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Tripulantes de navios de cruzeiro denunciam assédio sexual a bordo

Getty Images
Imagem: Getty Images

Ricardo Ribeiro

Colaboração para Universa

07/05/2018 04h00

Quem é ou já foi tripulante de navios de cruzeiros pode estar habituado. Para a maioria dos turistas, porém, o universo atrás das cortinas que faz funcionar esses spas flutuantes passa despercebido. Além de jornadas extenuantes e condições de trabalho adversas, casos de assédio sexual são frequentes. Universa percorreu corredores paralelos e decks mais próximos do nível da água para ouvir as mulheres vítimas dessa situação. A pedido delas, os nomes foram alterados.

Mariana, 29, trabalhava como secretaria do maítre do principal restaurante de um navio da Costa Cruzeiros, sediada na Europa. Tinha conseguido mudar do buffet da piscina para garçonete do restaurante e, depois, para essa posição, onde recebia mais e tinha uma rotina menos desgastante.

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“Eu me dava super bem com a equipe. Cresci por mérito do meu trabalho. Aí o maítre que estava saiu de férias e me avisou para tomar cuidado com o que viria para o lugar dele, transferido de outro navio. Achei que não ia ser tão complicado. Foi”, lembra a carioca.

Segundo ela, o novo chefe era misógino, sempre falava das tripulantes de maneira inadequada e passava cantadas agressivas.

“Quando ele viu que eu não ia transar com ele, passou a me tratar pior ainda. Dava broncas humilhantes e gritava comigo na frente dos hóspedes. Nos horários de folga, me procurava no bar e puxava papo. Ficava pegando no meu cabelo.”

“Me sentia um lixo”

Era o segundo contrato de Mariana, que se emociona ao lembrar do episódio. “Você fica se sentindo um lixo. Eu tive que aguentar. O navio estava na Índia e não tinha grana para voltar”, diz.

Brasileiros passam entre sete e nove meses embarcados, dependendo do contrato de trabalho e eventuais extensões. Se pedem para encerrar, o chamado “sign off”, antes do tempo mínimo, a empresa pode descontar o custo que teve para transportar o funcionário até o porto de embarque.

Ela comunicou o RH do navio, mas a situação não melhorou. “Supostamente está lá para te ajudar. Era mulher, achei que ia entender. Mas tentou me convencer de que eu tinha entendido errado. E acho que ela contou para o maítre porque ele passou a me tratar ainda pior. Chorava todo dia”, lembra.

O problema só terminou quando o maítre, em final de de contrato, acabou desembarcando. Mariana concluiu o seu e hoje se prepara para o terceiro. “Só estou rezando para não pegar um navio onde ele esteja.”

“RH sempre diz que foi você que entendeu errado”

Luciana, 25, camareira de um navio de outra empresa de origem europeia, a MSC Cruzeiros, passou por situação semelhante.

“Já tinham me falado, mas você nunca acha que vai ser com você. Tentei me convencer que era só um elogio até que foi ficando mais pesado”, conta a jovem de Belo Horizonte (MG). “Quando fui mais firme na negativa, ele ficava dizendo que era o responsável pela minha avaliação e, se eu pretendia subir na companhia, precisava agradá-lo.”

Ainda no início de seu primeiro contrato, ela também comunicou o RH e não teve sucesso. “Sempre dizem que você que entendeu errado. Ele não fez mais nada, mas me deu uma avaliação fraca”, diz.

As avaliações ao final do contrato são feitas pelos superiores imediatos de cada setor e são decisivas para definir se um funcionário será chamado para outro contrato e, principalmente, determinar promoções ou mudanças de departamento. Chefes também podem anotar punições, os “warnings”, na ficha de um funcionário ou mesmo “dar um demotion” (rebaixamento de função).

‘Navio é máfia’

Segundo Juliana, 28, garçonete assistente de uma embarcação da Costa Cruzeiros, que atua no mar Mediterrâneo e no norte da Europa, é muito comum “o sexo como moeda de troca”.

“Tem meninas que cedem, porque tem muita pressão de quem tem posição de chefia, mas tem quem usa isso para subir de cargo ou trabalhar menos. Navio é máfia. Quem tem acesso a bebida ou comida de hóspede, por exemplo, negocia isso. Quem controla entrada e saída, escala de folga, é outra vantagem. E sempre tem o sexo. Sabe presídio?”, afirma.

Em seu terceiro contrato, a jovem nascida em Salvador conta que perdeu a conta das propostas que recebeu de chefes diretos e até de oficiais. Além dos funcionários ligados aos serviços de hotelaria, há os oficias da marinha mercante. Subordinados ao capitão e responsáveis pelo funcionamento e condução da embarcação, eles têm mais privilégios.

“O cara manda umas indiretas. Convida para tomar uma bebida na cabine dele. Você já sabe do que ele está falando. E brasileira tem esse absurdo, essa fama mundial de ser puta. Mas eu já mando logo a m*. Talvez por isso nunca passei de assistente.”

“Você está longe de casa, em alto mar ou outros países. O povo se solta. Quem é machão em casa vira mocinha. Recatada e do lar vira dançarina de pole dance. Mas tem staff que tira proveito da situação. As vezes não é assédio, é canalhice mesmo”, continua Juliana.

Abafa o caso

Segundo a tripulante, as companhias tendem a abafar o caso e proteger funcionários em posições de comando.

“Pode acontecer de afastar o chefe que está assediando, mas, em geral, eles falam com a pessoa e a pessoa fica ainda mais brava com você. O que funciona é, se o navio estiver vindo para o Brasil, ameaçar fazer uma denúncia na Polícia Federal quando atracar. Mas aí transferem o cara antes de chegar”, diz.

Mesmo estando no exterior, as companhias precisam seguir legislações e regras estabelecidas pelo Brasil para os funcionários de nacionalidade brasileira ou não podem operar na costa do país durante o verão. As empresa também são obrigadas a ter um representante no Brasil, que pode ser responsabilizado.

Procurado, o Ministério do Trabalho afirmou que atua “em qualquer denúncia que é realizada”, mas que “é necessário haver provas” para fazer uma fiscalização e “reconhece que é difícil produzir materialidade em casos de assédio”. Ainda segundo a assessoria de imprensa da pasta, nenhuma denúncia de assédio sexual em navios foi registrada em 2017, mas “podem haver casos resolvidos localmente nas regionais, como no Porto de Santos” e não há uma centralização de dados. A Polícia Federal não respondeu o contato da reportagem.

O outro lado

Procuradas pela reportagem, a Costa Cruzeiros e a MSC enviaram os seguintes comunicados à Universa:

A MSC Cruzeiros é totalmente comprometida com a segurança de seus tripulantes. Nesse sentido, possui uma infraestrutura a bordo de seus navios que atente aos mais altos padrões da indústria e que é regularmente auditada, controlada e atualizada de uma perspectiva técnica e de segurança.  

Nós queremos o melhor para os nossos colaboradores. Por esse motivo, temos a tripulação como nossa família. Além disso, temos um rígido código de conduta para todos os colaboradores, assim como as mais recentes e avançadas tecnologias de segurança e vigilância para garantir a segurança de todos a bordo.

Levamos a sério as alegações sobre qualquer tipo de má conduta e temos uma política de tolerância zero em relação a isso.

Todos os nossos navios possuem um gerente de RH que cuida das pessoas e estamos comprometidos para que esses navios sejam um lar seguro para cada um dos nossos tripulantes. A prática de transferir funcionários que se comportam de maneira inadequada a outros navios não é verdadeira e o RH da MSC Cruzeiros e o departamento de segurança da companhia têm como responsabilidade avaliar a informação com bastante seriedade e não hesitariam em relatar a denúncia às autoridades policiais locais.

Gostaríamos de reiterar que estamos totalmente comprometidos com a segurança de todas as pessoas e temos um rígido código de conduta para todos os colaboradores. Não toleramos nenhum comportamento inadequado a bordo, realizamos treinamentos com os nossos funcionários e temos as mais atualizadas tecnologias para garantir a segurança de cada um.

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A segurança e o respeito pelo bem-estar do nosso pessoal é uma das principais prioridades para a Costa Crociere. A Costa Crociere está totalmente comprometida com os mais altos padrões de comportamento ético e não tolera nenhum tipo de má conduta ou comportamento ilícito, incluindo qualquer forma de assédio sexual.

A companhia adota um Código de Conduta muito rigoroso e não tolera qualquer prática ilegal como assédio sexual que, por sua vez, é punido com o desembarque e o término do contrato. Os funcionários devem relatar qualquer tipo de má conduta não apenas ao diretor de RH a bordo, mas também aos supervisores e ao capitão, bem como aos colaboradores situados nos escritórios em terra.

Esses canais são amplamente conhecidos pelo pessoal a bordo e permitem que os relatórios sejam feitos de forma anônima.

Todos os relatórios são investigados adequadamente e em tempo hábil. Quando evidências são encontradas, ações disciplinares são tomadas e as autoridades relevantes são envolvidas, conforme indicado pelas leis. 

A diversidade é respeitada como um valor agregado, facilitando o fomento de talentos e criando oportunidades de enriquecimento cultural e de avanço profissional.

Por meio de seu Programa de Diversidade & Inclusão, lançado em 2015 e implantado em 2016, a Costa Cruzeiros visa fortalecer as ações e as políticas de gestão de recursos humanos com foco no pluralismo cultural. As atividades integradas no plano de ação visam garantir um ambiente de trabalho com oportunidades iguais, onde nenhuma forma de discriminação ou assédio é aceita.

A liberdade de orientação sexual tem sido, durante anos, parte integrante de nossa política, garantindo um ambiente inclusivo, especialmente a bordo dos navios. Respeitar a rica diversidade do nosso capital humano, com a consciência do valor intrínseco da força de trabalho diversificada, é elemento obrigatório para a estratégia de negócios da Costa.

Para a Costa Cruzeiros, o ambiente multicultural no local de trabalho, com colaboradores de 70 nações diferentes, é uma valiosa oportunidade para entender as necessidades do consumidor internacional e heterogêneo