Preta, travesti e poderosa

Linn da Quebrada questiona Deus, acha que o sistema quer vê-la morta e luta para ser dona do próprio corpo

Denise de Almeida e Ísis Carolina Da Universa
Gabo Morales/UOL

Linn da Quebrada já anuncia na sua música: tem corpo de mulher; tem jeito, bunda, peito e o pau de mulher.

A cantora, que leva a periferia até no nome, mistura pop, funk e outros estilos em composições provocativas. Ela aprendeu desde cedo que sua opinião e seu corpo poderiam incomodar. "Estou tentando entender: o que é que tem em mim que tanto incomoda você?", canta ela, em "Submissa do 7º Dia".

O trocadilho religioso não é à toa. Criada como Testemunha de Jeová, Linn foi expulsa da igreja ao assumir sua transexualidade, na adolescência. Antes, já havia sido abandonada pelo pai. Foi educada pela tia, enquanto a mãe trabalhava como empregada doméstica.

Aos 27 anos e estrela do documentário “Bixa Travesty", premiado no Festival de Berlim deste ano, Linn reproduz em suas letras os questionamentos que faz na vida. Discute o que é o feminino, ataca a sociedade machista e declara guerra a um deus que condena vidas como a dela.

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Ela sempre desejou ter uma vida tão promissora. Desobedeceu seu pai, sua mãe, o Estado, a professora.

Linn da Quebrada, na canção "A Lenda"

O que é ser mulher?

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Até onde você vai?

Negra, trans e da periferia, Linn sabe bem o que é cruzar com o preconceito diariamente.

"Ser travesti, assim como ser mulher, é um conjunto de dificuldades", afirma. Ela conta que muitas vezes a batalha começa ainda na frente do espelho. Depois, passa por humilhações dentro de casa, na escola, no mercado de trabalho e na rua.

"É como se houvesse um jogo pré-estabelecido, sem que a gente soubesse, e daí nos dessem as mínimas condições de sobrevivência. Então jogam a gente nesse jogo, falando assim: 'Vamos ver até onde você vai'".

Linn não é de desistir: encarou quem lhe apontava o dedo e escolheu o funk para protestar. "Por não encontrar nas novelas, nas revistas, na música nada que eu me enxergasse, que falasse diretamente comigo, tive a necessidade de eu mesma fazer".

Decidiu, então, que não viveria nos bastidores: quis ser artista e lutar por igualdade no palco. "Quais são as travestis que admiramos? A gente precisa ocupar esses espaços. Não é questão de ego, apenas. É para que saibam que nós existimos, que é possível ser travesti e ser feliz".

Filipa Aurelio/Divulgação Filipa Aurelio/Divulgação

Então olha só, doutor, saca só que genial. Sabe a minha identidade? Nada a ver com xota e pau!

Linn da Quebrada, na canção "Pirigoza"

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Não sou fetiche, não me limite

O Brasil ocupa dois rankings quando se fala em transgêneros: somos o país que mais mata essa população e, ao mesmo tempo, o que mais consome pornografia com travestis. Para Linn, isso demonstra que os transexuais costumam ser reduzidos a mero fetiche.

"Nós sempre tivemos ocupando esses espaços de fetichização, espetacularização, demonização. Nunca nos foi permitido um espaço de humanização. É isso que quero, ter os mesmos direitos. Mas se há tanta busca por travestis, o que é que eles estão tentando matar? Talvez seja tentar matar no outro corpo algo que está em si", analisa.

A artista paulista reclama ainda da mídia comumente tratar as artistas trans como um único assunto.

"A mídia cisma e continua a nos tratar como um tema, que vai ser esgotado. Não somos um tema. E nós não estamos todas no mesmo lugar. Nossas produções são muito plurais. O meu trabalho, por mais que fale sobre a população trans, tem várias outras camadas que não são consideradas, por causa de um olhar que reduz e limita".

Um sistema que produz fobias

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Esse sistema não quer que eu esteja viva

Em maio de 2014, Linn descobriu um câncer e teve que enfrentar quimioterapia, injeções, efeitos colaterais e a incerteza de que sobreviveria. Ela recebeu o diagnóstico da cura em 2016, mas ainda tenta fugir do que ela classifica como "estratégia de genocídio".

Linn ouviu de um endocrinologista que ele não poderia atendê-la, porque não tinha experiência com travestis. "Se é tão difícil para que eu encontre médicos que entendam as minhas necessidades fisiológicas, que entendam quais são os processos que eu passo, enquanto travesti, então é porque eles estão fazendo tudo muito bem feito para que ou eu morra aos poucos ou eu desista -- e essa é outra forma de matar".

A cantora reclama que a população trans nunca é foco de investigação e pesquisa na indústria médica. "Esse sistema não quer que eu esteja viva. Parece que não interessa ao sistema médico, enquanto um todo, que eu esteja viva. É uma das estratégias dissimuladas e explícitas de genocídio".

Manipulando meu corpo

A angústia de não se reconhecer no seu próprio corpo é um sinal comum às pessoas trans, muito pelo que a sociedade impõe como o adequado a cada gênero.

"Por muito tempo me foi ensinado buscar um corpo que estava distante de mim. Busquei muito alcançar este corpo que era uma projeção. E, quanto mais próximo eu chegava, ele se desfazia nas minhas mãos, como um holograma", relata Linn.

Para tentar chegar a este ideal de corpo, a artista conta que recorreu aos hormônios, algo muitas vezes apontado como tabu.

"Aparentemente, a modulação hormonal vai entender a produção de hormônios e os efeitos no seu corpo, agindo caso a caso. Pode ser utilizada por mulheres atletas, por pessoas obesas. Mas, então, pergunto: essas pessoas que estão fazendo um tratamento hormonal também são trans? Elas estão ali, de alguma forma, intervindo sobre os seus corpos, seus hormônios e sua estética", questiona.

A farmácia já manipula os nossos corpos. Agora com o tratamento hormonal eu apenas estou me tornando protagonista disso

Linn da Quebrada

"Nosso prazer continua limitado a dar prazer para alguém"

Crio um novo Deus

Esqueça o amor, a docilidade e o divino. Linn da Quebrada contesta todos os padrões e quer subverter o sistema.

"Nós precisamos, sim, sentir raiva. O amor também é um desses mecanismos do Estado e do sistema. Então, eu nego o amor. O amor é esse território intocado. Deus é amor. Então, se eu declaro uma guerra ao amor, talvez seja porque seja necessário declarar uma guerra inclusive a esse Deus, ao Todo Poderoso", opina.

Reclamando de não se sentir representada por "Ele", Linn propõe uma nova "santidade".

"Quem é esse 'Ele', a quem devotamos tanto amor e que o mesmo amor é negado? Por isso, eu mato Deus e invento em mim um novo Deus, formado por diversos 'eus': marginalizados, travestis, pretos, pobres, mulheres. E o meu Deus passa a ser formado por todos esses eus, que antes foram condenados".

Nube Abe/Divulgação Nube Abe/Divulgação
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Bixa Travesty

O documentário em que a rotina e os questionamentos de Linn são pano de fundo para retratar o universo LGBT acaba de ser premiado no Festival de Berlim.

"Bixa Travesty", que tem a participação de Linn também no roteiro, levou o troféu Teddy do evento.

"O filme mostra um recorte da minha experiência e da busca e investigação sobre a minha identidade. Sobre o que é ser uma bicha travesti, quais são as minhas relações e como eu experiencio o amor e a família".

A cantora explica a importância de se fazer este tipo de produção: "Acho que é trazer à luz personagens que até então não tiveram o direito de serem protagonistas de suas próprias vidas".

Eu quero poder construir feminilidades viris, feminilidades corajosas, tenebrosas, que assustem, que deem medo, que me empoderem. Um feminino que me dê forças.

Linn da Quebrada

Veja a íntegra da entrevista

Linn fala sobre representatividade trans, machismo, Deus e muito mais. Clique e assista ao vídeo no Youtube

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