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'Desmaiei em aborto clandestino aos 17 anos e meu namorado sumiu'

Getty Images
Imagem: Getty Images

Nathalia Passarinho

da BBC Brasil, em Londres

12/06/2018 09h00

"A dor maior é a sentimental. É você se sentir sozinha." É assim que Maria*, de 24 anos, descreve como se sentiu ao fazer um aborto, sozinha, num quarto barato de hotel em São Paulo, aos 17 anos.

"Eu estava num relacionamento muito abusivo. Eu não percebia isso na época. Quando ele terminou, eu descobri que estava grávida. Então eu fui atrás de conseguir o medicamento e tomar minhas decisões", contou em entrevista à BBC Brasil.

Com medo da reação da mãe e das amigas, ela decidiu fazer o procedimento em segredo. Pegou instruções sobre como tomar o remédio com uma enfermeira que conhecia.

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"Quando eu fiz, eu fiz num hotel de péssima qualidade. Porque é tudo escondido, ninguém podia saber."

O ex-namorado de Maria era o único presente no quarto de hotel, quando ela tomou os medicamentos. Mas, a jovem começou se sentir muito mal e desmaiou. Em vez de levá-la ao hospital, o rapaz desapareceu por medo de ser incriminado.

"Foi dito que, se eu desmaiasse, tinha que chamar o socorro. Eu desmaiei por alguns segundos e ele não fez nada", relatou.

"Quando eu acordei eu fiquei muito chateada com isso porque era minha vida em jogo. Mas ele era maior de idade e eu era menor e ia pesar para ele isso, então ele foi embora e eu fiquei sozinha."

Maria passou a noite toda sangrando e sentindo fortes contrações. A única pessoa da família dela que sabia do aborto era a irmã, que também estava grávida.

"Quando a minha irmã me ligava eu não podia falar: 'Olha, está doendo demais e eu estou com muito medo'. Porque ela estava grávida de sete meses. Era minha escolha, não era a dela. Eu não podia preocupar uma pessoa que não tinha nada a ver com isso."

Sem saber bem o que fazer, a jovem voltou para a casa após a madrugada de aborto e demorou a procurar um hospital. Hoje ela tem consciência de que poderia ter morrido e de que perdeu muito sangue durante o procedimento.

Mas, para ela, a lembrança mais dolorosa é a da solidão que sentiu. "O pior sentimento acho que é o de abandono. Porque eu queria contar para a minha mãe. É a pessoa que eu mais amo no mundo e mais confio, mas não para isso. Por causa do julgamento, da religião, da crença."

'Não quero deixar outras mulheres sozinhas'

Da experiência "de abandono", como ela descreve, veio a decisão de integrar um grupo de WhatsApp secreto que comercializa pílulas abortivas e dá instruções sobre o procedimento de interrupção da gravidez, por vídeo, texto e aúdio. Cerca de 300 abortos foram realizados pelo grupo desde que ele foi criado, há três anos.

"Eu faço por amor, porque eu sei que vou ajudar uma pessoa a se sentir segura. Eu me vejo em cada uma daquelas meninas de uma forma diferente. Com uma saída mais fácil."

A BBC Brasil teve acesso às conversas do grupo por 5 meses. Quatro mulheres de diferentes estados do país administram o serviço e atuam como "guias"- acompanham as grávidas do começo ao fim do procedimento, pelo smartphone. O app também funciona como uma espécie de grupo de apoio, as mulheres trocam experiências e confortam umas às outras.

Maria diz que participou de 50 abortos.

"Eu instruo a quantidade de medicamento referente ao tempo gestacional, explico como usar. Dou apoio, falo do quanto é normal ela sangrar, quantas horas vai levar, mais ou menos, como agir referente a cada situação. É meio que um passo a passo até a finalização", relata.

Nem Maria nem as outras quatro jovens que administram o grupo de WhatsApp têm formação médica. As instruções se baseiam na experiência e em dicas de médicos e enfermeiros que conheceram ao longo da vida.

A médica Alessandra Giavanini, diretora do Núcleo de Aborto Legal do Hospital Pérola Byiton, alerta que o remédio abortivo pode provocar hemorragias (a mulher pode precisar de transfusão) e restos do feto podem permanecer no útero, levando infecções e até à morte, se a grávida não procurar ajuda em um hospital.

As administradoras do grupo de WhatsApp recomendam que todas as mulheres que interrompem a gravidez procurem atendimento médico até uma semana depois de tomar as pílulas, para verificar se há necessidade de curetagem.

Maria diz que, na realidade, queria que o aborto fosse legalizado, para que as mulheres tivessem acesso a um procedimento totalmente seguro.

Muitas mulheres no Brasil temem buscar atendimento nos hospitais, após interromper a gravidez, por medo de serem denunciadas à polícia. Segundo a Defensoria Pública de São Paulo, em cerca de 70% dos processos por autoaborto, a denúncia foi feita pelos profissionais de saúde.

Maria justifica a manutenção da "clínica virtual de aborto" dizendo que os riscos poderiam ser ainda maiores se as grávidas fizessem o aborto sozinhas, como ela aos 17 anos, sem o apoio de quem já passou por essa experiência.

"Não tem como garantir para elas que vai ser 100% seguro. A gente fala isso, não posso te garantir que vai acontecer nem que você está em plena segurança. Mas a gente faz o possível para isso: analisa o fluxo do sangramento, quanto absorvente está usando em tal período, fraqueza, tontura", detalhou em entrevista à BBC Brasil.

"Talvez, se eu não ajudar, essas mulheres vão tentar de outra forma. Tem moça que chega a mim dizendo que viu na internet um vídeo que se você enfiar uma agulha, você fura a bolsa, e pode furar outra coisa. Prefiro não deixar essas mulheres sozinhas."

De acordo com a Pesquisa Nacional do Aborto, de pesquisadores da Universidade de Brasília, 500 mil abortos clandestinos acontecem a cada ano no Brasil- metade termina em internações.

E dados do Ministério da Saúde apontam que quatro mulheres morrem por dia por complicações de um aborto.

O impacto da criminalização sobre o número de abortos

Um estudo publicado na revista médica Lancet, conduzido pela pesquisadora Gilda Sedgh, do Instituto Guttmacher, de Nova York, aponta uma taxa de 37 abortos a cada mil mulheres em países que vetam o aborto em qualquer circunstância ou que só o permitem em caso de risco de vida para a mãe.

Em nações onde a interrupção da gravidez é permitida e oferecida mediante pedido da gestante, o número de abortos é de 34 para cada mil mulheres.

Para esse estudo, foram requisitados dados oficiais de 184 países e analisadas informações de fontes internacionais (organismos e ONGs, por exemplo) e de pesquisas acadêmicas locais.

Já a pesquisadora Diana Greene Foster, da Universidade da Califórnia, que coordena um estudo sobre os efeitos psicológicos de abortos e gestações indesejadas, diz que proibir a prática não impede que mulheres com recursos financeiros recorram a ela, mas pode obrigar as mais pobres a ter o bebê.

"Tornar o aborto ilegal encoraja as mulheres a buscarem meios ilegais de abortar. Então, a segurança do aborto cai. E pessoas com menos recursos financeiros acabam tendo os bebês", diz.

O Brasil é um dos países com regras mais restritivas ao aborto- se junta à maioria da América Latina e países da África e do Oriente Médio. A maioria dos países desenvolvidos permite a interrupção da gravidez pelo menos até o terceiro mês de gestação.

É o caso de Estados Unidos, Canadá e dos integrantes da União Europeia. No Reino Unido, o aborto é oferecido no serviço público de saúde, caso seja esse o desejo da mulher.