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"Sou um estrangeiro aqui", diz professor cego que foi orientado a desistir

Eder Pires de Camargo, professor - Arquivo Pessoal
Eder Pires de Camargo, professor Imagem: Arquivo Pessoal

Matheus Pichonelli

Colaboração para o UOL

06/03/2018 04h00

Em 1996, Eder Pires de Camargo, então com 24 anos, ouviu de um médico que examinava sua capacidade de dar aulas de física no ensino médio: "Como você vai fazer chamada, corrigir as provas e saber se seus alunos não estão colando?”

Não era a primeira nem seria a última vez que o hoje professor-adjunto do Departamento de Física e Química da Unesp de Ilha Solteira (SP) sentiria os portões da vida escolar e profissional se comprimirem para ele.

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Cego, ele foi orientado pelo corpo docente de sua escola em Lençóis Paulista (SP), onde nasceu, a desistir de estudar aos 14 anos, quando estava na oitava série. “Naquela época, era um aluno desinteressado. Mas um professor, Edevar Moretto, no primeiro colegial, me buscou no fundo da sala e disse: ‘Você tem potencial’.”

Foi quando se apaixonou por matemática, física, química e pela docência. “Naquele dia, decidi ser o próprio Edevar Moretto.” Eles são amigos até hoje. Eder entrou na faculdade de física, na Unesp, em Bauru (SP), com outros 20 alunos, em 1992. Apenas dois se formaram. Eder entre eles. “Nas provas, os professores liam as questões, eu resolvia os problemas na cabeça, depois transcrevia para o papel. Se cometesse um erro, tinha que começar tudo novamente.”

Essas e outras histórias o hoje professor universitário, que alcançou a livre-docência no Brasil, conta em detalhes no livro “Estrangeiro” (Editora Plêiade), lançado no fim do ano passado.

O título é uma referência à música homônima de Caetano Veloso. “Sou um estrangeiro em um país de pessoas que enxergam. Trabalho para que as pessoas se reconheçam tateantes, ouvintes, cheirantes e degustantes. É preciso entender que as percepções são muito mais que biológicas. Elas são sociais.”

Eder é também cantor e gravou o álbum “Inquietude”, espécie de trilha sonora para os capítulos do livro.

"Não estamos preparados para recebê-lo"

Esta foi uma das frases mais ouvidas por ele ao longo da vida. “Nossa cultura construiu a concepção de que somos seres prontos, plenos, completos. E também de que o mundo é natural e o futuro está determinado por leis físicas que não podem ser transformadas. A presença do diferente evidente nos mostra que somos incompletos e temos um futuro a ser construído.”

O professor compara a dificuldade de circular pela cidade com as barreiras dos métodos de ensino para pessoas com deficiência.

Segundo ele, pessoas com deficiência visual têm potencial para atingirem quaisquer níveis da educação. “Se isso não acontece é porque a sociedade não dá condições.”

O professor conta ter construído essas condições com o apoio da família. Em suas turmas, as provas são realizadas no laboratório de computação. As respostas são escritas em um editor de texto, salvas em uma HD e corrigidas com a ajuda de um auxiliar. A chamada é realizada em uma planilha de seu computador. Ao final de cada mês, as informações são transferidas ao sistema universitário.

Eder Pires de Camargo durante participação no "Encontro com Fátima Bernardes" - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Eder Pires de Camargo durante participação no "Encontro com Fátima Bernardes"
Imagem: Arquivo Pessoal

Ele utiliza ainda um projetor conectado ao computador, pelo qual realiza debates e experimentos multissensoriais com maquetes tátil-auditivas-visuais. Os materiais podem ser utilizados entre alunos cegos, mas também por “videntes”.

Ele calcula ter orientado aproximadamente 20 teses de doutorado e dissertações de mestrado, além de realizar palestras por todo Brasil.

O professor escreve e lê no computador por meio de dispositivos que fazem a interface auditiva entre ele e os conteúdos.

Para isso, é necessário que os conteúdos estejam no computador de maneira acessível para a descrição oral. “Certa vez, comprei R$ 500 em livros e paguei para uma pessoa os mesmos R$ 500 reais para escaneá-los.”

De acordo com o autor, hoje os dispositivos móveis, como os celulares, estão modificando essa realidade. “Mas eu e outros cegos começamos essa história em 2000. Não havia nada disso. Era mais fácil desistir, mas optei pelo caminho mais complexo.”

Vocação?

Aos 45 anos, Camargo hoje mora sozinho em Ilha Solteira e diz adorar a vida que leva. “Não perco um jogo do Palmeiras desde 1982. Quando o time faz gols, meu pai me liga esteja onde estiver.”

Perguntado de onde vem a vocação artística, ele responde: “Não acredito em conhecimentos inatos. No Brasil há uma tendência de se afirmar que não gostar dessas matérias é algo natural. Bobagem: é uma construção social, um projeto político.”

Apesar das dificuldades, o professor diz que uma das vantagens da limitação visual é não se deixar capturar pela trivialidade.

“Ser cego é agir de forma não trivial. Ando por aí a pé com minha bengala, na chuva e no sol, converso com crianças, velhos, homens e mulheres. Não estou protegido dentro dos carros com ar condicionado, e isso me permite sentir frio e calor, ouvir os pássaros, brincar com os cachorros, com os gatos, o vento, a chuva.”

Dias atrás, voltando da universidade, começou a chover subitamente e, como não podia correr, chegou em casa completamente molhado e aos risos. “Eu estava adorando tomar aquela chuvarada. Isso resulta da desconstrução da dificuldade, das possibilidades que somente a experiência de ser cego me possibilita.”