário e mandar pelo whatsapp para provar que já havia chegado. Este abuso era cometido por outra mulher: a namorada possessiva.

O comportamento abusivo não tem a ver com gênero ou orientação sexual, mas, sim, com personalidade. De acordo com Adriana Nunan, PhD, doutora em Psicologia Clínica pela PUC-RJ, a violência doméstica ocorre, mais ou menos, da mesma forma entre todos os casais (sejam homossexuais ou não). E a regra também é a mesma: um relacionamento é considerado abusivo quando ocorre agressão física, sexual e/ou psicológica em que um indivíduo tenta estabelecer e manter controle e poder sobre o outro. Ou seja, não é só 'porrada' que classifica um relacionamento como abusivo.

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Para Desirèe Cordeiro, psicóloga do Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual (AMTIGOS), do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (IPq-HCFMUSP), os relacionamentos tóxicos entre gays e lésbicas são uma reclamação comum em consultório. "O ciúme possessivo traz muitos transtornos para o relacionamento e não pode ser aceito como algo natural", afirma.

Portanto, se o parceiro(a) começa a estabelecer regras como: não fale mais com aquela pessoa, questiona por que foi curtida determinada foto nas redes sociais e passa a destratar os amigos próximos, é preciso ligar o sinal de alerta. "Meu namorado tirava print do Instagram e exigia que eu justificasse por que estava seguindo uma determinada pessoa ou havia curtido alguma foto", conta Thiago de Oliveira, 23 anos. O relacionamento durou apenas quatro meses, pois a pressão era muito grande. "Ele fazia eu me sentir mal, como se estivesse fazendo algo errado. Era indelicado, passou a me falar grosserias", acrescenta.

Embora por aqui não existam pesquisas sobre este assunto, Adriana informa que a violência doméstica homossexual é considerada um dos três riscos mais importantes à saúde de gays e lésbicas, ficando atrás apenas do HIV e do abuso de álcool e drogas. "O tema só começou a ser estudado na década de 1990 (no caso dos heterossexuais, é pesquisada desde 1970), apesar de ainda existir um grau muito alto de resistência em falar deste assunto". De acordo com pesquisas feitas nos Estados Unidos, segundo Adriana, a violência doméstica entre casais homossexuais ocorre aproximadamente entre 12% a 39% dos relacionamentos, uma estatística quase idêntica à dos heterossexuais.

Segundo Job dos Reis, psicólogo clínico especialista em sexualidade com formação pela Unicamp, o motivo de não ter dados sobre o problema é o pouco reconhecimento dos relacionamentos homoafetivos. O especialista trabalha com questões LGBT e, em seu grupo de estudo, ouve muitos relatos sobre o problema. "Mas a exposição para um gay ou lésbica pode ser muito mais dolorosa, pois envolve culpa, vergonha e preconceito", alerta.

Em algumas situações, o agressor ameaça revelar a homossexualidade de seu parceiro para familiares, amigos e chefes (situação conhecida como 'outing'), caso este não ceda às suas demandas de controle e poder. "Ao mesmo tempo, o homossexual que é vítima de violência pode ter dificuldade em encontrar apoio (por parte de sua família ou de instituições tais como: polícia, serviços legais e sociais, grupos especializados em violência doméstica, médicos e psicólogos), ajuda necessária para sair da situação violenta", enfatiza Adriana.

Por isso, Reis aconselha a vítima sempre buscar orientação e ajuda em movimentos LGBT. "A falta de uma rede social de apoio pode contribuir para a vítima permanecer nesse relacionamento abusivo. Alguns homossexuais não são aceitos pela família e, se colocar um ponto final nessa história, muitas vezes, não têm com quem contar", justifica.

É preciso enfrentar o problema

O psicólogo Job dos Reis acredita que o modelo monogâmico prega que um é uma propriedade do outro e, por isso, ocorre essa perseguição e possessividade. E, para muitas vítimas, é difícil compreender este abuso e, a maioria, entra no ciclo da negação: a pessoa vai mudar, depois da briga vem a reconciliação e logo a tensão se estabelece novamente. São etapas que se repetem e apenas vão minando ainda mais o relacionamento.

"Não sei por que fiquei tanto tempo neste relacionamento, suportando essa pressão. Era louca por ela e procurava sempre relevar. Ela chegou a entrar no meu Facebook e maltratar meus amigos, era muito constrangedor, mas eu aceitava. Quando tínhamos relação sexual, perguntava se estava sentindo falta de um macho sobre mim", conta Jessica, que é bissexual.

No caso de Regina Lopes, 46 anos, o namoro durou apenas três meses, mas deixou sequelas pesadas. "Ela sempre foi ciumenta, fuçava no meu celular, estava sempre procurando algum motivo para cobrar e brigar. Isso começou a me incomodar, mas a pessoa era tão manipuladora que, em certos momentos, conseguia me convencer de que tinha razão".

No momento em que Regina percebeu que não estava bem e decidiu colocar um ponto final no namoro, a coisa piorou. "Ela não aceitava terminar, passou a me perseguir. Ia na porta do meu prédio e fazia escândalo. Me ligava a madrugada toda fazendo ameaças. Foi um terror! Tive que buscar ajuda psicológica para me livrar deste pânico", revela. A ex só a deixou em paz quando Regina ligou para os pais dela e ameaçou fazer um boletim de ocorrência.

Adriana ressalta que o relacionamento pode começar de forma amorosa, mas, gradualmente, a tensão entre os parceiros aumenta até o momento em que um ato de violência (física, sexual ou psicológica) ocorre. "Muitas vezes, começa com coisas pequenas, a escolha de uma comida ou de uma música. O agressor impõe suas vontades e desejos, e não aceita a opinião do outro", alerta Desirèe. Portanto, questionar é essencial: eu me sinto bem nesse relacionamento? eu me sinto bem quando estou com ele(a) e meus amigos? Tais situações podem indicar se a pessoa está vivendo um envolvimento saudável ou não.

Outra situação que pode deflagrar o problema ocorre quando um é assumido e o outro não. Aquele que já saiu do armário pode colocar uma pressão sobre o outro e gerar um forte estresse, cobrando uma atitude. "Situações assim podem levar à violência, pois cada um tem o seu tempo e exigir que o outro se exponha pode lhe causar muito mal", destaca Reis.

O diálogo pode ser o primeiro passo para resolver a questão. Se as cobranças e imposições estão incomodando, vale a pena tentar conversar e melhorar. "Se a discussão for conciliadora, ok! Mas se neste diálogo surgirem ameaças e manipulações, fazendo a vítima sentir-se culpada, é melhor buscar ajuda", considera o psicólogo.

A orientação de um profissional é fundamental para fortalecer a vítima e ajudá-la a enfrentar a situação. Dependo do nível de ameaça, pode ser necessário um apoio jurídico. "Em suma, na medida em que relacionamentos homossexuais são cada vez mais aceitos e legitimados, pela comunidade gay e pela sociedade em geral, é preciso reconhecer a existência de violência doméstica nestas relações, desenvolvendo pesquisas e aumentando o número de serviços disponíveis para vítimas e agressores", conclui Adriana.