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'Você quer ser minha família?': como as redes têm incentivado a adoção

Eliene, o marido, Pierre, e Camili: dois meses após visualizar fotos e vídeo da menina na internet, o casal iniciou o período de convivência para adotá-la - Jefferson Pena
Eliene, o marido, Pierre, e Camili: dois meses após visualizar fotos e vídeo da menina na internet, o casal iniciou o período de convivência para adotá-la Imagem: Jefferson Pena

Renata Moura

da BBC Brasil, em Londres

31/05/2018 09h54

"Eu olhei aquela foto, depois cliquei no vídeo e senti que ela já era a minha filha, que eu sempre fui a mãe dela e que a gente só estava separada."

A operadora de telemarketing Eliene Cristina Magalhães, de 28 anos, e o marido, o jornalista e servidor público Carlos Pierre, de 31, viam a menina se movimentar em frente à câmera, sorrir, abraçar e "trocar a fralda de uma bonequinha".

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"Apesar das limitações que ela tem, é uma criança muito doce e pode completar sua família", sugeriam a voz e as legendas em um vídeo de 1 minuto e 28 segundos que assistiam em casa, em Uberlândia, Minas Gerais - e que aproximariam, surpreendentemente, as vidas dos três.

Eliene não esquece: seus olhos estavam fixados em Camili.

Espera por uma chance

Diagnosticada com retardo mental moderado, a menina morava a mais de 1 mil quilômetros de distância, em Viana, no Espírito Santo.

Estava em meio a milhares de crianças e adolescentes brasileiros na fila de adoção, à espera de uma chance que parecia não chegar nunca.

Camili tinha 12 anos. Viu os irmãos mais novos serem adotados enquanto ela continuava esperando.

"Quando eu encontrei a imagem dela, a empatia foi imediata. A reação do meu marido foi a mesma", conta Eliene.

A foto e o vídeo da menina, postados cerca de quatro meses antes, apareciam em uma página de internet do Tribunal de Justiça do Espírito Santo e no canal do Tribunal no YouTube.

"Eu vi e comecei a sonhar. Só queria saber o mais rápido possível onde ela estava", recorda Eliene.

Menos de dois meses depois, ela e o marido foram buscá-la.

A adoção de Camili foi possível graças à aposta das Varas da Infância e Adolescência no Brasil em usar redes sociais e outras plataformas online para dar cara e "voz" a crianças e adolescentes que estavam fora do radar da maioria dos possíveis pais e mães no país.

Aproximadamente 90% dos que estão no Cadastro Nacional de Adoção (CNA) em busca de um filho se mostram abertos, apenas, a crianças com menos de oito anos. Cerca de 64% não querem adotar irmãos e um percentual parecido só está interessado em levar a criança para casa se ela for saudável. Esse não era o perfil de Camili e não é o de mais da metade das crianças que estão hoje no Cadastro - as que estão juntas com irmãos, têm idades entre 8 e 17 anos e vivem, normalmente, durante anos em abrigos.

Muitos acabam não sendo adotados. Alguns se beneficiam de programas de apadrinhamento - o "padrinho" pode ser apenas alguém para conversar e passear ou que dá apoio financeiro, para custear cursos e tratamentos.

"O programa que estamos desenvolvendo é voltado para as crianças e adolescentes que estão no cadastro, todavia, sem pretendentes. Elas são de difícil colocação em uma família adotiva e suas informações não eram sequer acessadas (por homens e mulheres que estão inseridos como potenciais adotantes no cadastro)", diz a juíza Helia Viegas, secretária executiva da Comissão Estadual Judiciária de Adoção de Pernambuco (Ceja-PE), pioneira em usar ferramentas online para unir pais e filhos nesses casos.

"Se eu não colocá-los nessa busca ativa, eles vão mofar nos abrigos, vão ficar esperando. Essa é a realidade."

Por meio do Projeto Família, de autoria da psicóloga Maria Tereza Vieira de Figueiredo, que fazia parte da equipe técnica da Ceja-PE e é mãe de cinco filhos, três deles adotivos, a Comissão estadual compartilha fotos e os anseios dos que aceitam participar da campanha, com autorização judicial para isso.

O conteúdo produzido fica, por enquanto, em sua página no Facebook (https://www.facebook.com/cejapernambuco/).

Se conseguir aparato técnico, o que tenta viabilizar por meio de parcerias, por falta de recursos, o plano é produzir vídeos e usar o Instagram para reforçar a divulgação.

"Não estamos, com isso, colocando essas crianças e adolescentes na prateleira, como se fossem mercadorias, nem dando visibilidade a eles de forma constrangedora. O que estamos fazendo é tentando ampliar consideravelmente as chances de eles terem uma família", diz a juíza.

"Porque uma coisa é ter os dados frios. Outra é conhecer mais sobre eles. E aí, um mundo se transforma".

Na prática, a ideia é tirar as crianças e jovens nos abrigos do anonimato e permitir que seus nomes, depoimentos, além de pequenos trechos de suas histórias de vida possam ser acessados, visualizados e curtidos por milhares de pessoas, aumentando suas chances de conseguir um lar.

'O sorriso mais lindo'

A página do Ceja-PE foi fundamental para ajudar na adoção de Ana Beatriz, ou Bia, no Estado de Pernambuco. Colocada para adoção no CNA em fevereiro de 2015, ela teve sua foto e informações publicadas em janeiro de 2017 - e vistas por quase 40 mil pessoas. Eram posts em que aparecia sorridente usando vestido, e que informavam que ela tinha 7 anos, "nasceu saudável, porém, aos 3, sofreu violência doméstica causando sequelas motoras cognitivas".

"A pequena é guerreira e, dia a dia, vem superando suas dificuldades com muita força de vontade e auxílio de equipe especializada", dizia o primeiro banner em que apareceu e continuava: "Atualmente, ela consegue se manter em pé e caminhar (com auxílio mínimo), se comunica com poucas falas, diz seu nome, pede comida e água, também gesticula e come sozinha. Adora mandar beijos e abraçar".

O pedido de adoção veio 16 dias dapós a postagem, feito por Tatiane Almeida, enfermeira que enxergou na foto da menina "o sorriso mais lindo".

O projeto de busca ativa de famílias para quem, como ela, enfrentava mais dificuldade de adoção, teve início em 2008 no Estado, mas, na época, se limitava a disponibilizar fotos 3x4 em grupos de apoio à adoção e organismos internacionais relacionados.

'Pode parecer pouco, mas não é'

A nova roupagem, com a divulgação de imagens online, de forma aberta, foi autorizada por unanimidade em sessão do Conselho de Magistratura do Tribunal de Justiça de Pernambuco em agosto de 2016.

Desde novembro do mesmo ano, 48 crianças e adolescentes foram apresentadas no Facebook, com imagens. O número de crianças disponíveis para adoção, mas sem pretendentes, entretanto, é de cerca de 100. Nem todos participam do projeto, por acharem que se sentiriam constrangidos com suas imagens expostas na rede social ou por apresentarem deficiências físicas mais graves.

Vinte adoções foram concretizadas até o momento e 14 adolescentes e crianças estão em processo de aproximação com pretendentes.

"Pode parecer pouco, mas não é. Em todas essas adoções os pretendentes estavam no cadastro, mas o perfil de filho que buscavam era outro", diz Helia Viegas. "Na hora em que viram a criança ou o jovem com esse outro perfil eles se afeiçoaram, foram à vara da infância e mudaram essa busca".

No Espírito Santo, a campanha "Esperando por você" - que publicou a foto e o vídeo de Camili - foi lançada em 12 de maio de 2017 "para estimular a adoção tardia e apresentar seres humanos cheios de carinho, habilidades e sonhos", explicam a Ceja-ES e a assessoria de comunicação do Tribunal, responsável por formatar a iniciativa. O conteúdo está no site http://www.tjes.jus.br/esperandoporvoce/ e é divulgado via YouTube e Facebook.

No período de um ano, 30 crianças e adolescentes participaram da ação. Desse total, dois já foram adotados em definitivo e seis estão em estágio de convivência com postulantes à adoção.

"O foco não era aumentar o número de adoções, mas mudar a forma de olhar para esses meninos e meninas, tirá-los do abrigo, apresentar em um novo contexto. Só o interesse despertado já promoveu uma grande esperança", disse o Tribunal à BBC Brasil.

Procura

Entre maio e outubro de 2017, segundo o levantamento mais recente publicado pelo Tribunal, os vídeos tiveram mais de 100 mil visualizações nas redes sociais. Até aquele momento, a Ceja também havia recebido mais de 1 mil e-mails e aproximadamente 500 ligações de pretendentes à adoção de 20 Estados do Brasil e também de brasileiros residentes na Espanha, Alemanha, Estados Unidos, Itália, Noruega, Tailândia, Inglaterra, Cingapura, França e Japão.

Caio, de 13 anos, aparece no site como "em processo de adoção". Em um vídeo em que colore desenhos de carros, faz brigadeiro e diz "I love you", para citar que inglês é a matéria preferida na escola, ele é descrito como "garoto sorriso" e "muito afetuoso".

Ele pergunta: "Você quer ser minha família?". No YouTube, sua história teve 31,5 mil visualizações.

Hoje, existem 933 pretendentes habilitados no Espírito Santo para adoção. O número é sete vezes maior que o de crianças e adolescentes disponíveis para adoção, estimado em 130 até a semana passada.

Das mais de 40 mil pessoas habilitadas para adotar no país, cerca de 39 mil pretendem adotar crianças com menos de 8 anos, observa o juiz assessor da Corregedoria Geral da Justiça de São Paulo, Iberê Dias.

"De alguns poucos anos para cá", segundo ele, "é que se começou a falar sobre esse tema e sobre a possibilidade de adoção de crianças com mais idade". "São pessoas que costumam ficar absolutamente esquecidas pela sociedade, como se não existissem".

No Estado, é a campanha "Adote um boa noite", lançada em 12 de outubro de 2017, que tenta mudar essa realidade.

Por meio dela, fotos e depoimentos escritos estão no site www.adoteumboanoite.com.br. A ação é divulgada na página do Tribunal no Facebook.

Até agora apenas duas comarcas, da cidade de São Paulo, aderiram ao projeto, Santo Amaro e Tatuapé. Dos 32 acolhidos em Santo Amaro que entraram no site até 30 de abril de 2018, 8 já estão em estágio de convivência - que precede a adoção - e 13 fazem os primeiros contatos com pretendentes selecionados. Até o final de abril, surgiram 357 interessados.

O juiz aponta que apesar das dificuldades, há uma "clara evolução da visão social da adoção", uma vez que "a barreira etária, que até o começo dos anos 2000 estava em cerca de 3 anos de idade, hoje, está em 8 anos". "É uma questão de conscientização social e a idéia desse projeto é continuar pondo o tema em debate e promovendo essa mudança".

Dias avalia que "não é mais possível pensar em meios de dar visibilidade às crianças e colocá-las como sujeitos de direito efetivamente com os métodos usados há 10, 15 anos". "A internet e as mídias sociais mudaram consideravelmente a concepção sobre isso tudo. E podem ser fortes aliadas para a evolução social, desde que bem utilizadas", analisa.

Apenas as crianças e adolescentes que, "depois de estudos feitos com psicólogos e assistentes sociais, mostram-se aptos a tomar a participação na campanha como positiva, independentemente de serem adotados, ou não", participam da ação.

Em outros Estados, iniciativas semelhantes já estão no gatilho, como é o caso do Distrito Federal, onde a Vara da Infância e Juventude prevê a divulgação de fotos e vídeos nas redes sociais.

Busca ativa

Desde a década de 90, antes de a mobilização começar nos Tribunais, grupos de apoio à adoção no Brasil têm apostado em estratégias de "busca ativa", ou seja, em meios para tentar encontrar pais e mães abertos a adotar crianças e jovens "com um perfil mais amplo", explica a presidente da Associação Nacional de Grupos de Apoio à Adoção (Angaad), Sara Vargas.

Os métodos e os canais usados, porém, eram outros.

Nesses primórdios, dados como iniciais dos nomes, sexo e situação de saúde eram enviados para esses pretendentes, divulgados por grupos em seus sites - e, já nos anos 2000, também publicados em um grupo específico no Orkut - rede social hoje desativada.

"No começo havia uma grande resistência do Poder Judiciário, que não compreendia a necessidade dessa busca ativa e que muitas vezes via até essas ações com maus olhos. Acreditavam que o Cadastro Nacional de Adoção era o suficiente", diz Sara Vargas.

O Cadastro está sendo reformulado e, nessa nova fase terá fotos, vídeos e desenhos das crianças e adolescentes, disponíveis, porém, apenas para "pretendentes autorizados", dentro do próprio CNA.

"Foi uma grande luta para que se compreendesse o quanto essa questão da visibilidade era importante", acrescenta Sara.

"Porque a gente não se apaixona por quem a gente não conhece, a gente não se apaixona por dados estatísticos, nem por iniciais de nomes. Mas a partir do momento em que a gente conhece um pouquinho mais deles, parte o interesse por gostar do mesmo estilo de música, torcer pelo mesmo time de futebol, pelo sonho que eles têm".

"Então ver essa movimentação toda agora nos deixa felizes".

Um levantamento da Associação, com base em dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), mostra que entre 2012 e 2017, a preferência por crianças de 0 a 3 anos caiu, em média, 9,3% nesse período. Já a preferência pela faixa etária de 4 a 9 anos aumentou 73%.

Os índices de preferência por adolescentes, entretanto ainda são baixos. Sara acredita que isso deve, em parte, à crença generalizada de que "quanto menor a criança, maior a chance de moldar ela do meu jeito".

Para Sara, entretanto, "não é um preconceito, achar que (os adolescentes) carregam mais marcas do que as crianças pequenas. Quanto maior tempo em que ficam expostos a vulnerabilidades, mais traumas elas poderão carregar".

"Mas apesar disso, os adotantes tem se aberto mais para adotá-las."

Foi o caso do motorista Edmundo Francisco Negri, de 37 anos, e o cabeleireiro Leandro Pedro Negri, de 34, estão em processo de adoção de José, de 14 anos.

Eles foram habilitados em janeiro e o perfil que buscavam era de criança de 2 a 10 anos, de São Paulo. Até se depararem com uma foto de José, em um grupo de adoção que havia compartilhado um post do Ceja de Pernambuco.

"Eu sou José, sou um menino muito prestativo. Tenho sonho de ser motorista e piloto de avião", era o que estava escrito junto à imagem. "Não tem como explicar", conta Edmundo. "Chamei o Leandro e falei: 'sinto que é esse'. A foto torna a coisa mais próxima".

José estava em Caruaru, a mais de 2 mil km de Itapira, em São Paulo, onde moram.

O adolescente estava na casa de acolhimento havia quase um ano. Antes disso, parou os estudos, tomava conta de irmãos e trabalhava como cobrador em uma van de transporte de passageiros. Acabou destituído da família pela Justiça.

"Nosso único receio era de ele não querer nos conhecer por sermos dois pais, mas ele falou para a assistente social que isso não importava. Que o importante era que fosse uma família que desse amor a ele, o que ele não tinha".

O primeiro encontro entre eles, em Caruaru, ocorreu poucos dias depois. Uma postagem no Facebook do casal, em 16 de maio, mostra os três em uma foto e, junto à ela, escrito: "Chegamos em nossa casa! Bem vindo à nossa vida filho amado!".

O processo de adoção teve início em abril e está agora no estágio de "convivência", que deve durar 90 dias. O casal espera que a justiça defira a adoção, após o prazo de guarda provisória.

'Tenho uma mãe, uma casa e um pai?'

Eliene e o marido também creem que a guarda de Camili se transformará em definitiva. Ela vive com o casal há seis meses.

"Agora eu tenho uma mãe, uma casa e um pai?", foi o que quis saber no dia 8 de novembro de 2017, quando o juiz contou que passaria a morar com eles.

Desde antes de casar, "o sonho" de ambos era ter um filho biológico e outro por adoção.

Eliene chegou a engravidar, mas, aos sete meses de gestação, soube que o coração da filha parou de bater. Seis meses mais tarde, precisou retirar o útero.

Em 14 de setembro do ano passado, assistindo a uma reportagem sobre "crianças mais velhas que as pessoas não têm interesse em adotar", ela viu o link que a direcionaria para a página onde achou as imagens de Camili.

"Só queríamos ser pais, independente da condição da criança", diz ela, que tem planos de adotar outra criança em 2019, ou gêmeos.

Em casa, ela e Camili fazem tranças nos cabelos e trabalhos da escola, juntas.

Um deles, no Dia Internacional da Mulher, pretendia mostrar a importância de ser mulher e o empoderamento feminino.

"Mãe, eu tenho que levar uma foto de você grávida", avisou Camili. Eliene explicou que não havia fotos dela grávida da menina, que se apressou na réplica: 'Então eu nasci do seu coração? Vamos tirar uma foto do seu peito?'".

"Camili entende as coisas. Sabe que é adotada e que o amor é o mesmo. Eu escolhi ser mãe dela e ela me escolheu. A foto que levamos para a escola foi uma foto de nós duas, juntas."