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Nem todo abusador infantil é pedófilo, diz especialista em violência sexual

Rosemary Miyahara, especialista no atendimento a crianças vítimas de violência sexual - Simon Plestenjak/UOL - Simon Plestenjak/UOL
Imagem: Simon Plestenjak/UOL

Helena Bertho

Do UOL

26/02/2018 04h00

Falar de abuso sexual infantil é complicado. Ao mesmo tempo que o tema emocionou os brasileiros na novela "O Outro Lado do Paraíso" (Globo), fora das telas, ele invade milhares de lares. Só em 2015 e 2016 foram 37 mil denúncias feitas ao número de proteção à criança e ao adolescente, o Disque 100, e no aplicativo Proteja Brasil. Mas para a psicóloga Rose Miyahara, essa é só a ponta de um iceberg, pois existe uma enorme subnotificação.

"Quando se fala em abuso sexual da criança e do adolescente, mexe-se em muitos tabus: da casa como local seguro, incesto, criança como agente de desejo sexual, homossexualidade", diz ela, listando alguns porquês de se evitar encarar a questão.

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Rose fala com conhecimento de causa: há mais de 30 anos trabalha no atendimento a crianças vítimas de violência e, mais recentemente, também com os adultos que cometeram o abuso, além de coordenar a formação do Centro de Referência a Vítimas de Violência Sexual do Instituto Sedes Sapientiae, em São Paulo.

Rose recebeu a reportagem do UOL em seu consultório, na capital paulista, para abordar as questões que cercam seu tema de estudo.

UOL: Quais tabus surgem quando falamos de abuso sexual contra a criança e o adolescente?

Rosemary  Miyahara: Muitos. A família como lugar mais protegido para a criança, isso é um tabu. A violência sexual contra o menino, ela é menos denunciada pela própria família, porque tem a perspectiva de que o menino possa ser homossexual. Quantas vezes o constrangimento não era pelo abuso e, sim, porque o menino podia ser gay. O adolescente e a criança como sujeitos de desejo sexual é outro tabu, porque pega nessa questão do incesto.

UOL: O que você quer dizer com a criança ou adolescente como sujeito de desejo? 

Rosemary: Tem aquilo que é próprio do nosso desenvolvimento. A criança, lá pelos três anos, vai buscar uma interação com o pai ou o menino com a mãe. É a fase do Édipo. Isso é parte da constituição do sujeito sexual, ter passado pelo triangulo edípico: eu desejo minha mamãe e o papai tem de dizer: "Não pode, essa daqui é sua mãe, minha mulher..." Isso é estruturante para uma sexualidade saudável.

UOL: E como isso está ligado com a questão do abuso?

Rosemary: Imagina quando isso não acontece? Quando essa menina vai procurar o pai dentro dessa perspectiva e não acontece a interdição? Ela querer o colo do papai, querer beijar na boca, querer manipular o pênis do pai e, muitas vezes, isso é entendido como um assédio. "A menina quis." E daí? Ela quis dentro de uma perspectiva do que está vivendo como possibilidade. A responsabilidade de levar isso em uma cena de sexualidade adulta ou não é do adulto. Sempre.

UOL: A violência sexual muda a relação que a criança tem com sentimentos, como amor, atenção, carinho? Ficam distorcidos?

Rosemary: Com certeza. Dando supervisão nos abrigos, por exemplo, os educadores homens relatam que tudo o que as meninas vítimas de violência sexual querem buscam na base da sedução. Elas aprenderam que essa é a forma de serem notadas e amadas. É a confusão de línguas. A criança vai buscar o adulto na linguagem da ternura, recebe uma resposta na linguagem erótica e confunde ternura e erotismo. Percebe? São meninas que têm uma forma de buscar carinho e atenção de uma forma erotizada, e, muitas vezes, isso é interpretado como a menina que quer, levando a novos abusos.

Rosemary Miahara, especialista em violência sexual contra a criança e o adolescente - Simon Plestenjak/ UOL - Simon Plestenjak/ UOL
Imagem: Simon Plestenjak/ UOL

UOL: Que consequências ficam para a vida adulta? É possível tratar?

Rosemary: Esse é o desafio que tomei para mim nesses quatro anos do doutorado: ajudar a pessoa a superar as sequelas psíquicas advindas de uma experiência como essa. Uma coisa que sempre me chamou atenção, na época em que estava na frente da recepção das crianças e famílias que buscavam atendimento, muito frequentemente, aparecia o relato emocionado de uma mãe que tinha vindo trazer a filha, que tinha sido abusada, e essa mãe relatava o abuso que ela própria tinha sofrido, pela primeira vez na vida.

UOL: Toda vítima de abuso fica traumatizada?

Rosemary: Não. A gente conta com a plasticidade do psiquismo infantil. Muitas vezes, se ela viveu em um clima amoroso, quando ela passa a saber que aquilo não podia ter acontecido e tem um apoio para que não se sinta culpada, ela não carrega isso.

UOL: Como os pais podem perceber os sinais e acabar com o abuso?

Rosemary: A primeira perspectiva é realmente apurar o olhar para isso. A grande maioria das vezes, a mãe estava ali na cena, fazendo comida no fogão e o padrasto mexendo com a criança atrás.

É preciso ter realmente a perspectiva de olhar para isso como possibilidade"

UOL: E em caso de dúvida?

Nenhum pai, nenhuma mãe, nenhum professor tem a obrigação de ser um expert nessa área para dizer "isso é abuso ou não é abuso". Qualificar como abuso é sempre uma coisa muito delicada. Então procure o serviço especializado, o Conselho Tutelar, para fazer  uma notificação. Isso não significa que é uma denúncia, que já vai prender a pessoa. É a notificação que vai disparar um processo de averiguação, de avaliação dessa situação.

UOL: Quem é abusado mais? Menino ou menina?

A gente está falando inclusive de questões de gênero, de poder. Isso está posto na cultura. A mulher tem uma probabilidade maior de ser submetida ao masculino. A incidência maior é porque tem ainda na cultura esse viés do macho como dominador. Nossa cultura é falocêntrica e adultocêntrica. Então esse adulto pode submeter uma criança, esse homem pode submeter uma mulher. Esses vieses culturais, que falam de poder e de relações de gênero, também contribuem muito na questão do abuso sexual.

UOL: É mais comum que o homem abuse?

Rosemary: Exatamente, muito mais comum [nota da Redação: em 2015 e 2016, em 62,5% dos casos denunciados, o abusador era homem, de acordo com o Ministério de Direitos Humanos].

UOL: Abusador e pedófilo são coisas diferentes?

Rosemary: Completamente diferentes. Um dos focos do estudo do meu doutorado foi exatamente isso: quem é esse sujeito que hoje está chegando para atendimento? Ele tem uma perversão sexual? A pedofilia é um transtorno de preferência sexual. Esse adulto só se excita com a figura infantil. Ele realmente articula, desafia a lei. Ele vai dar um jeito de fazer um pacto. A questão de atingir o gozo com uma criança é seu lema de vida. Esses são mais difíceis ainda de serem pegos, flagrados, porque têm toda uma articulação para que isso não venha à tona.

UOL: E o abusador?

Rosemary: O que tem chegado para atendimento mais frequentemente é um abusador que não é pedófilo. Ele não tem um traço muito importante da pedofilia que é a desconsideração do outro como pessoa. O mecanismo de defesa do pedófilo é a renegação: eu sei bem que é errado, mas mesmo assim faço. Sem nenhum conflito ético. Muito diferente do abusador, que está em um movimento no qual se sente excitado, tem um contexto, não se satisfaz com a mulher, foi abusado no passado e abusa. Sem premeditar.

UOL: Mas todo abusador é pedófilo?

Rosemary: Com certeza, não. A grande maioria que tem chegado para o atendimento não é pedófilo. 

UOL: O foco do atendimento é fazer com que esse homem não abuse de novo?

Rosemary: É sempre uma perspectiva de estabelecer essa interdição interna que ele não teve na hora que abusou. A gente tem casos em atendimento até de agressores que já cumpriram pena, saíram da cadeia e voltaram a sentir novamente impulsos sexuais por crianças ou adolescentes. Esses pedem tratamento. Conseguem perceber que o sistema prisional os conteve, mas, de verdade, não cuidou dos disparadores internos que fazem com que cometam abusos.

UOL: O pedófilo pode ser tratado?

Rosemary: Já existem estudos e teóricos falando disso, mas é um tema ainda complexo.

UOL: Existe pedófilo que nunca exerceu a pedofilia?

Rosemary: Sim, existem aqueles que ficam no nível da masturbação, da fantasia. Mas é o tal negócio: alimentam o mercado de pornografia infantil.

UOL: Você acha que a função principal do Estado é proteger a criança?

Rosemary: É proteger no sentido de realmente interditar que isso aconteça, responsabilizar, mas não achar que é só isso. Levar a sério a possibilidade de tratamento do autor de agressão é uma medida de proteção da criança.

UOL: Tem se falando muito sobre hipersexualização da criança, do funk, da "novinha". Isso influencia que o abuso aconteça?

Rosemary: Vai acabar influenciando. Se esse adulto já tem um tipo de estimulação pela criança, pela jovenzinha, se tem um eco da cultura que fala que isso não é anormal, é claro que ele vai ser incentivado.

UOL: Trabalhar com isso afeta sua vida?

Rosemary: Não tem como se desvincular, tenho família. Comecei a trabalhar com isso quando fiquei grávida da minha primeira filha. Desde pequenininhas, minhas filhas tinham esse material e fui trabalhando com elas esse tipo de situação. A minha filha mais nova sempre foi uma menina muito cativante. As pessoas olhavam e falavam: "Que menina bonitinha" e ela já esticava o bracinho. Então eu ficava muito atenta aos adultos com os quais ela convivia. Lembro de uma vez que tinha um inspetor de aluno da escola, que trazia uns presentinhos para ela. E eu conversei seriamente: "Pode ser só uma impressão, até errada. Mas o coração da mamãe diz que é para ficar bem longe do tio tal, tudo bem?". Acho que a gente também tem de apostar na intuição. Estar atenta e ter a coragem de olhar isso também na sua prole. Acreditar que, porque trabalha com o assunto, não vai acontecer com a gente, não existe.