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"Passei a fabricar bonecos negros para que meu filho se identificasse"

Jaciana com suas bonecas - Divulgação
Jaciana com suas bonecas Imagem: Divulgação

Vanessa Fajardo

Colaboração para Universa

16/09/2018 04h00

Na casa da historiadora Jaciana Melquiades, de 34 anos, no Rio de Janeiro, menino brinca de boneca sim. E bonecas negras, da cor da pele da família. Mas nem sempre foi assim. Quando Jaciana engravidou, não encontrou itens relacionados a crianças negras para montar o quarto do filho Matias. Transformou a demanda em negócio e criou uma fábrica de bonecos e bonecas negras.

Batizada de “Era uma Vez o Mundo” a empresa transforma em brinquedos celebridades negras que buscam combater o racismo e já chamou a atenção até de um ator britânico da saga Star Wars. Agora, Jaciana prepara o estoque para o Dia das Crianças e Natal paralelamente ao trabalho voluntário de combate ao racismo nas escolas. Abaixo, ela conta detalhes da expansão do negócio e como faz sua parte para tornar o mundo menos racista.

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“Meu filho Matias tem 7 anos, mas mesmo antes de engravidar a gente já se preocupava como seria a educação dele em relação às questões de gênero. Na hora de montar o quarto preferi cores que não eram marcadamente de menino ou menina, ele sempre teve brinquedos que eram só brinquedos. As pessoas é que acabam fazendo essa divisão entre menino e menina.

Com a gravidez a gente começou a se preocupar porque não havia itens e brinquedos que tinham a ver com uma criança negra. Eu já fazia algumas bonecas, mas sem nenhum recorte racial, mas desde então foquei nos bonecos negros. A ‘Era uma Vez o Mundo’ chegou nesse movimento. Entendemos que a representatividade era importante e precisávamos dar conta disso para ter um filho mais saudável.

Nossas bonecas são referenciadas em pessoas que já existem, como a Liniker que é cantora mulher trans. Temos o Lázaro Ramos, que é um homem cis. Temos a Preta Rara, que é um rapper de São Paulo, mulher, negra, cis e gorda e que tem isso como referencial da vida dela. A gente conversa sobre todos esses assuntos usando esses brinquedos. É uma forma da criança entender e se habituar que são só características, e não precisam ser um fator marcador de diferença das pessoas.

Lázaro Ramos com o boneco que o representa - Divulgação - Divulgação
Imagem: Divulgação

Star Wars

Tem um episódio que fez com que nosso trabalho com os bonecos ganhasse destaque. Foi uma história com o boneco Finn, do Star Wars. O Matias queria porque queria esse boneco, um dia a gente foi ao shopping, achamos o boneco ele começou a pedir: ‘por favor, por favor, compra, você nunca compra porque os bonecos não são parecidos comigo, ele parece, ele é pretinho igual a mim.’ Aí ele botou no rosto, tirei uma foto e postei, a legenda era simples: ‘ele é pretinho igual a mim’. Essa foto viralizou de uma forma absurda e chegou no John Boyega [ator negro que interpreta o personagem Finn, em Star Wars]. Esse exemplo de 2015 me fez perceber o quanto há uma defasagem nesse tipo de produção de brinquedos. Foi aí que comecei a insistir muito mais na fabricação desses bonecos e bonecas.

Matias e o boneco do Star Wars - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Imagem: Arquivo Pessoal

O negócio

Começamos o negócio com nenhum dinheiro, fazendo os bonecos por encomenda. A pessoa pagava, a gente comprava o material, fazia e entregava. No ano passado, em junho, fizemos um financiamento coletivo e conseguimos arrecadar 22 mil reais. Usamos o dinheiro para entregar as 300 recompensas e legalizar a empresa que ainda era MEI [microempreendedor individual].
A empresa ficou parada na segunda metade do ano passado e faz uns três meses que voltamos a fornecer bonecos em uma edição especial para a peça de teatro ‘O Pequeno Príncipe Preto.’
Fazemos 15 tipos de bonecos diferentes. Transformamos pessoas que são referência na luta anti-racismo, quem compra os bonecos têm a possibilidade e conhecer a história dessas pessoas porque os brinquedos vêm acompanhados por uma pequena biografia. Em 2017, vendemos 2.400 bonecos.
As bonecas custam, em média, 90 reais cada. Mas o que mais vende é a boneca personalizada, apesar de ser o item mais caro, custa 250 reais, e quem compra é o público de classe B e C. Para uma boneca de tecido, o valor não é baixo, mas as pessoas buscam porque querem a possibilidade de a criança se ver no brinquedo. Temos opções que podem ser montadas com quatro tipos de corpos com cores diferentes [todos negros, variam só os tons de pele], 11 tipos de cabelos e 12 possibilidades de roupa.

Aceleração e mentoria

Buscamos mentorias e estamos participando da Shell Iniciativa Jovem [um programa de aceleração]. Acabei de finalizar um MBA em gestão de negócios, que foi um norte bem importante para entender como fazer um negócio que começou do zero crescer.
Fechamos parceria com o HUB RJ, que é um espaço que reúne várias empresas num ecossistema empreendedor na Zona Portuária do Rio. O local funciona como um polo de inovações, é muito positivo para quem busca investimento. A ideia é usar a expertise dos gestores para trazer investimento aumentar nossa capacidade produtiva. Eles atuam trazendo mentoria e investidores.
Teremos um espaço de 60 metros para colocar todo o maquinário, que até agora funcionou num ateliê, em um espaço menor. Já temos 15 máquinas de costura e com o espaço pequeno não conseguíamos nem contratar outra pessoa, agora vamos ampliar a capacidade de produção.
Entre os meses de outubro e dezembro pretendemos vender 300 itens por mês, por conta de Dia das Crianças e Natal. A estimativa é de faturar 20 mil por mês.

Educação e voluntariado

Sou historiadora e sempre trabalhei com educação, nos últimos quatro anos atuei na Uerj [Universidade do Estado do Rio de Janeiro] como professora convidada trabalhando em um projeto de educação para combater o racismo. Mas com a crise econômica no Rio, os projetos finalizaram.
Uma parte das vendas da ‘Era uma vez o mundo’ é revertida para um trabalho que fazemos nas escolas públicas. São oficinas para as crianças, para os pais e para os professores. No ano passado passamos por 60 escolas.
Uma das oficinas se chama ‘Boneca preta é identidade’, levamos bonecas, todas mulheres que são militantes do universo anti-racista. Também levamos suas biografias e contamos suas histórias.
Outra atividade é a ‘Mulheres do Samba’, levamos bonecas referenciadas em cantoras e mulheres que escrevem samba para as crianças conhecerem e entenderem a importância delas na história. Vai desde a Tia Ciata até Mariene de Castro, são dez mulheres passando por Leci Brandão, Alcione e Clementina de Jesus. As crianças ficam muito felizes de conhecer essas histórias, depois fazemos jogos para saber qual boneca corresponde a qual história.
A função do nosso negócio extrapola a comunidade negra, ela educa as pessoas de um modo geral para um olhar mais diverso para o mundo. Quando você lida com uma criança e percebe que ela só consegue identificar pessoas negras em posições de servir o outro, percebe que falta ampliar a visão sobre as posições que a pessoa negra pode ocupar.  O que eu vendo é diversão, é oportunidade de brincar, mas quando a criança se vê no brinquedo, você cria também o respeito da criança não negra.”