Dominação e submissão

Universa investiga o estilo de vida de quem sente prazer com espancamentos, amarrações, chicotes e coleiras

Lu Angelo Colaboração para Universa
Larissa Zaidan/Universa

Filmes e séries como "Cinquenta tons de cinza" e "Billions" são recheados de cenas com correntes, salto alto e o famoso chicotinho durante as práticas sexuais. Mas como é esse universo na vida real? Resolvi sair do sofá, desligar a Netflix e ver o que acontece de verdade em um clube de BDSM -- Bondage, Disciplina, Dominação, Submissão, Sadismo e Masoquismo. O que vestir para essa ocasião? Bom, chicote, não tenho. Então optei por um look preto de renda, batom vermelho e salto para entrar no clima. 

Escolhi uma sexta-feira, noite de maior movimento, para ir ao Dominatrix, casa na região central de São Paulo. Na entrada, a hostess, a drag queen Priscilla, me recebeu. Abri uma cortina bordô para entrar no bar. O andar térreo é como qualquer outro na região da Augusta. Mesas, balcão e clientes fazendo seus pedidos. O diferente está no andar de cima, no espaço chamado de masmorra.

Logo na subida, você já se depara com um quadro com uma série de instrumentos usados para fetiche. E lá, sim, tem de tudo um pouco para os praticantes se divertirem, em uma sala decorada nas cores preto e vermelho. Até tem uma loja de acessórios, caso você queira comprar algo novo para suas brincadeiras. Nas minhas próximas cinco horas, eu descobriria se levo mais jeito para dominar ou ser dominada.

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De "baunilha" a dona de casa de dominação

A proprietária do Dominatrix é Fernanda Benini, 30 anos, de São Paulo. Ela sempre trabalhou no comércio, com bares e cafés. Mas, lidando com o público BDSM, é a primeira vez. A ideia veio de um cliente, há três anos, quando o antigo negócio de Fernanda não ia bem. Ela seguiu o conselho e pesquisou para ver se havia uma oportunidade real.

"Existia um público fiel sem muitos lugares para ir. Então, resolvi abrir a casa, tendo como sócios minha mãe e um amigo. A gente se sentiu um E.T. no próprio negócio, porque éramos três baunilhas [gíria que define quem não é adepto do BDSM]. Mas comércio é tudo igual. Se você atende bem e tem bom produto, o cliente volta", conta Fernanda.

Há um mês, o Dominatrix mudou de endereço, para uma casa na mesma rua com o dobro de metragem da anterior: agora, são 200 metros quadrados. "A pessoa aqui não procura o sexo e, sim, alguém com o mesmo fetiche. O público é bem tranquilo, um pouco mais velho."

Na minha primeira noite lá, ninguém chegou para me "xavecar". As pessoas ficavam curtindo suas práticas, cada uma no seu espaço. Uns usavam amarrações, outros jogavam parafina quente nas costas do parceiro. Alguns casais até se conheciam. Mas fiquei curiosa para saber se Fernanda, há três anos no negócio, já havia experimentado algumas práticas. "Sim!", respondeu. "Já usei chicote, já fiquei totalmente imobilizada com mordaça, venda e cordas, mas não curti. A sensação de não ter controle foi péssima. O que eu mais gostei foi a podolatria (tesão por pés). É mais tranquilo."

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O estilo de vida 24/7 no BDSM

Há quem pratique o BDSM como um estilo de vida, o chamado 24/7 (24 horas por dia, sete dias por semana), como faz o casal, que prefere não dizer os nomes reais, Lord Steel, 52, de São Paulo, e Ana Steel, 28, de Vitória.

Os dois se conheceram em chats da prática em 2014. Em menos de um ano, Ana se mudou para São Paulo para ser a submissa de Lord. "Não me encaixava nos relacionamentos comuns. Era taxado de ciumento, possessivo, controlador", conta ele. Ao ter contato com o BDSM, por meio de sites, ele se identificou. "Temos um 'lifestyle' integral, mas, no dia a dia, pagamos conta, trabalhamos, como todo mundo. É uma vida em comum", ele explica.

Mas, então, quem paga a conta? "Eu mando ela pagar", brinca Lord. O estilo de vida na prática: "Se estamos num bar, pergunto se posso tomar algum drinque, sempre uso uma coleira ou até mesmo pergunto se ele quer que eu use calça ou saia, tênis ou salto antes de sair de casa. Ele não está me batendo o tempo todo, como muitos acham. É um jogo de dominação e submissão", explica Ana.

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Cinto de castidade: é repressão?

Naquela noite, eu vi Ana Steel andando de joelhos, conduzida por seu dono em uma coleira, e comendo"ração para dogs" -- bolinhos de carne em formato de ração, servidos em comedouro de aço inox. Essa opção está no cardápio ao lado de petiscos tradicionais, como bolinho de arroz, isca de frango ou hambúrguer. Experimentei um deles e não achei ruim. Bem temperado até, mas a sensação de comer uma 'ração' foi meio estranha"

O gosto por acessórios exóticos levou o casal a criar a marca Steel, de produtos para fetichistas, há três anos. No Dominatrix, há um ponto de venda. O item mais procurado é o cinto de castidade para mulheres. Ana estava usando um e não acredita ser uma repressão.

"Ele controla meus orgasmos e isso me excita. Não significa que não tenho prazer." E completa: "Ser submissa é minha escolha. Sinto uma sensação de liberdade enorme, porque eu tenho o poder de fazer o que eu quero com o parceiro que eu amo. Não é pancadaria. Existe um amor muito grande."

E Ana faz até uma leve crítica aos casais baunilha. "Você está se doando para outra pessoa, o que é muito difícil de ver numa relação comum. Parceiros que dividem a mesma cama, mas não se doam." Ana e Lord mantêm uma relação aberta, mas somente quando os dois estão juntos.

No BDSM, existem as chamadas palavras de segurança, que são códigos para o dominadores não passarem do limite de prazer dos submissos, já que muitas vezes eles são submetidos à extrema dor. Amarelo significa "continue, mas um pouco mais leve" e Vermelho é "pare agora". Cada casal, no entanto, pode criar suas palavras de segurança. E detalhe: durante a dinâmica, estes códigos viram leis.

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História do BDSM

Os termos sadismo e masoquismo são uma espécie de homenagem a dois escritores: o filósofo francês Marquês de Sade e o jornalista austríaco Leopold von Sacher-Masoch. O primeiro, por conta de suas obras eróticas com histórias de mulheres torturadas por prazer, passou grande parte da vida preso. O segundo teve entre suas obras, um personagem que atinge o orgasmo ao ser espancado e humilhado pelo amante da esposa.

Mas ambos não são os precursores do BDSM. Não há um consenso sobre a origem exata das práticas BDSM, mas se sabe que práticas semelhantes já existiam há muitos séculos. Desde a Grécia Antiga até o Kama Sutra há referências de sadomasoquismo e dominação e submissão eróticas.

Significados de BDSM

  • Bondage

    A arte de amarrar pessoas, seja pela estética, pela restrição ou pelo prazer erótico. Materiais: cordas, algemas, correntes ou grilhões.

  • Disciplina

    Disciplinar ou ser disciplinado por uma pessoa para os mais diversos fins. Pode ser através de humilhações, tapas, espancamentos ou impedir a pessoa de colocar a roupa que mais gosta ou proibir de beber um drinque ao sair.

  • Dominação e submissão

    É uma dinâmica de relacionamento onde uma pessoa se submete à outra, que toma o controle da situação. É o caso de alguém que permite que outra pessoa o amarre, humilhe, espanque e mande fazer coisas, por objetivos sexuais ou não.

  • Sadismo

    É quando uma pessoa sente prazer em provocar dor em uma outra pessoa.

  • Masoquismo

    É o oposto de sadismo: é quando alguém gosta de sentir dor.

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Algumas práticas de BDSM

  • Pet Play

    Quando o submisso se comporta como um bicho de estimação do dominador. Usam coleiras, comem em vasilhas...

  • Pony Play

    É o submisso que assume o papel de um cavalo ou pônei. Usam celas, chicotes, rédeas.

  • Age Play

    Quando o submisso interpreta uma criança ou um bebê. Pode ser forçado a usar fralda e chupeta.

  • Castidade

    O dominador priva o submisso de qualquer contato sexual. Pode ser feito com o uso de cintos de castidade.

  • Cock and Ball Torture

    Causar dor ou desconforto intenso no pênis. Podem ser usados chicotes, prendedores, géis que ardem?

  • Chuva Dourada

    É o ato em que o dominador urina em cima de um submisso, em qualquer região do corpo.

  • Face-sitting

    É quando o dominador ou dominadora senta no rosto do submisso para obrigá-lo a praticar sexo oral.

  • Supremacia feminina

    É onde os praticantes acreditam que as mulheres são líderes naturais dos homens.

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Shibari: a técnica japonesa de amarração e suspensão

Uma prática que está ganhando fôlego em São Paulo é o shibari: um estilo japonês de amarração sexual que envolve desde técnicas simples até as mais complicadas de nós, geralmente com várias peças de cordas.

O designer gráfico que se apresenta como Senhor Leo, 30, de São Paulo, é praticante há três anos. Ele conheceu a técnica por meios de fotos artísticas. Há vários fotógrafos especialistas na área, como o japonês Nobuyoshi Araki, com mais de 500 livros.

Leo fez cursos e aulas particulares para aprender a dar os nós. "Exige dedicação e treinamento, como em qualquer esporte. É difícil e tem seus riscos, como lesões em nervos do braço, perna e ligamentos", conta ele, que durante a noite amarrou um rapaz e fez a suspensão. O procedimento todo demorou cerca de duas horas.

Ele pratica todo final de semana e tem mais de 50 cordas. "A função do shibari é trazer sensações para quem está sendo amarrado." E, para Leo, o prazer é a dominação. "Não preciso me sentir atraído sexualmente para fazer o shibari. A sensação, para mim, é igual a de um esporte radical, aquela adrenalina."

Ele também pratica a dominação, além das cordas, e utiliza varas, asfixia e choques. "Alguns amigos sabem dos meus fetiches, mas ninguém da minha família nem meu chefe sonham em saber", conta ele. Além dele, outras pessoas na masmorra praticavam o shibari -- aliás, foi a técnica que mais vi naquela noite.

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Fisioterapeuta e dominatrix

Já que o nome do local é Dominatrix, quis conversar com a figura feminina que domina os homens por lá. Conheci Lola Steinhot, 29, de São Paulo. Cabelos negros e lisos, delineador gatinho aplicado perfeitamente, assim como o desenho do batom vermelho nos lábios. Tudo impecavelmente acompanhado por um corset preto, marcando bem a silhueta.

A profissão dominatrix é apenas uma das atividades que ela exerce de segunda a sexta-feira. Lola também é fisioterapeuta e massoterapeuta tântrica. Encaixa os clientes submissos na agenda há 10 anos.

"Comecei a me interessar pela dominação e a ler muito sobre o assunto. Praticava nos parceiros, na época, e gostava do que sentiam e do que eu sentia. Eram chicotadas, amarrações, asfixias..."

Lola montou um perfil nas redes com seu nome e os submissos começaram a aparecer, procurando seus serviços. E, assim, ela virou uma dominatrix profissional -- e cobra por isso. As sessões com Lola custam entre R$ 150 e R$ 500

"Não preciso do sexo com penetração como única forma de prazer. O que mais a atrai neste tipo de trabalho é o medo que a pessoa sente pelo que está por vir. Gosto de vendar meus clientes. Eles ficam totalmente sem saber o que acontecerá em seguida. Isso me excita."

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Lola já realizou alguns desejos bem diferentes, mas negou um deles: "O cliente pediu para eu esmagar um bichinho no chão para depois lamber o meu pé. Não vi sentido em fazer aquilo e não fiz."

As situações mais requisitadas são podolatria, amarração e humilhação. Esta última, cada vez mais frequente, segundo ela. "Uma vez, um rapaz pediu para se masturbar e para gozar na minha frente. Deixei. Assim que terminou, mandei que ele ajoelhasse e lambesse todo o sêmen para limpar o chão. E ele fez. Limpou tudo."

"Você tem que cuidar do submisso e criar uma relação de confiança. Mostrar todos os aparelhos que serão usados, além de combinar a palavra de segurança antes da atividade." Hoje, Lola namora um ex-baunilha, que começou a praticar algumas técnicas com ela, após conhecê-la. "Ele já era do swing. Quem é do swing é fetichista. Eu o conheci no clube, então, ele não tem ciúme da minha profissão."

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Lola estava esperamdo um cliente naquela noite. Carlos, 24, não quis revelar o sobrenome. Novato no ramo da submissão, frequenta o universo do fetiche há apenas três semanas. O analista de sistemas chegou por volta da 1h, na companhia de um amigo. Os dois ainda se sentem um pouco intimidados no ambiente.

Magro, alto e usando óculos de grau, ele tirou o acessório e a camiseta, ajoelhou-se diante da dominatrix em um cantinho da sala, enquanto rolavam pelo espaço outras atividades. Ela, cuidadosamente, colocou a venda em Carlos e disse ao pé da orelha "você confia em mim?"

A sessão seguiu com arranhões bem fortes e a parafina quente escorrendo pelas costas de Carlos. Durou uns 20 minutos."Desde adolescente, eu me cortava e sentia o desejo de ferir a minha pele. No sexo, sempre gostei de algo mais pesado, pedia para a mulher me arranhar as costas até sangrar", conta. "Aqui, senti que podia liberar esse meu prazer. As pessoas respeitam, não julgam, não ficam olhando."

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Cinto de castidade e pulseira de choque elétrico

Lu de Dom Marcello, 47, de Porto Velho, é administradora e chefe de uma equipe de 80 pessoas. Mas sentia vontade de ter alguém para servir e, em 2013, durante conversa no bate-papo UOL com o funcionário público Dom Marcello, 51, de São Paulo, encontrou a quem se entregar. Os nomes criados fazem parte da fantasia dos dois. 

Ela ainda mora em Rondônia e os dois se encontram de três em três meses. "Sempre fui independente, mas a gente cansa de mandar. Queria alguém que discordasse de mim, que gritasse comigo", explica Lu, que tem duas filhas -- de 18 e 25 anos -- de outro relacionamento e sabem da atual relação da mãe.

"Tenho admiração pela educação antiga e nós, submissas, somos assim: 'Não, senhor'. 'Sim, senhor'. Não olhamos nos olhos e sempre ficamos um passo atrás. Sempre o sirvo primeiro e peço permissão para sair."

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Enquanto Lu falava, reparei em um detalhe em seu braço esquerdo: parecia um medidor de alguma coisa e perguntei o que era. Dom Marcello, seu parceiro, respondeu: "É uma pulseira de choque, controlada a até 300 metros. Se fizer algo errado, eu aciono daqui." E ele fez uma demonstração na minha frente. Vi a expressão de dor de sua parceira.

Além disso, a submissa usa o cinto de castidade quando está na companhia do parceiro. Mas Dom Marcello insiste em dizer que ele a enche de cuidados e que isso faz parte da relação de confiança do casal. "Cuido dela, passo cremes após as sessões, óleo para não deixar hematomas. Jamais vou abusar da confiança que ela deposita em mim. Tudo é consensual. Sem ela, eu não domino. Ela é muito valiosa para mim", completa Marcello, enquanto abraça a mulher.

Acabada minha missão na masmorra, desci para o térreo, onde rolava uma performance de dança burlesca para alguns clientes do bar. Saí por volta das 2h, mas a noite ainda rolaria até umas 5h para os BDSMs.

Ao atravessar a porta, alguns pedestres passavam pela calçada e olhavam para dentro, sem ter a mínima ideia do que realmente se passa na casa. Essa é uma das peculiaridades da noite de São Paulo. É subir uma escada e tudo pode mudar. E eu? Tenho mais jeito para ser uma dominadora.

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