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Violência doméstica: as Claras da vida real que denunciaram seus agressores

Clara, personagem de "O Outro Lado do Paraíso" - Cesar Alves/TV Globo
Clara, personagem de 'O Outro Lado do Paraíso' Imagem: Cesar Alves/TV Globo

Daniela Carasco

do UOL, em São Paulo

25/11/2017 04h00

Vítima de um relacionamento abusivo, a personagem Clara, interpretada por Bianca Bin na novela “O Outro Lado do Paraíso”, representa na ficção milhares de histórias que se repetem na vida real. A prova está nas estatísticas. Por isso, a importância de falar sobre o tema neste 25 de novembro, “Dia Internacional da Não-Violência Contra a Mulher”.

Só no primeiro semestre de 2016, a Central de Atendimento à Mulher, Ligue 180, recebeu cerca de 58 mil relatos de violência doméstica. Um aumento de 133% em comparação ao ano anterior. Os números são altos, e as histórias chocantes.

Assim como a personagem da ficção, muitas vítimas sofrem caladas até terem coragem para denunciar o agressor. Um levantamento do Data Senado, de 2017, mostrou que 27% nunca fez nada contra o autor da agressão. Das que denunciam, segundo a Central 180, 37% chegam a levar mais de 10 anos para procurar ajuda.

“O relacionamento abusivo não é uma escolha, mas uma prisão. A mulher demora muito tempo para compreender que não é responsável pelos atos de violência do parceiro e não tem o poder de mudá-lo”, diz a promotora de Justiça Valéria Scarance. “Passam-se meses ou anos até romper o silêncio.”

Esse é o caso das 16 vítimas ouvidas pelo UOL, que conseguiram virar o jogo contra o ex-companheiro agressivo. Da mesma maneira que Clara, algumas só foram à Delegacia prestar queixa depois de sofrer uma agressão que não esperavam viver nem no pior dos pesadelos. Já outras deram um basta definitivo na relação por amor aos filhos.

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As tomadas de iniciativa começam a aparecer na prática. No ano passado, de acordo com o Conselho Nacional de Justiça, tramitaram mais de 1 milhão de processos nas Varas de Violência Doméstica do país, sendo mais de 334 mil novos casos. A cada 3 minutos, é concedida uma medida protetiva no país.

Aqui, seis “Claras da vida real” contam suas histórias de dor e sofrimento, e revelam o momento em que quebraram o silêncio. Segundo elas, ainda falta que a Justiça cumpra melhor o seu papel.

“Dei um basta depois que ele invadiu minha casa e me violentou sexualmente”

“Sofri calada durante os três anos de uma relação marcada por humilhações verbais e agressões físicas. Ameaça, intimidação, socos, chutes, abuso sexual… Sofri todo tipo de violência. Por duas vezes, tomei a decisão de denunciá-lo. Em ambas, ele foi preso. Só que tomada por um sentimento inexplicável de culpa, por achar que no fundo ele me amava, retirei a queixa e o ajudei a sair da prisão. Ele nunca mudou. Três meses depois, no dia 1º de novembro, ele foi ao meu trabalho me ameaçar, invadiu minha casa e me obrigou a ter relação sexual com ele. Neste momento, eu disse chega. Minha alma sangrava. Fiquei mal por não ter feito nada quando levei o primeiro murro no peito, na primeira ofensa… Denunciei pela última e definitiva vez. Hoje, penso só em mim.” - KG, 46, funcionária pública

“Gritei por socorro quando ele atendeu o telefone”

“Ficamos juntos durante 21 anos. Vivi um casamento em que fui agredida fisica e psicologicamente. Com frequência, ele me xingava de burra, vagabunda, incompetente e gorda. Decidi denunciá-lo depois de descobrir uma traição. Deixei de amá-lo. Me olhei no espelho e vi no reflexo uma mulher feia e magoada. Era hora de mudar de vida. A autoconfiança me deu forças para pedir a separação, negada repetidamente. Conheci outro rapaz, que me notou e me desejou. Meu ex desconfiou e vasculhou meu telefone, onde encontrou uma troca de mensagem sem grandes detalhes. Abri o jogo, sai de casa e prometi a mim mesma que não voltaria. Ele me ligou para definir o fim da relação. Fui ao encontro dele. Quando terminamos de comer, ele partiu para cima de mim. Lembro perfeitamente das palavras dele: ‘Vou te bater e, depois, te matar’. Por sorte, o telefone tocou. Assim que atendeu, gritei por socorro. Minha irmã foi ao meu encontro e me acompanhou até a Delegacia da Mulher. Eu estava humilhada, me sentia dolorida. Fiz a denúncia e o pedido de medida protetiva. Ele continuou me ameaçando. Foi preso em flagrante, mas passou apenas uma semana detido. Depois disso, aprendeu a me respeitar. Foram dias muito difíceis. Ainda dói relembrar, mas me alivia saber que estou livre.” - GS, 48, corretora de imóveis

“Denunciei depois que ele também agrediu nossa filha”

“Vivi dois anos de um relacionamento violento, que atingiu a mim e à nossa filha. A violência começou na cama. Ele tirava a camisinha no meio do ato, sem que eu soubesse. A gravidez foi inevitável. Para ele, a oportunidade de um elo eterno entre a gente. Apanhei durante toda a gestação. Aos oito meses de vida, nossa filha também virou alvo. Os maus tratos paternos iam da alimentação forçada a ataques físicos. Tentei protegê-la e exigi que ele mudasse de comportamento. Nada aconteceu. No dia das crianças de 2010, tomei a iniciativa de dar um basta naquela relação, por mim e por ela. Fui fortemente agredida dentro da casa da minha ex-sogra ao tentar impedi-lo de fazer nossa bebê dormir à força. Levei um soco no olho e fraturei um dente. Aproveitei a porta aberta para fugir e chamar um táxi rumo à única delegacia de plantão. Fiz a denúncia e me escondi na casa da minha mãe. Dois meses depois, fiz uma representação contra ele, agora, numa Delegacia da Mulher. Nosso silêncio só dá força ao agressor. Em 2016, ele foi condenado a três meses de prisão, que se reverteram em liberdade condicional. A justiça ainda é falha. Tenho medo, mas sei que fiz o certo.” - MM, 47, funcionária pública

“Ele me deixou desacordada e a mãe dele me incentivou a denunciá-lo”

“Tapas, chutes, perseguição, ameaças de morte, faca no pescoço… Os quatro anos de relacionamento abusivo chegaram ao fim de uma maneira traumática, com um soco na nuca que me deixou desacordada. A mãe do meu agressor me incentivou a denunciá-lo. O apoio dela foi fundamental para eu ter tomado a iniciativa. O pai de uma amiga me acompanhou até uma delegacia comum. O ano era 2005, um ano antes da criação da Lei Maria da Penha. Em dois meses, aconteceu a primeira audiência e ele foi obrigado pela justiça a se manter afastado, em um raio superior a 200 metros de distância. No início, chegou a me perseguir, mas logo parou. Nunca mais me procurou.” - AF, 31, vendedora

“Reagi por mim e pelos meus filhos”

“Durante 11 anos, vivi repetidos ciclos de violência. Não porque eu gostava de apanhar, como muita gente pensa. Apanhei por medo, para defender meus filhos, pela minha família. Cheguei a ser abusada pelo meu próprio marido. No início, perdoei porque amava, acreditei nas falsas promessas de que ele não levantaria mais a mão pra mim. Só me senti forte para separar depois do nascimento do caçula. Ficou uma semana fora de casa. Quando voltou, me agrediu na frente dos meus pequenos. Veio para cima de mim com um pedaço de pau. Consegui me defender, mas fiquei toda marcada. Foi o fim, não suportava mais aquele inferno. Chamei a polícia e fui levada para a delegacia para fazer o boletim de ocorrência. Ele já descumpriu a medida protetiva diversas vezes, principalmente, quando estava sob o efeito de drogas. Só me resta, confiar em Deus e a certeza de que a culpa nunca é da mulher.” - CP, 32, funcionária pública

“Agi depois que ele tocou fogo na minha casa pra me matar”

“Foram três anos de anos de casamento, três anos de agressão física, psicológica e sexual. O dia mais marcante foi o que ele quebrou a porta da minha casa e tentou me matar queimada. Ele botou fogo comigo lá dentro. Se não fossem os vizinhos, eu e minhas filhas não teríamos sobrevivido. Depois de tantas humilhações, comecei a fazer tratamento psicológico. Só então decidi que precisava denunciá-lo. Na delegacia comum, nos colocaram lado a lado. Ele, algemado, gritava a todo o momento que iria acabar com a minha vida. Fui encaminhada para uma Delegacia da Mulher, onde fui melhor recebida. A Justiça o soltou e me deu apenas uma medida protetiva de 300 metros. Ele continuou me perseguindo. A única solução que encontrei foi a de mudar de cidade. Mudei minha vida por conta de um agressor, que por posse me deixou marcas no corpo e na alma.” - GF, 29, auxiliar de escritório