O (novo) sexo das minas

Pazes com o corpo e um jeito feminino de transar marcam uma transformação na sexualidade de jovens brasileiras

Natacha Cortêz Da Universa

Há algo de revolucionário e fresco na forma como jovens mulheres vivem o sexo no Brasil hoje. Estamos falando de uma geração de garotas que não transa apenas para corresponder a expectativas românticas ou reprodutivas e que começa a mudar o que se pensou até agora sobre mulher e sexo.

Protagonistas da própria sexualidade, elas conhecem seus corpos e sabem como gozar, em vez de primordialmente saber o que fazer para que o outro goze. Experimentam uma jornada de descobertas que não precisa se adaptar a rótulos de orientação sexual ou modelos de relacionamento.

Aqui, ouvimos estudiosas e conversamos com as personagens ativas dessa mudança que envolve liberdade, pazes com o próprio corpo, descriminalização do aborto e até um jeito "feminino" de transar. 

"A importância dessa revolução é tirar o sexo da mão dos homens"

Quem de fato são essas mulheres?

Não dá para dizer que, quando falamos em liberdade sexual, falamos em nome de todas as jovens brasileiras. Essas que hoje experimentam um sexo mais livre e distante das antigas opressões femininas "estão no início da vida adulta, passaram pela universidade, têm acesso à internet e algum contato com o crescente debate feminista que ganha força no mundo", descreve a antropóloga Regina Facchini, do Núcleo de Estudos de Gênero Pagu da Unicamp. 

Regina estuda mulheres e sexualidade há 24 anos e não tem dúvidas de que estamos diante de uma transformação de paradigmas focada em relações afetivo sexuais mais igualitárias. "Um dos sinais disso é que passamos a discutir consentimento. Essa é uma pauta do feminismo contemporâneo que toca diretamente o sexo das mulheres."

Em outras palavras, a vontade e a decisão da mulher ganha peso. Essas garotas tentam chegar num cenário no qual #NãoéNão e em que o sexo seja uma escolha de dois. 

Como chegamos aqui?

  • Uma herança da Revolução

    Falar em liberdade sexual para as mulheres neste momento só é possível por uma construção social e política que vem desde a Revolução Sexual -- datada de 1960, a partir dos Estados Unidos -- e vai além do que as jovens de hoje estão experimentando na cama. "Há mudanças sociais e políticas que interferem no sexo e mudanças no sexo que interferem no todo", diz Regina Facchini. É como se o que observamos fosse uma herança da transgressão de gerações anteriores. É assim: se você transa melhor agora, consegue dizer não e tem uma relação de paz com o próprio corpo, talvez seja porque sua mãe e avó tenham aberto caminhos pra você.

  • A revolução da Revolução

    "A Revolução Sexual é um pontapé para a tal liberdade que as jovens usufruem hoje. O que há, primeiramente, é uma continuidade dos ideais libertários daquela época", explica Regina. Essa Revolução tem muito a ver com pílula anticoncepcional, mas também com a entrada das mulheres no mercado de trabalho no Pós-guerra. Tem a ver com a sexologia, que começa a investigar o prazer sexual, e o movimento feminista, que se coloca apontando a regulação da sexualidade das mulheres como uma questão a ser combatida.

  • A liberdade da geração Leila Diniz

    Pensando em Brasil, é importante lembrarmos da geração Leila Diniz, a de mulheres próximas ao feminismo que já falavam de sexualidade, amor livre e direito ao prazer lá no início dos anos 1970. Considerada à frente de seu tempo, Leila quebrou tabus de uma época em que a repressão dominava o país. A atriz escandalizou ao exibir a sua gravidez de biquíni na praia de Ipanema e chocou quando em uma entrevista disse: "Você pode amar uma pessoa e ir para cama com outra. Já aconteceu comigo". Leila se tornou símbolo de liberdade feminina.

Mariana Pekin/UOL

Realmente me sinto mais confortável no sexo agora que deixei de lado algumas inseguranças -- peito pequeno é uma delas. Na verdade, não é que eu as deixei, mas tento as deixar sempre que posso, sempre que consigo. É como uma batalha interna.

Tamires, 24 anos, publicitária e MC

Mariana Pekin/UOL Mariana Pekin/UOL

Isabella, 24 anos, jornalista

"Até as palavras que falam do corpo feminino são consideradas pejorativas. Eu tento falar bastante buceta, porque ninguém tem que se chocar com uma palavra que me descreve."

Mariana Pekin/UOL Mariana Pekin/UOL

Paula, 25 anos, RP

"Ou você é uma santa que não transa ou é 'transona' e, por isso, vadia. Não existe um meio termo. A sociedade não é razoável quando falamos de mulheres e sexo."

Adriano Vizoni/Folhapress Adriano Vizoni/Folhapress

A Marcha das Vadias e a questão do assédio

Há sete anos, a Marcha das Vadias inaugurou um debate caro, tanto ao movimento feminista quanto à liberdade sexual das mulheres: violência sexual para além das relações conjugais. Desde 2011, quando os protestos começam em Toronto (Canadá) e no mesmo ano se alastram pelo mundo, o limite do assédio, estupro e consentimento passam a ser assunto urgente entre mulheres. "Antes, as feministas organizadas discutiam violência dentro das relações de afeto entre homem e mulher. A partir da Marcha das Vadias, botamos luz em um corpo feminino que sofre violência sexual no ambiente público. Esse é o início da conversa sobre um sexo que só é bom quando também é desejado pela mulher", esclarece a antropóloga Regina Facchini. 

*Na foto: garota na avenida Paulista durante a 3ª Marcha das Vadias de São Paulo.

Mariana Pekin/UOL Mariana Pekin/UOL

"Estamos vivendo uma nova revolução sexual e ela é das mulheres"

Carmita Abdo é uma das principais pesquisadoras da vida sexual dos brasileiros. Coordenadora do Programa de Estudos em Sexualidade (ProSex) do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), a psiquiatra e sexóloga aposta em uma segunda revolução sexual que atinge o mundo ocidental: protagonizada por mulheres jovens e que traz a liberdade como assinatura.

Nos últimos 50 anos, praticamente tudo mudou para as mulheres. A idade da primeira transa, a questão da exclusividade que se abalou, a liberdade de escolher quando e com quem se ter sexo.

Quais são as características desse momento?
Ele é inédito. Especialmente para as mulheres jovens. Elas são as protagonistas da mudança. A diversidade e a possibilidade de experimentação são outras características que gosto de destacar. Penso que a autorização social para experimentar favorece as mulheres, porque dá oportunidade para que obtenham maior autoconhecimento e autonomia de seus corpos -- coisa que não tinham ou reivindicavam antes. Depois, há a separação de sexo de afeto; sexo de vínculo; sexo de intenção de construção de núcleo familiar. A situação vista assim, de forma tão delineada como agora, nunca ocorreu. 

Não vimos esse tipo de comportamento nas gerações anteriores?
Antes, uma ou outra mulher podia viver essa experiência de forma tranquila. Ou eram casos pontuais ou eram casos de grupos que gritavam por liberdade. Hoje, a situação atinge quase toda mulher ocidental, ainda mais se considerarmos as jovens. É mesmo uma nova proposta de comportamento social. E ela vem acontecendo de forma mais generalizada e contundente a partir da virada de século. 

E a internet, mudou alguma coisa na relação da mulher com o sexo?
Sim, há uma transformação que foi ocorrendo desde o surgimento da internet, com as salas de bate-papo e vídeos compartilhados na rede. Tudo isso começou a favorecer que, sem sair da própria casa, as pessoas pudessem ganhar um espaço sexual maior. A sexualidade passou a ser compartilhada. Isso favoreceu as mulheres porque abriu para elas novas possibilidades. Os homens sempre tiveram mais liberdades nesse tema. A sexualidade deles não era limitada à vida doméstica e nem a contratos de fidelidade.

Carine Wallauer/UOL

Eu tinha muita pira de luz acesa, por ficar completamente nua. Isso mudou quando eu aceitei meu corpo e então tudo foi melhor em relação a sexo, em relação a sentir prazer, em relação a dar prazer pras outras pessoas.

Bia, 20 anos, modelo

Um jeito "feminino" de transar?

Ainda nos anos 90, o fortalecimento da cultura GLS diminuiu o abismo entre o universo homossexual e o heterossexual. Especialmente nas gerações mais jovens, que passam a frequentar a noite gay. Isso gerou mudanças nas pessoas, que passam a aprender que o modo de viver a sexualidade e o de fazer sexo podem ser flexibilizados.

Mas flexibilizado como? "No jeito que se faz sexo, no ritmo que se faz, com quem se faz e até onde se faz", conta Regina Facchini, que não dispensa a presença do feminismo nessa desconstrução. "Os ideais feministas também estão nesse novo desenho de sexo, difundindo e debatendo masculinidades", completa. 

É como se o que entendemos até então sobre fazer sexo fosse baseado nos desejos dos homens, por sua vez influenciados pelo consumo de pornografia. Assim, os corpos, as fantasias, as posições, o ritmo e até o som do sexo que os homens reproduzem também foram reproduzidos pelas mulheres. 

Essa nova geração de garotas quebra tudo isso, exigindo uma transa que não tem na penetração, por exemplo, seu grande objetivo. A assessora de imprensa Isabella, de 24 anos, uma das mulheres ouvidas nesta reportagem, diz que sua experiência com homens bissexuais a ensinou que talvez haja sim um jeito "feminino" de fazer sexo.

Homens bissexuais não estão preocupados em serem viris ou brochar; penetração também não é o centro do sexo deles. Estão preocupados com uma troca de prazeres, com uma harmonia de corpos. Enaltecer masculinidades não me parece algo que os move na transa.

A revolta ou revolução a que estamos assistindo marcam uma nova etapa da emancipação feminina, não restam dúvidas: a heterossexualidade terá que ser reinventada. Assim como reinventar-se, será também o objetivo de uma sociedade arcaica. E isso, para que essa que vivemos hoje, não seja mais uma simples revolta. Mas uma verdadeira revolução.

Mary Del Priore

Mary Del Priore, historiadora, autora de "Histórias Íntimas. Sexualidade e Erotismo na História do Brasil" (ed. Planeta, 2011)

O que é liberdade sexual pra você?

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Tamires, 24 anos, publicitária e MC

"É eu saber que minhas vontades importam, sim. E é também eu me sentir totalmente confortável com elas, sem me intimidar em botá-las em prática."

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Ingrid, 24 anos, fotógrafa

"Liberdade sexual é eu permitir me conhecer. Depois, tentar fazer o que realmente quero, o que de fato me excita, independentemente do que o outro vai pensar."

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Paula, 25 anos, relações públicas

"É eu poder falar não, mas também não ser cobrada pelo que fiz antes. Se num passado quis transar com todo mundo e hoje não quero, isso não pode ser problema."

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Isabella, 24 anos, jornalista

"Liberdade sexual pra mim é poder falar não; é eu saber que sexo é parte do ser humano, é parte da minha vida e não é porque eu sou mulher que vou deixar de viver isso."

Carine Wallauer/UOL Carine Wallauer/UOL

Bia, 20 anos, modelo

"Não é necessariamente eu dar para mil caras; não encaro liberdade sexual assim. É eu procurar fazer o que quero -- seja fazer sexo ou não."

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Renata, 27 anos, produtora

"É quando você entende que existe amor próprio. A gente vive num mundo onde o sexo acaba quando o cara goza; comigo não, comigo acaba quando nós gozamos."

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Ana Clara, 25 anos, fotógrafa

"Liberdade sexual para mim é eu me sentir livre para me agradar, antes de me preocupar em agradar outra pessoa."

Liberdade sexual também passa pela descriminalização do aborto?

"Assim como a pílula anticoncepcional nos anos 1960 foi importante para a liberdade sexual e reprodutiva das mulheres da época, a descriminalização do aborto hoje também é", defende Regina Facchini. 

Veja: para a legislação brasileira, só têm direito ao procedimento mulheres que engravidaram por causa de estupro, ou se existe algum risco de vida à mãe ou se ficar comprovado que o feto é anencéfalo - essa, uma decisão de 2012 do Supremo Tribunal Federal. 

A Pesquisa Nacional de Aborto (PNA), realizada pela antropóloga Debora Diniz e pelo sociólogo Marcelo Medeiros, encontrou que meio milhão de brasileiras abortou ilegalmente em 2015. Muitas dessas mulheres, aliás, enfrentaram condições insalubres - outras morreram durante o procedimento - e todas, sem exceção, correram o risco de serem punidas de um a três anos de cadeia, como prevê o código penal.

Está claro: nem a interdição legal (ou a proibição religiosa) impede brasileiras de interromper suas gestações quando isso é necessário. Mas a maneira como cada uma delas resolve a questão pode ser muito diferente. Depende da classe social e do poder econômico de cada mulher. As políticas de criminalização do aborto acabam criando um recorte cruel, e fazem com que as pobres se submetam a abortos inseguros. 

Como as brasileiras podem ser livres sexualmente se seus direitos sexuais não são - bem - seus? "O aborto não é um fenômeno que começa com a possibilidade do uso da pílula, nem com a liberdade sexual da Revolução de 1960 ou o divórcio. Ele também não é um fenômeno datado dos últimos 50 anos da história das mulheres, mas acompanha a vida reprodutiva delas desde que mulheres são mulheres. Nos países onde ele é crime, há um controle claro dos direitos delas pelo uso da lei criminal e pela moral religiosa", argumenta Debora Diniz. 

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Algumas abortam, outras morrem. Manter o aborto criminalizado é uma forma - antiga, diga-se de passagem - de controlar a sexualidade das mulheres.

Renata, 27 anos, produtora cultural

Feminismo, políticas públicas e o impacto dessa mistura no sexo das minas

Pode parecer estranho afirmar que políticas públicas e alterações na legislação afetam a forma como uma mulher jovem lida com a sua sexualidade. Mas sim, afetam. Aliás, a luta feminista e suas tentativas de enveredar debates, colocando luz em assuntos nunca antes explorados, como a cultura do estupro, também. 

Nos dias de hoje não temos mais a Secretaria de Políticas para Mulheres com status de ministério. Mas ela existiu por mais de uma década - de janeiro de 2003 a outubro 2015. E durante esse tempo, houve uma mudança fundamental na Lei de Estupro, mais precisamente em 2009. "Ao dizer que estupro muda de conjunção carnal com penetração de pênis em vagina para um significado mais amplo ["constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso"] estamos fazendo as pessoas pensarem no limite do outro", defende a antropóloga Regina Facchini. 

Regina ainda destaca a criação da Lei Maria da Penha, em 2006: "A Lei é um marco para as brasileiras. Mudou a forma como todos nós passamos a entender as relações conjugais." 

"É uma série de oportunidades que estão disponíveis para essa nova geração de mulheres. Oportunidade de ter tido política pública e mudança legislativa, de ter acesso facilitado informação e à universidade. Outra coisa: na década de 90 o feminismo estava organizado a partir de ONGs, muito preocupadas em fazer incidência política e em lutar por políticas públicas a favor das mulheres. Estamos colhemos os resultados do ativismo organizado dessas mulheres", conclui.

Mariana Pekin Mariana Pekin

Tenho medo que a gente confunda liberdade sexual com 'ser um ser sexual'. Por isso, para mim, a liberdade sexual da mulher envolve também ela não ser um ser sexual, se assim ela quiser. Tem mulher que não dá tanta importância pro prazer sexual. Isso não deveria ser visto como aberração.

Paula, 25 anos, relações públicas

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