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Em Portugal, juíz usa suposta traição da mulher para justificar agressões

Ricardo Ribeiro

Colaboração para Universa, de Porto

16/07/2018 04h00

Decisões favoráveis a acusados de agressão têm motivado protestos na internet e de associações ligada aos diretos das mulheres em Portugal. O tema é sensível no país onde os crimes de violência doméstica são elevados. Segundo dados oficiais, mais de 25 mil mulheres foram agredidas só em 2017 --e nem todos os casos são registrados.

No centro da polêmica estão duas decisões assinadas pelo juiz desembargador do Tribunal da Relação do Porto Joaquim Neto de Moura. Embora aparentem ter saído da Idade Média, os despachos são de 2016 e foram tornados públicos no ano passado.

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Em junho, Neto de Moura foi favorável ao recurso de um homem acusado de agredir a mulher. Condenado a dois anos de prisão em primeira instância, o marido saiu absolvido porque, para o juiz, o depoimento da vítima não merecia credibilidade, por ela ter cometido adultério.

“Uma mulher que comete adultério é uma pessoa falsa, hipócrita, desonesta, desleal, fútil, imoral. Enfim, carece de probidade moral. Não surpreende que recorra ao embuste, à farsa, à mentira, para esconder a sua deslealdade e isso pode passar pela imputação ao marido ou ao companheiro de maus tratos. Que pensar da mulher que troca mensagens com o amante e lhe diz que quer ir jantar só com ele ‘para no fim me dar a sobremesa’”, diz o juiz, no documento a que Universa teve acesso.

“Revelou-se a denunciante merecedora do crédito total e incondicional que o tribunal lhe atribuiu? A resposta só pode ser um rotundo não. Em boa verdade, a denunciante não é, propriamente, aquela pessoa em que se possa acreditar sem quaisquer reservas. Na contestação que apresentou, o arguido alegou que a denunciante, sua ex-companheira, ainda quando viviam como marido e mulher, mantinha uma relação extraconjugal com um indivíduo. Os documentos que juntou com a sua contestação atestam isso mesmo, que a denunciante andava a cometer adultério e até nem seria a primeira vez que o fazia”, continua o despacho.

Está na Bíblia

Em outubro, em decisão assinada com a desembargadora Maria Luísa Abrantes, Neto de Moura cita a Bíblia, o Código Penal português de 1886 e civilizações em que o adultério da mulher é punido com a morte para justificar a violência exercida pelo marido e pelo amante da vítima. A mulher foi agredida pelo marido e sequestrada pelo amante, alvo de perseguição e ameaças por parte de ambos.

“O adultério da mulher é um gravíssimo atentado à honra e dignidade do homem. Sociedades existem em que a mulher adúltera é alvo de lapidação até à morte. Na Bíblia, podemos ler que a mulher adúltera deve ser punida com a morte”, diz trecho da decisão.

“Ainda não foi há muito tempo que a lei penal punia com uma pena pouco mais que simbólica o homem que, achando a sua mulher em adultério, nesse ato a matasse. (…) Com estas referências pretende-se apenas acentuar que o adultério da mulher é uma conduta que a sociedade sempre condenou e condena fortemente (e são as mulheres honestas as primeiras a estigmatizar as adúlteras) e por isso vê com alguma compreensão a violência exercida pelo homem traído, vexado e humilhado pela mulher”, continua o documento.

Processo disciplinar

A decisão de outubro motivou uma petição de 29 organizações promotoras dos Direitos Humanos das Mulheres, apoiadas por outras 11 de outros setores da sociedade civil portuguesa ao CSM (Conselho Superior da Magistratura).

O órgão responsável pela gestão e disciplina dos juízes do país investiga a conduta de Neto Moura e abriu um processo disciplinar por violação de deveres funcionais em dezembro de 2017, ainda sem resultado.

Procurado pela reportagem, o CSM se limitou a responder que “o processo segue os seus normais trâmites, não se encontrando ainda finalizado”.

A defesa de Neto de Moura não foi encontrada. Em jornais locais, o juiz negou que protege agressores e relembrou casos em que decidiu por condenações e seu advogado classificou o despacho bíblico como “irrepreensível”.