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"Tem homem que acha que, porque estou na cadeira de rodas, virei vegetal"

Divulgação/Arte UOL
Imagem: Divulgação/Arte UOL

Camila Brandalise

Da Universa

30/07/2018 04h00

Mara Gabrilli, deputada federal e candidata ao Senado (PSBD-SP) é a primeira brasileira eleita para o Comitê sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU, cargo que ela passará a ocupar em seis meses. À Universa, Mara, que é tetraplégica há 24 anos, fala de corrupção na política - "pensei em sair do PSDB por vergonha" -, de suas pesquisas sobre famílias com cadeirantes em São Paulo - "a maioria das paralisias físicas são causadas por paralisias cerebrais geradas na hora do parto" -, de sexo - "sempre gostei do tema" - e de outros assuntos igualmente importantes.

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O deputado Cabo Daciolo (Patri-RJ) disse, no plenário, duas semanas atrás, que Deus iria curá-la, e que você voltaria a andar naquele momento. O que sentiu com essa fala?
Se acontecer de novo, vai me incomodar, vou ficar com vergonha. Na hora, não escutei muito bem o que ele estava falando. Tenho amigos tetraplégicos que ficaram bravos. Questionaram se ele achava que eu era doente para precisar ser curada. Mas esse não é um comentário exclusivo para pessoas com deficiência. Pessoas gordas também ouvem que precisam ou que vão emagrecer. Acontece pelo menos uma vez por semana de alguém dizer que Deus vai me curar. Até gostaria desse milagre.

Há novidades no seu tratamento?
Recentemente, passei por sessões, nos Estados Unidos, de estimulação magnética transcraniana, que são choques na cabeça. Doía muito, pareciam chicotadas. Mas essa terapia tem me feito ganhar novos movimentos. Comecei, por exemplo, a pedalar em uma bicicleta ergométrica. Coloco eletrodos nos braços e nas pernas e, por meio de contrações musculares causadas por choques, consigo pedalar. Às vezes, até mexo os braços sem a eletroestimulação. Meu objetivo é voltar a andar. Mas sei que não é de uma hora para a outra. Depois do acidente, em 1994, falaram que eu só iria melhorar no primeiro ano; depois não haveria mais evolução. Estou na reabilitação há 24 anos e tenho muita coisa recuperada: tônus muscular, amplitude de movimento, articulação e até respiro melhor.

Como será seu trabalho na ONU?
O cargo é de perita do Comitê sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, em um mandato de quatro anos. Minha primeira reunião em Genebra será em seis meses e vou apresentar propostas. Entre elas, a de que países façam acordos para tirar alguns impostos de cadeiras de rodas, de maneira que elas fiquem mais baratas. Vou sugerir a criação de um observatório de acessibilidade para que os países falem de experiências exitosas e quero tornar o tema da deficiência uma política transversal, que permeie, por exemplo, os comitês para mulheres e o que luta contra discriminação racial. Vou para algum país analisar as políticas na área. Queria visitar a Austrália, que nega visto para pessoas com deficiência porque acha que elas vão precisar do serviço de saúde local.

Quais comentários e atitudes, normalmente, incomodam pessoas com deficiência?
As pessoas têm mania de querer sentar cego. Acham que ele fica perdido em pé, que está correndo perigo, então puxam para que sente. Hoje movimento minha cadeira com um controle, mas quando ela era de empurrar, sempre passava alguém e a empurrava, tentando ajudar. Também tem gente que se apoia na cadeira quando vem conversar. É um jeito de querer ficar próximo, ter intimidade, mas a cadeira é uma continuidade do nosso corpo; então, não é agradável. De modo geral, antes de fazer qualquer coisa, pergunte como e se a pessoa quer ser ajudada.

Quantas pessoas te acompanham?
Tenho três assistentes que se revezam. Como piloto a cadeira, posso ficar sozinha em um cômodo de casa, mas elas estão sempre por perto. É uma relação de muita intimidade. Eu não consigo fazer nada e preciso que elas façam as coisas por mim. Tem também um bioengenheiro que me orienta sobre características dos músculos e dos movimentos. Passei por diversos profissionais, aprendi muito e, hoje monto meus exercícios. Só vou ao médico quando estou doente. Tenho uma deficiência grave, mas minha saúde está ótima; não pego nem gripe.

Você já posou nua, fala sobre sua sexualidade e namora. Sexo, afinal, é importante para todo mundo, certo?
Sempre gostei do tema. E as pessoas têm curiosidade. Logo que virei cadeirante, ainda na UTI, fiz sexo. Naquele momento, foi por desespero; mas foi também fundamental para perceber que eu conseguia. Tem homem que acha que, porque estou na cadeira de rodas, virei vegetal. Mas a maioria me vê e já olha para o meio das minhas pernas, com olhar sexual. Me incomoda muito, como incomoda a toda mulher. Nesse momento estou solteira, e o motivo é ser deputada federal. Me exige muito.

Por que continua no PSDB, partido com tantas denúncias de corrupção?
Pensei em sair dele, por vergonha. Fui convidada para ir para todos os partidos, até para ser vice do Jair Bolsonaro (PSL-RJ). Ouvi alguns, pesquisei. Mas no PSDB tenho liberdade para votar no que acredito e nunca fui questionada. Se fosse para o partido Novo, por exemplo, e votasse a favor do desarmamento, seria expulsa. O Aécio (Neves, senador pelo PSDB-MG, que responde a nove processos no STF por corrupção e obstrução de Justiça) fez o que fez, o partido se queimou e de certa forma me queima também. Eu era amiga do Aécio, ele cogitou meu nome para sua vice. Ele se desmoralizou.

O que falta para mais mulheres serem eleitas?
Fundamentalmente, falta ação dos partidos para a qualificação política de mulheres. Mas acho que muita coisa vai mudar com a nova diretriz do TSE, que obriga que 30% do fundo de campanhas e do tempo de rádio e TV sejam direcionados a candidaturas femininas. Até agora, apesar de haver a obrigação de um percentual mínimo de mulheres candidatas, quem decide o tempo na televisão são os homens. Na minha campanha, se orgulhavam de dizer que eu tinha o mesmo tempo de inserção que os homens, mas os programas deles passavam no horário nobre, o da noite, e o meu, na hora do almoço. Outro problema são as candidatas laranjas. Elas se elegem, não porque fazem um bom trabalho, mas porque o nome do marido, que também político, é forte.

Na medida em que pedimos igualdade de gêneros, o que uma mulher poderia fazer no parlamento algo que um homem não faz?
Não acho que o homem não possa ou não saiba fazer, mas as mulheres, muitas vezes, têm meios diferentes. Falando por mim, no Congresso: vejo gente que fica tão revoltada com determinados projetos que começa a brigar. Recentemente, queriam tirar cotas para pessoas com deficiência em ambientes de trabalho. Convidei o deputado relator dessa proposta para um café e consegui demovê-lo da ideia sem precisar gritar. Há outras maneiras de fazer política e acho que as mulheres podem trazer isso. Outra coisa que observo: quando as mulheres se unem por algum projeto de lei, a união é tão forte que os deputados ficam até constrangidos em questionar.

Você tem um projeto que mapeia pessoas com deficiência em São Paulo. O que descobriu sobre elas?
Mapeamos entre 6 e 7 mil pessoas, em seis anos do projeto Cadê  Você?. Descobrimos que na maioria desses casos a paralisia física foi causada por uma paralisia cerebral, ocorrida na hora do parto por falta de um profissional capacitado. Também percebemos que falta informação sobre doenças genéticas nas famílias. Por exemplo: nasce um filho com distrofia muscular e os pais decidem ter outro filho, achando que esse não vai ser cadeirante, e acontece de novo. Faltou ali um médico que falasse sobre probabilidades genéticas. Encontramos famílias com quatro cadeirantes. Nosso projeto faz visitas com equipe multidisciplinar, como fonoaudióloga, fisioterapeuta, dentista e defensor público.