Topo

Está na hora de reescrevermos os contos de fadas?

Alamy
Imagem: Alamy

Hephzibah Anderson

Da BBC

23/04/2019 20h01

Muitas histórias infantis tradicionais são criticadas por serem baseadas em estereótipos de gênero e terem uma moral questionável - mas será que essas ponderações fazem sentido?

Eu costumava revirar os olhos sempre que ouvia sobre o pânico de pais com os contos de fadas, algo que parece se manifestar com a mesma frequência de surtos de piolhos em uma escola.

Sim, estas histórias podem ser sanguinárias, sua moralidade nem sempre combina com os costumes atuais, e seus estereótipos de gênero são tão inflexíveis quanto um sapatinho de cristal, mas são apenas contos de fadas.

Não era a mesma opinião de celebridades como as atrizes Keira Knightley e Kristen Bell, que juraram publicamente nunca deixar seus filhos assistirem aos filmes da Disney. Seria isso apenas mais um exemplo de uma visão que parece estar empenhada em acabar com qualquer graça da nossa infância?

Mas, então, como num passe de mágica, veio a maternidade e, com ela, muitas lições importantes - incluindo "nunca diga nunca".

Nunca diga, por exemplo, que você não vai se tornar um destes pais. Antes que você perceba, também vai ficar ansioso para citar os ensinamentos da feminista australiana Germaine Greer para a mãe da menina que não consegue acompanhar o ritmo das outras crianças no parquinho porque suas asas de fada estão literalmente fazendo ela ficar para trás.

Para mim, essa noção veio quando, depois de gastar uma nota com uma edição especialmente encantadora da coletânea de histórias do dinamarquês Hans Christian Andersen, não consegui encontrar nenhuma que quisesse ler para a minha filha até o fim.

De repente, o número de pais britânicos que editam contos de fadas ao lê-los em voz alta - mais de um em cada quatro, de acordo com uma pesquisa publicada em 2018 - fazia todo o sentido para mim.

Se fosse mãe de um menino, poderia ter ficado incomodada com a insistência incansável no heroísmo, na fobia da fraqueza e a desconfiança em relação a qualquer tipo de emoção. Como mãe de uma menina, minha principal preocupação é a obsessão com a beleza externa e o elo que essas narrativas formam entre um rosto bonito e um bom coração.

A ampla objeção moral dos contos a qualquer outra coisa que não a perfeição física idealizada parece estar preparando uma criança - e, vamos ser honestos, especialmente as meninas - para uma adolescência com todos os problemas associados à baixa autoestima.

A influência dos contos de fada

Conto de fadas - Alamy - Alamy
Imagem: Alamy

Num piscar de olhos, foi revelada para mim a influência que as histórias contadas para mim quando eu era criança tiveram sobre as horas que desperdicei aplicando e removendo maquiagem, para não falar de alguns lapsos drásticos de julgamento, quando se trata do personagem masculino (príncipes, certo?).

Sinto que tudo isso poderia ter sido evitado se não tivesse sido embalada para dormir por histórias como Cinderela e Branca de Neve, com suas narrativas sobre beldades indefesas se entremeando nos meus sonhos. Sim, eu me tornei uma daquelas mulheres que consideram princesas tóxicas.

Não que eu já tenha sido fã da cultura da princesa, mas aquela maçã envenenada sempre me pareceu muito mais um produto do cinema do que da literatura.

Contos de fada, fui educada a acreditar, eram uma fonte de força psicológica e verve imaginativa. Eles dotariam as crianças com as ferramentas para sobreviver a futuros desafios e para ensiná-los sobre suas próprias psiques. E, no entanto, meu problema com estas histórias persistiu.

Há, é claro, muitos livros anti-princesas para crianças, sejam reinvenções de contos de fadas ou narrativas independentes que envolvem seus leitores em debates animados. Foi a isso que recorri pela primeira vez quando percebi o quanto havia me tornado "alérgica" a princesas, mas, se há um clichê de gênero que rivaliza com o da princesa, é o da garota "briguenta".

Estes textos alternativos eram pobres em seu alcance imaginativo e, muitas vezes, estranhamente agressivos - não uma versão melhorada dos contos de fadas tradicionais.

'As histórias dão poder às crianças', diz escritora

Conto de fadas - Alamy - Alamy
Imagem: Alamy

Assim, quando vi que a premiada autora de livros infantis Sally Gardner havia escrito um romance para adultos baseado em A Bela e A Fera, esperava que, como uma sábia fada madrinha, ela pudesse me garantir que minha filha não estaria perdendo nada se nós evitássemos os contos de fadas - ou fizesse minhas preocupações desaparecerem num passe de mágica.

Escrito sob o pseudônimo Wray Delaney, A Beleza do Lobo é um conto fantástico complexo ambientado na Inglaterra elisabetana. Uma de suas principais reviravoltas é que a beleza de seu título é a de um homem jovem. Mas, se eu esperava que a autora tivesse empatia com minhas ressalvas feministas, eu estava equivocada.

"Você entendeu tudo errado!", ela exclamou quando conversamos por telefone. "Os contos de fadas são tão poderosos - eles contêm tudo o que você precisa. Eles são a forma de arte perfeita."

A chave para este poder é sua versatilidade, disse Gardner. Em João e Maria, por exemplo, "a criança feliz vê a velha casa bolorenta, a criança infeliz prova o pão de gengibre, a criança traumatizada conhece a sensação dos dedos da bruxa ossuda".

A escritora prossegue: "As histórias de fadas dão poder às crianças". Ela cita o gênero de livros infantis realistas. Se você der um desses "para uma criança 'presa em uma torre'", Gardner argumenta, "com uma mãe viciada e seu companheiro traficante de drogas, ela vai achar que não há saída. Dê-lhe Rapunzel e você lhe dará esperança".

Mas e quanto a todas as princesas? Em primeiro lugar, as crianças não precisam se identificar com elas, a escritora insiste. "Você pode ser qualquer coisa - pode ser a bruxa." Em segundo lugar, diz ela, é importante lembrar que esses contos são antigos. Explicar isso a uma criança pode ajudar a superar a fixação com a beleza.

Um conselho importante sobre a leitura de contos de fadas para as crianças é também simples: espere. Aguarde até o pequeno leitor ter 10 ou 12 anos e garanta que ela ou ele tenha em mãos uma boa edição.

Beleza como metáfora?

A mitóloga e crítica cultural Marina Warner destacou em seu estudo seminal de 1994, From the Beast to the Blonde (Da Fera à Loura, em tradução livre), que a maioria dos contos de fadas não era originalmente destinada a crianças.

Como ela disse em uma entrevista recente, os contos de fadas eram a literatura dos pobres e dos iletrados. Os irmãos Grimm, por exemplo, eram folcloristas. Foram os ingleses que transformaram as histórias reunidas por eles em literatura infantil quando sua tradução para o inglês foi publicada no século 19.

"Eles são sobre pessoas comuns que geralmente prevalecem contra obstáculos terríveis jogados em seu caminho por pessoas com mais poder do que eles. Há um elemento de coragem que é importante - a ideia de esperança e de ultrapassar barreiras."

Ela aponta que muitas jovens heroínas positivas que podem ser encontradas nos contos de fadas, como Gerda, de A Rainha da Neve. Vá além do óbvio e você encontrará histórias de fadas irlandesas e galesas com heroínas especialmente extraordinárias.

"A princesa vem principalmente dos escritores franceses do século 17 e do início do século 18. Mas também há muitas jovens se livrando de relacionamentos que elas não desejam ter."

Quanto à fixação aparentemente universal com a beleza feminina, "você tem de interpretar isso como uma metáfora", diz Warner. É mais importante lembrar que, juntamente com seu vocabulário imaginativo e sua insistência na esperança, os elementos sobrenaturais dos contos de fadas ensinam até os leitores mais jovens a entender que você pode se divertir com alguma coisa sem ter de "obedecer" a ela.

Ela enfatizou para mim outra lição vital da maternidade: que as crianças geralmente sabem o que estão fazendo e são invariavelmente muito mais inteligentes e intuitivas do que nós, adultos.

Além disso, como minha irmã destacou, ela foi criada exatamente com as mesmas histórias que eu e nunca ficou incomodada com as coisas de princesa.

Wray Delaney diz que, ao longo de sua carreira de um quarto de século como autora para crianças, ela observou uma mudança fundamental entre seus jovens leitores: ela costumava perguntar qual era o conto de fadas favorito deles e cada um tinha uma resposta; agora, dificilmente uma mão se levanta para responder.

"Estamos perdendo o conhecimento dos contos de fadas", observa com tristeza.

Dado que os autores como J.R.R. Tolkien, de O Senhor dos Anéis, citaram os contos de fadas como fontes essenciais de inspiração, isso parece ser bem mais preocupante do que qualquer passagem que possa inspirar o comportamento de meninas (ou meninos) impressionáveis?.

Por mais tentador que seja culpar os contos de fadas pelas falhas da revolução sexual, esta é apenas uma das inúmeras influências que conspiraram para manter gerações de mulheres em seu lugar.

Além disso, os contos de fadas são, como Warner os chama, um tipo de literatura que pode ser atualizada infinitamente.

Enquanto isso, minha irmã também me lembrou que meu conto de fadas mais amado era Cachinhos Dourados, com uma heroína de cabelos louros e de olhos azuis que, embora seja uma malcriada, é acima de tudo uma menina exigente - e não uma princesa.

Leia a versão original desta reportagem (em inglês) no site BBC Culture.