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Soropositivos falam sobre como é viver com HIV

Alexandre, 57, é soropositivo desde 1997 e, hoje, tem a doença controlada - Alex Almeida/UOL
Alexandre, 57, é soropositivo desde 1997 e, hoje, tem a doença controlada Imagem: Alex Almeida/UOL

Andrezza Czech

Colaboração para o UOL, em São Paulo

15/02/2016 08h05

 

Em 2000, estimava-se a ocorrência entre 29 mil e 51 mil novas infecções por HIV no Brasil. Em 2014, essa faixa subiu para 31 mil a 57 mil, segundo dados divulgados pela Unaids (Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/Aids), em julho de 2015 . Mesmo assim, falar sobre o tema abertamente ainda é algo raro no país. 

Por isso, o UOL conversou com três pessoas que, de diferentes maneiras, ajudam a levar informação de forma clara sobre o vírus: o ator, cantor, diretor e dramaturgo Gabriel Estrëla, 23, que escreveu um musical sobre ser um jovem soropositivo; a ativista Mara Moreira, 39, da Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV e Aids, do Movimento Nacional das Cidadãs Posithivas e do Grupo pela Vidda, e Alexandre Gonçalves de Souza, 57, que criou um blog para compartilhar notícias e experiências pessoais relacionadas ao HIV. Os três contam sobre como foi a descoberta do diagnóstico, como é a rotina de quem vive hoje com o vírus, seus relacionamentos, dúvidas e o preconceito que ainda têm de encarar.

Descoberta e aceitação

Em 2010, ao som de "Boa Sorte", da cantora Vanessa da Mata, o brasiliense Gabriel Estrëla descobriu ser soropositivo. Entre a hora em que lia seu diagnóstico enquanto ouvia uma mulher cantando essa música no laboratório e o momento em que decidiu escrever e dirigir um musical sobre ser um jovem soropositivo, cinco anos se passaram. “Leva um bom tempo até se aceitar como portador de HIV. Você recebe um pedaço de papel dizendo que tem o vírus, mas se olha no espelho e não vê nada.”

Estrëla estudava comunicação, mas decidiu trocar o curso por biomedicina, na intenção de entender mais sobre o vírus e ajudar os outros. Nessa época, participou de uma montagem de “Rent”, musical que fala sobre jovens dos anos 1980 que descobrem ter HIV, e viu que o teatro era o caminho que ele deveria seguir. Em 2012, no segundo semestre do curso de artes cênicas na UnB (Universidade de Brasília), ele escreveu um texto sobre um jovem que descobre ter o vírus.

“Mostrei a um professor e ele perguntou: por que você não monta?”, conta. Anos mais tarde, a peça que foi apresentada na faculdade acabou dando origem ao musical “Boa Sorte”, que estreou em outubro de 2015 e contou, por meio de músicas da MPB, um pouco sobre a convivência de Estrëla com o vírus.

A fluminense Mara Moreira descobriu ser soropositiva há 20. “Eu me casei em dezembro de 1994. Meu marido ficou doente em janeiro (do ano seguinte) e veio a suspeita de que ele poderia ser soropositivo, O resultado, naquela época, levava três meses para sair. Depois, foram mais três meses até sair o meu diagnóstico.” Ao descobrir, Mara tinha terminado a formação para se tornar professora e entraria na faculdade de teologia. “Parei para entender o que estava acontecendo comigo e como seria minha vida daquele momento em diante.”

Gabriel escreveu um musical sobre ser um jovem soropositivo - Roberto Jayme/UOL - Roberto Jayme/UOL
Gabriel escreveu um musical sobre ser um jovem soropositivo
Imagem: Roberto Jayme/UOL

O santista Alexandre Gonçalves de Souza também convive com o vírus há bastante tempo. A descoberta aconteceu em 1997. “Não tive reação nenhuma quando descobri. Eu não usava preservativo.  Tinha uma vida sexual intensa, já imaginava que teria HIV." Souza tinha acabado de perder o emprego de gerente de exportação. “Tudo aconteceu de uma só vez. Minha reação foi parar o tratamento. Entre 1998 e 2000, fiquei sem medicação. Achava que isso resolveria tudo.”

Como consequência, seu estado de saúde se agravou muito. “Foram anos terríveis, tive muitas doenças. Foi então que acordei desse estado que chamo de hipnose e voltei a procurar um médico.” Ele fala que, em situações como essas, o vírus se fortalece e é muito raro conseguir reverter o quadro, mas ele conseguiu: hoje sua carga viral está indetectável.

A rotina

A frequência de consultas ao médico depende do estágio do tratamento e da evolução do vírus. "Fazemos exames de monitoramento da saúde em geral e de acompanhamento da carga viral do HIV”, conta Souza. E os medicamentos, distribuídos gratuitamente pelo governo, devem ser tomados diariamente. Para ele, ter um bom médico é essencial para um tratamento eficaz. “Tem gente que só se abre com o profissional. Se ele não conversa e não responde direito, não dá certo.”

Estrëla também tem carga viral indetectável e por isso passa por consultas de seis em seis meses atualmente. Logo após a descoberta, no entanto, a mudança de rotina foi muito grande. “Nunca tive o hábito de ir muito ao médico, e morria de medo de agulha. Você está em um momento vulnerável e é uma mudança de vida muito brusca”, fala.

Mara faz o tratamento desde 1996 e é voluntária para testar novos medicamentos, pois está em situação de falha terapêutica, quando os remédios não alcançam o efeito esperado. “Hoje acompanho o vírus trimestralmente. Minha carga viral nunca conseguiu ser indetectável, por isso sou uma voluntária nata."

Contar ou não? 

Mara afirma ser totalmente contra esconder a sorologia. Tanto que, em 2014, decidiu escrever o blog “Mulher Vivendo com HIV/Aids”. “Quanto mais se assume, melhor é o tratamento, o ativismo, a qualidade de vida da pessoa. Nesses 20 anos, nunca escondi, minha cidade toda sabe", diz ela. Nascida e criada em Itaguaí, uma cidade do interior do Rio de Janeiro.

“Quando a informação se alastrou pela cidade, não sofri discriminação. Pelo contrário, todos me deram apoio”, afirma.

Mas é raro encontrar quem fale tão abertamente sobre o tema. Estrëla diz que é comum que até mesmo os médicos orientem os pacientes a não contarem para os outros que são portadores de HIV. “No primeiro dia que soube, falei para minha família. Estava tão apavorado que não sabia o que fazer.”

A reação de todos foi muito positiva, assim como a de seus amigos. “Minha mãe marcou o infectologista e, na minha primeira consulta, minha família foi comigo. Na segunda, foi meu namorado da época e, na terceira, meu melhor amigo”, conta.

Souza demorou para contar para a família por medo de preocupar a todos. Mas, quando decidiu voltar a fazer o tratamento, veio também a decisão de abrir o jogo. “Minha mãe me trata como se eu não tivesse nada, nunca me questionou, apenas quer que eu faça o tratamento. Meus amigos também. Alguns poucos sumiram, na família alguns se afastaram, mas eu não me preocupo com isso.”

Relacionamentos

Mara ficou viúva um ano e quatro meses após seu primeiro casamento e passou dez anos sem interesse em ter relacionamentos. Ela conta que o primeiro namorado após o casamento também era soropositivo. Quando conheceu o atual marido, logo revelou ter HIV. “Ele não é soropositivo e entendeu tudo. Somos casados há nove anos.”

Estrëla namora há sete meses, e o namorado também o apoia muito em seus projetos, além de acompanhá-lo nas consultas médicas. “Temos sempre que contar para o outro no caso de relacionamentos sérios. E é importante que quem não tem HIV faça parte dessa discussão tema também.”

Preconceito

Estrëla conta que ainda é comum que as pessoas associem o HIV a uma imagem específica. “A primeira informação que as pessoas tiveram sobre o vírus era relacionada a muito horror, por isso ainda existe a ideia de que que o soropositivo é uma pessoa muito magra, que está morrendo.”

Souza fala que sofreu preconceito até mesmo de dentistas, que negaram atendimento após ele contar que tem o vírus. “Ninguém te maltrata quando você diz que tem diabetes, por exemplo. Mas como o HIV está ligado a sexo, a reação é essa. É muito raro alguém falar claramente que tem, mas, se falássemos, seria muito melhor.”