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Tradição leva sauditas a manter carteira de motorista em segredo

Saudi Information Ministry via AP
Imagem: Saudi Information Ministry via AP

Vivian Nereim e Sarah Algethami

da Bloomberg

23/06/2018 09h45

O monarca da Arábia Saudita pode ter aberto a porta para mulheres sauditas como Shahd começarem a dirigir, mas mesmo assim ela precisa fugir de casa para fazer aulas.

A estudante de Administração, de 26 anos, sabe que será uma luta convencer seus pais porque, em sua comunidade, há quem ache vergonhoso ver uma mulher ao volante.

Assim que conseguir tirar a carteira de motorista, ela vai guardá-la em uma gaveta enquanto não tiver coragem para perguntar.

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"Vou ter que me adaptar a toda a sociedade", disse Shahd em uma cafeteria em sua cidade natal, Buraidah, no centro da Arábia Saudita, onde é raro ver o rosto de uma mulher exposto em público. "Não acho que seja certo forçar isso para eles."

O reino acabará com a proibição legal no domingo, mas o dilema de Shahd ilustra quão assustador será para muitas mulheres sauditas transcender de repente as tradições arraigadas que limitaram sua liberdade durante décadas de patriarcado imposto pelo Estado.

As leis de tutela impedem que elas viajem ou se casem sem a aprovação de um parente do sexo masculino, geralmente um pai ou marido, mas às vezes até mesmo um filho.

A mudança ocorreu de forma abrupta desde que o príncipe herdeiro Mohammed bin Salman delineou os planos para reduzir a dependência saudita do petróleo há dois anos, o que será difícil de fazer se metade de sua população não tiver poder.

No entanto, ao mesmo tempo em que amplia os direitos das mulheres e as liberdades sociais, ele prendeu mulheres que defendiam o direito de dirigir há anos e tem sido implacável com oponentes de sua agenda de reformas.

Famílias sauditas estão divididas entre aceitar ou resistir a mudanças que clérigos e autoridades do governo passaram anos retratando como pecaminosas. Alguns receiam que seus governantes estejam se aproximando do Ocidente de um modo que viola suas tradições e sua religião.

"O fato de as mulheres dirigirem, em si, provavelmente se tornará normalizado com relativa rapidez", disse Graham Griffiths, analista sênior da consultoria de risco global Control Risks, em Dubai.

"No entanto, como parte de uma revolução mais ampla nos papéis de gênero na sociedade saudita, isso terá implicações de longo prazo para a sociedade, o que ainda pode causar considerável agitação social ao criar profundas divisões."

O choque cultural é menos pronunciado em centros cosmopolitas como Riad ou Jidá, porque não era incomum que os pais fossem comparativamente flexíveis com suas filhas, pelo menos em famílias mais ricas.

Muitas até tiraram carteira de motorista enquanto estudavam ou passavam férias no exterior e trocaram-nas pelas licenças sauditas, orgulhosamente exibidas em selfies nas redes sociais.

O ajuste será maior em regiões remotas, como Alcacim, apelidada de Texas da Arábia Saudita por alguns por seu conservadorismo e pela prevalência de clérigos salafistas.

A província, cuja maior cidade é Buraidah, criou uma autoescola para mulheres, mas ela ainda não está aberta.

As mulheres entrevistadas pela Bloomberg estavam em conflito, ansiosas para dirigir, mas também querendo respeitar que suas culturas levariam tempo para se adaptar.

Duas disseram que se aventuraram dirigindo no deserto durante anos, longe do olhar público.

"Nosso problema agora é a vergonha e os costumes, não a lei islâmica", disse Asma Al-Musleh, de 43 anos, que contou uma história comumente citada sobre uma esposa do profeta Maomé andando de camelo no século 7.

Enquanto ela estava sentada sob as palmeiras em um parque local na cidade de Unaizah, um grupo de meninas estava, muito apropriadamente, dirigindo de um lado para o outro em carrinhos de brinquedo.