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"Passei quase cinco anos presa por um aborto espontâneo"

Maria Rivera passou quase cinco anos presa após sofrer um aborto espontâneo - Arquivo Pessoal
Maria Rivera passou quase cinco anos presa após sofrer um aborto espontâneo Imagem: Arquivo Pessoal

Helena Bertho

do UOL

05/12/2017 04h00

Aos 34 anos, a salvadorenha Maria Teresa Rivera passou quatro anos e meio na cadeia, acusada de homicídio agravado, foi solta e fugiu para a Suécia por medo de retaliações ou de voltar para a cadeia. O detalhe é que nunca existiram provas de que ela tenha matado alguém. Na verdade, Maria jura que sofreu um aborto espontâneo e a justiça não tem provas de que tenha sido diferente.

Mas, em El Salvador, o aborto é crime em qualquer situação e os médicos são obrigados a reportar qualquer caso suspeito de tentativa de interromper uma gestação. E quando Maria perdeu o filho, foi isso o que fizeram, resultando em sua condenação a 40 anos de prisão. Hoje, ela é considerada a primeira refugiada do aborto do mundo. 

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"Só fui ao banheiro, mas me chamavam de assassina"

A história toda começa no dia 24 de novembro de 2011. "Era de madrugada, eu acordei para ir ao banheiro, com dores no estômago. Quando me levantei do vaso, vi o sangue. Saí do banheiro, que ficava fora da casa, corri e pedi para que minha sogra chamasse uma ambulância. Desmaiei e acordei no hospital", lembra ela.

Só lá, recebeu a notícia de que estava grávida e acabara de perder o bebê, de aproximadamente 21 semanas. "Estavam policiais, enfermeiras, perguntando pelo meu filho. E eu só dizia que não sabia que estava grávida, só fui ao banheiro. Mas me chamavam de assassina."

Do hospital, foi levada para uma prisão local no dia seguinte, com a acusação de homicídio agravado, para aguardar a audiência.

"Na minha cabeça, vinham as perguntas. Como eu não vi que estava grávida? Por que minha barriga não cresceu? E pensava no meu outro filho, com seis anos, era tudo o que não queria para ele."

Para Sara Garcia, representante da ONG Agrupación Ciudadana, que oferece apoio jurídico a presas por aborto no país, o que houve com Maria é resultado de como a lei funciona: "A criminalização absoluta do aborto tem como uma das consequências isso. Quando uma mulher tem uma emergência obstétrica, um sangramento ou aborto espontâneo, buscam um hospital público, isso já é motivo para investigar ou perseguir". 

Condenada a 40 anos na cadeia

A primeira audiência aconteceu depois de alguns dias. "Eu achei que ficaria livre, já que não cometi nenhum delito", conta Maria. Mas o resultado não foi o que esperava e ela foi condenada a 40 anos de prisão por homicídio. "Eu nunca fui examinada para provar nada", alega.

Na prisão, Maria tentou todos os tipos de recursos que a defensoria pública oferecia. Enquanto isso, conta que viveu um pesadelo. "Lá, me chamavam de 'mata-niños' [assassina de crianças], me insultavam de uma maneira horrível e até diziam que iam me matar."

Em 2012, teve todos seus recursos negados e saiu a sentença definitiva de 40 anos de encarceramento. Foi aí que surgiu uma ajuda inesperada. A ONG que luta pelo aborto no país, Agrupación Ciudadana, foi até ela. "Eles me ofereceram ajuda e eu disse: 'sou pobre, não tenho como pagar'. Mas me deram ajuda grátis. Através deles, conheci outras mulheres presas pelo mesmo crime. Éramos 17."

Liberdade por falta de provas

Por dois anos, a situação não mudou. Em 2014, a Anistia Internacional começou uma campanha pela liberdade das 17 presas por aborto em El Salvador. No início de 2015, uma delas conseguiu o perdão da Assembleia Nacional e foi solta, renovando as esperanças das demais.

De fato, em maio de 2016, foi a vez de Maria Teresa. Um tribunal decidiu anular sua sentença, após a defesa argumentar que a autópsia não provava se o feto havia nascido morto ou vivo, assim como não havia provas de indução de aborto. O tribunal concluiu que "existiam debilidades na autópsia realizada no cadáver e não se estabeleceram os elementos comprobatórios que determinassem que foi ela quem tirou a vida de seu filho".

"Fui marcada como assassina"

Livre, Maria voltou para a casa com sua sogra e o filho -- o pai sempre foi ausente -- pronta para refazer a vida. No entanto, o medo passou a ser parte da sua rotina.

"A sociedade me marcou como assassina. Quando saía de casa, ia com medo. Medo de ser presa outra vez. Os meios de comunicação estavam todos contra mim e meu filho perguntava o porquê do que via na televisão."

Ela diz que só foi possível seguir graças ao apoio da ONG que a ajudou sair da cadeia e outras pessoas que se solidarizavam.

Além do julgamento público, em junho de 2016, a Controladoria Geral da União do país entrou com recurso contra ela.

Maria se manifestando a favor de Teodora, outra salvadorenha presa que terá audiência de revisão de pena no dia 8 de dezembro - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Maria se manifestando a favor de Teodora, outra salvadorenha presa que terá audiência de revisão de pena no dia 8 de dezembro
Imagem: Arquivo Pessoal

Refúgio na Suécia

Devido à repercussão de seu caso, em outubro foi convidada a participar de um seminário da Suécia - e foi, já sabendo que nunca mais voltaria. "Fui com meu filho e cheguei com muito medo, porque em El Salvador me tratavam como fugitiva. Mas na migração me escutaram e no mesmo dia fui enviada para um campo de refugiados", lembra.

Até março de 2017, Maria Teresa e o filho viveram de maneira temporária nesse campo, até que o país aceitou seu pedido de asilo definitivo.

"Nos deram uma nova casa e agora comecei a estudar sueco, para depois poder trabalhar. Foi tudo muito difícil, mas estou feliz de seguir em frente. Meu filho logo aprendeu sueco e está bem aqui. Eu sei que, mesmo que me matasse de trabalhar, em El Salvador viveria com medo."

Sara Garcia, da Agrupación Ciudadana, o asilo a Teresa significa também muito para as mulheres de El Salvador. "Foi um feito histórico e importante. Finalmente foi colocado em evidência como o estado salvadorenho não pode protegê-la". 

"Não posso me calar"

Em segurança, agora Maria Teresa não se cala. Se antes de 2011 ela nem acompanhava as questões de direitos das mulheres e não pensava sobre aborto, agora essa é sua bandeira. "Eu não posso ficar calada. Sei que sofri uma violação, as leis precisam mudar. É por todas as meninas e mulheres que vêm depois de mim. Quero que tenhamos a oportunidade de decidir, porque é nosso corpo. Em El Salvador, o Estado manda em nossos corpos."

Segundo Sara, hoje são 27 mulheres presas no país com casos semelhantes sendo apoiadas pela organização. "A maioria delas enfrentou emergência obstétrica, foi denunciada por aborto e condenada por homicídio. Devem existir outras que ainda não encontramos. É uma violência estrutural que se aprofunda", afirma.