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Jurista rigorosa e feminista, Raquel Dodge é mais que "a escolha de Temer"

Raquel Dodge durante a reunião na sede da PGR, em julho. - Pedro Ladeira/Folhapress
Raquel Dodge durante a reunião na sede da PGR, em julho. Imagem: Pedro Ladeira/Folhapress

Josie Jeronimo

Colaboração para o UOL, de Brasília

31/08/2017 04h00

Dois erros de interpretação podem ter sido cometidos após a polêmica reunião entre a nova procuradora-geral da República, Raquel Dodge, e o presidente Michel Temer, na noite de 8 de agosto, no Palácio do Jaburu. Equívoco um: atribuíram a ela as ambições comuns dos que chegam ao poder em Brasília. Equívoco dois: subestimaram a inteligência estratégica de Temer ao supor que o enfraquecimento da Lava Jato terá a bênção automática da nova procuradora.

As virtudes de Raquel é que podem ser úteis ao presidente investigado na operação, a partir do dia 18 de setembro, quando ela assumirá a vaga de Rodrigo Janot. Entre elas, sua conhecida mania pelos detalhes da letra fria da lei, a busca pela saída impecável em detrimento da solução mais prática - qualidades que compõem o "ideal do comportamento" entre os juristas, mas que na vida real esbarram em um sistema repleto de vícios. Essa é a aposta dos peemedebistas para sobreviver à Lava Jato. Muitos dos procedimentos que fizeram as investigações andarem a passos largos arrepiam os puristas das leis.

Diante de uma pergunta que poderia ser simplesmente respondida com um "sim" ou "não", a primeira mulher a comandar a PGR não resiste à tentação de desfilar uma série de argumentos lógicos, históricos de jurisprudências, pontos e contrapontos para ilustrar a mesma ideia. Costuma ser assim até nas tarefas mais cotidianas de seu gabinete - o UOL ouviu oito pessoas próximas à nova procuradora, entre elas, ex-colegas que citaram essas características.

O trabalho com Raquel tem uma musculatura intelectual, fica forte para qualquer enfrentamento, mas lento e pesado para uma arrancada. Essa obsessão pelo formalismo difere do personalismo dos últimos procuradores, que não titubearam diante de uma oportunidade para travar embates pessoais com outros homens públicos.

Antagonista de Janot e dos "tuiuiús"

A inspiração de Raquel veio de mestres da faculdade e ex-chefes que chegaram ao Supremo Tribunal Federal. A nova procuradora foi aluna do ministro Marco Aurélio de Mello, o assessorou quando ele ainda estava no Tribunal Superior do Trabalho (TST), e também teve Francisco Rezek como professor e, posteriormente, como chefe no STF.

Raquel também tem um diferencial que escapa a muitos profissionais do Direito: gosto e conhecimento pela gestão. Ela faz parte de um pequeno grupo que há algum tempo critica a politização do Ministério Público Federal.

Rodrigo Janot e Raquel Dodge: estilos diferentes na PGR - Pedro Ladeira/Folhapress - Pedro Ladeira/Folhapress
Rodrigo Janot e Raquel Dodge: estilos diferentes na PGR
Imagem: Pedro Ladeira/Folhapress

O combate à corrupção garante os holofotes mais fáceis à instituição. Mas, a nova PGR defende que há outros temas essenciais que não atraem tanta mídia, como os Direitos Humanos e fiscalização dos serviços do Estado. Sua meta é a construção de um MPF mais voltado ao cidadão, que não esteja apenas no noticiário de escândalos políticos.

A politização do MPF teve origem após a gestão de Geraldo Brindeiro, no governo de Fernando Henrique Cardoso. À época, os procuradores criticavam o tratamento diferenciado que os colegas mais afinados com o governo recebiam. Criaram então um "grupo de resistência", mais à esquerda, que ganhou o nome de "tuiuiús", por serem aves com dificuldade de alçar voos.

A partir daí, os tuiuiús dominaram as listas tríplices das indicações à PGR e passaram a utilizar o comando da instituição como frente de polarização política, deixando as questões sociais e de gestão pública em segundo plano. Raquel nunca foi um tuiuiú. É contra as posições de Janot, um legítimo representante da "espécie".

Os próximos dois anos mostrarão como homens que se guiam apenas pelo poder e só entendem as barganhas que geram contrapartidas vão se relacionar com uma mulher de "elevado espírito público", como ela mesma costuma se definir em conversas privadas. Suas ambições não são o poder pelo poder, mas pelo registro de uma história, de uma biografia, de um trabalho que gere impacto coletivo.

Inspiração de Raquel é o pai

A grande inspiração de Raquel é o pai, o subprocurador aposentado José Rodrigues Ferreira. Ele, a mulher e os quatro filhos viviam, na década de 1960, em Morrinhos (GO), cidade que atualmente tem pouco mais de 40 mil habitantes. Católicos, quando Raquel nasceu, em 1961, não esperaram nem mesmo uma semana para batizar a filha na Paróquia Nossa Senhora do Carmo.

A família deixou a cidade após José passar em concurso para juiz em Formoso (GO). Na década de 1970, nem instalações existiam e seu pai inaugurou a comarca. Tempos depois, ele ingressou no Ministério Público Federal e a família mudou-se para Brasília. Na universidade da capital, Raquel começou a estudar Direito.

A procuradora conheceu o marido, o americano Bradley Lay Dodge, professor da instituição Escola das Nações, ao procurar aulas para aprimorar o inglês para o mestrado que faria em Harvard. As lições renderam um romance, casamento e dois filhos.

O mais velho, Eduardo, é a cara da mãe. Os mesmos olhos, o jeito calmo. A filha, Sophia, tem seu idealismo. Mas nenhum dos dois seguiu a carreira materna. O primogênito estuda desenho industrial e a caçula, psicologia.

Feminista, mas sem panfletagem

Raquel é dona de um discurso de empoderamento feminino comedido e reservado a poucos que a cercam. Dá ordens, mantém posições firmes sem nunca denotar irritação. Não é adepta de um feminismo panfletário, mas, em algumas ocasiões, já focou seu trabalho para analisar a inserção da mulher nas políticas públicas.

Em meados dos anos 2000, foi até a Costa Rica participar de um debate sobre preconceito e racismo. Voltou interessada na temática das políticas de Saúde que envolviam a anemia falciforme, doença que provém de alteração genética e afeta principalmente as pessoas negras. Raquel decidiu se aprofundar no assunto e passou a sustentar a tese de que as mulheres sofrem mais com a doença que os homens. A posição não foi bem acolhida entre líderes do movimento negro e, após a polêmica, ela decidiu não investir mais tantas energias no debate.

Raquel também tem paixão pela causa indígena. No início da carreira, mantinha a sala enfeitada de adereços étnicos. O filho, Eduardo, segue o gosto da mãe nesse quesito e se inspira nesses elementos indígenas para criar peças de design.

Raquel Dodge, a nova procuradora-geral da República - Pedro Ladeira/Folhapress - Pedro Ladeira/Folhapress
Raquel Dodge, a nova procuradora-geral da República
Imagem: Pedro Ladeira/Folhapress
Elegância discreta

No visual, no entanto, Raquel não incorpora esses elementos étnicos - nada de acessórios extravagantes. A nova PGR é sóbria em suas escolhas de moda e não usa nada que remeta a símbolos, guardando apenas para os mais próximos qualquer bandeira que entregue sua identidade ideológica.

A elegância discreta da futura procuradora-geral - que está sempre vestida com uma alfaiataria clássica, joias delicadas e saltos altíssimos - chamou a atenção na sabatina do Senado.

Esse lado "chique" foi aprimorado não só com a formalidade de seu ambiente profissional. Acompanhar o marido nos compromissos de trabalho, em uma escola voltada ao ensino de filhos de diplomatas que moram no Brasil, contribuiu para que Raquel construísse estilo de elite cosmopolita em seus looks.

Melhor amiga e parceira de tribunal

A melhor amiga de Raquel é a subprocuradora Deborah Duprat, sua madrinha de casamento. As duas costumam se unir nos tribunais. Deborah já contou com a amiga durante julgamento de caso da Operação Caixa de Pandora. As duas fizeram parceria, com direito a troca de bilhetinhos no tribunal, para rebater argumentos de advogados de defesa do ex-governador do Distrito Federal José Roberto Arruda.

Apesar do apreço pelo tema dos Direitos Humanos, Raquel tem longa experiência em matéria criminal. Antes da atuação no comando da Operação Caixa de Pandora, participou da equipe responsável pela condenação de Hildebrando Paschoal e do esquadrão da morte.

Raquel ainda amamentava quando precisou se debruçar sobre processo que investigava participação do ex-deputado federal em homicídio com uso de motosserra, no Acre.