Reinvenção após a guerra

A vida das mulheres sírias em campo de refugiados na Jordânia: elas trabalham, criam filhos e são até felizes

Danielle Ferreira Colaboração para Universa, de Azraq
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A guerra foi libertadora

É difícil pensar que a guerra faça alguém se sentir livre em alguma instância. Mas é justamente assim que Bashira se sente cinco anos depois de deixar a Síria: foi o conflito que deu à mulher a oportunidade de se separar de um marido agressor. Hoje, ela vive no campo de refugiados de Azraq, no deserto do nordeste da Jordânia, a 90 km da fronteira de seu país natal.

No contêiner de 24 m² em que mora com os quatro filhos, Bashira sorri e corre para buscar um ventilador. Em julho, verão na Jordânia, a temperatura passa dos 35°C. Seus filhos brincam à sua volta e estão curiosos com a minha visita. Além de mim, um policial acompanha as conversas - uma das exigências do governo do país para permitir a realização de reportagens no local. Um tapete cobre o chão e sentamos nos colchonetes. Além do ventilador, há uma televisão em uma bancada - luxo possível apenas para quem mora nas vilas com acesso a eletricidade.

Bashira é de Dara’a, a região síria onde os protestos contra o governo de Bashar al-Assad começaram em 2011. Nas últimas semanas, a área sofreu com ofensiva militar do governo sírio e da Rússia, que recuperaram boa parte do território que ainda era controlado por grupos jihadistas. 

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Vida melhor como refugiada

"Minha vida é melhor aqui em Azraq, mesmo antes da guerra começar", afirma Bashira. Parece difícil de acreditar. Em 2013, ela fugiu da Síria com o marido e os três filhos para o campo de Zaatari, o maior da Jordânia e seu primeiro refúgio fora de seu país. Lá, nasceu a filha mais nova, que hoje tem quatro anos. No entanto, ela conta que o marido a agredia e foi nesse lugar que teve ajuda para o divórcio. Após a intermediação, se mudou com as quatro crianças para Azraq. "É muito difícil para a mulher sozinha lidar com a falta de dinheiro e cuidar dos filhos. Eu não tenho ninguém: nem pais, nem irmãos. Mas a segurança não é um problema aqui no campo", conta.

Bashira teme que a família do marido tome suas crianças, por isso desistiu da ideia de um dia voltar para a Síria, mesmo que a guerra acabe. "Aqui, eu encontrei descanso. Sou mais independente. Se eu voltar, os problemas vão retornar", diz. Ainda que ache o campo de Zaatari melhor, pois lá é possível expandir as moradias e há mais oportunidades para que os refugiados criem seus próprios negócios, ela afirma ser feliz em Azraq. "Moro sozinha com as crianças e me sinto confortável". 

Segundo Bashira, o marido não oferece nenhum tipo de suporte e ela conta com o auxílio mensal do Programa Mundial de Alimentos (agência da Organização das Nações Unidas - ONU) para as despesas. Há um supermercado no campo de refugiados, onde eles fazem compras com os vouchers recebidos. São 20 dinares jordanianos por mês para cada pessoa (cerca de US$ 28) e todos os dias uma porção de 240 gramas de pão é distribuída para cada morador. Para complementar sua renda, ela também trabalhou como recepcionista por três meses dentro do campo, em uma das oportunidades criadas lá. Como o sistema é rotativo, agora ela deve aguardar na fila por outra chance.

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Preocupação com segurança

O campo de Azraq, no nordeste da Jordânia, se destaca na estrada pela repetição dos abrigos brancos que contrastam com os tons da paisagem desértica. Ele foi inaugurado em abril de 2014 e foi construído a partir das lições aprendidas no campo de Zaatari. Em Azraq moram 36.605 pessoas, segundo dados do ACNUR, a Agência da ONU para Refugiados. O lugar pode ser expandido para receber até 100 mil pessoas. Para sair de lá, é necessário ter autorização do governo.

A segurança é restrita e eu fui acompanhada por um policial à paisana. Após mais de um mês aguardando a autorização do governo da Jordânia, a minha permanência como jornalista foi permitida em horário restrito, das 9h às 15h. Ahmad, o policial, seguia de perto o cronograma, apressando as entrevistas e o transporte entre uma vila e outra. Ele anotou o nome e número de identidade de todas as pessoas que conversaram com a reportagem. Quando questionado sobre o motivo, com muita educação, se limitou a dizer: “Esse é meu trabalho. Desculpe, não posso te dizer o porquê, mas estou aqui para garantir que as coisas ocorram de forma fácil para você”.

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Refugiados, mas com qualidade de vida

Cercado por uma paisagem monótona, é inevitável pensar em como é possível fazer o tempo passar em Azraq. Para garantir a qualidade de vida das pessoas que moram lá, agências da ONU, o governo da Jordânia e mais de vinte instituições do terceiro setor atuam no campo. Acompanhei o trabalho da organização não-governamental (ONG) Care Internacional. A ONG administra centros comunitários em todas as vilas de Azraq. 

Como funciona o campo de Azraq

Veja o local onde moram os refugiados sírios no deserto da Jordânia

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Empregos para mulheres

Nesses centros, os moradores podem receber treinamento profissionalizante em costura, serviços de beleza e artesanato, além de participarem de várias outras atividades. Os próprios refugiados trabalham para os moradores do campo e tais oportunidades são um alívio para a saúde mental deles, segundo os relatos.
Entretanto, não há vagas suficientes. “Temos mais de 15 mil pessoas registradas para trabalhar aqui. Por mês, conseguimos gerar cerca de 500 oportunidades. Então, temos que fazer um rodízio”, afirma Jameel Dababneh, coordenador dos programas da Care Internacional no campo de Azraq. Para organizar a seleção, as pessoas foram divididas em três categorias – semiqualificadas, qualificadas e profissionais.  A maior parte dos refugiados, especialmente as mulheres, está na primeira classificação. Pelo alto número, os semiqualificados trabalham durante um mês apenas. Os qualificados atuam por até três meses, para depois cederem sua vaga ao próximo da lista. Já os classificados como profissionais podem trabalhar por até um ano. Os salários variam de 1 dinar jordaniano (cerca de US$ 0,70) até 2,50 dinares por hora.

Creches ajudam a achar trabalho

Dababneh afirma que vem tentando criar convênios que permitam que os refugiados trabalhem fora do campo. No entanto, essa é uma barreira para as mulheres. Muitas nunca trabalharam fora de casa e preferem oportunidades dentro do campo. Além disso, a locomoção seria um desafio adicional, pois não há transporte público na região. Para facilitar a participação das mulheres nas atividades oferecidas, há creches em cada vila de Azraq. Lá, voluntários e trabalhadores do campo cuidam das crianças, desde bebês até cinco anos de idade. Durante a visita a uma das creches, havia 30 crianças e oito monitores. Quando há distribuição no campo (como a de pão, por exemplo), as creches podem pode atingir a capacidade máxima de 150 crianças.

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Aprendiz de jornalista

Bushra tem 17 anos e faz parte da equipe que produz uma revista no campo. É articulada e parece muito feliz em conversar com uma jornalista. Com orgulho, conta que contribui com a publicação há um ano e oito meses. Sua família deixou Damasco para que ela e os irmãos pudessem continuar os estudos, que já estavam atrasados quando chegaram ao campo de Azraq. “Não era seguro lá mais e muitas garotas da minha idade estavam desaparecendo”, conta. “Não é fácil ir para outro país. Quando eu cheguei no campo, perdi a esperança e falei ‘é o fim’. Mas a equipe aqui me incentivou a ir para a escola”.

A revista está na sua segunda edição, que teve a distribuição de 2 mil exemplares no campo. Bushra escreveu um poema e conta que seus pais ficaram muito orgulhosos ao verem o resultado. “Eles ficaram felizes porque viram o quanto eu estava trabalhando nisso. Até pegaram a revista e mostraram para os vizinhos”.

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O sonho de ser famosa

Quando pergunto o que ela espera do futuro, sem demora ela diz que quer ser uma celebridade. “Eu adoro que as pessoas me conheçam. Quero falar sobre mulheres e direitos humanos. Não é fácil o que vivemos na Síria. Eu quero o melhor para o meu país, mas não vamos voltar para lá a não ser que seja seguro. Queremos voltar, reconstruir a Síria. Não vamos desistir”. Enquanto fala, o policial que nos acompanha a interrompe e pergunta seu nome completo e número do documento, fazendo anotações no celular.

Minutos após a conversa, por acaso nos vemos sozinhas na saída do centro comunitário, onde se vê um muro grafitado - há vários deles pelo campo. A mensagem pintada no muro diz se você está procurando a pessoa que pode transformar sua vida, olhe no espelho. Falamos brevemente, em um momento raro sem a presença do policial Ahmad. Tentando praticar seu inglês, Bushra diz que gosta do Brasil por causa do futebol. Fala sua idade e a dos irmãos, se entristecendo repentinamente. Seu semblante muda e ela já não é a menina confiante que falava da revista. O policial chega e ficamos em silêncio. Logo depois, sou conduzida à próxima visita.

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Um lugar só com mulheres

Minha próxima visita é a um salão de cabeleireiro. Como naquele momento no salão só há mulheres, e muitas estão sem o hijab, o véu que as muçulmanas usam para cobrir suas cabeças, a entrada do policial não é permitida (tampouco fotos). O salão funciona em horários separados para homens e mulheres. Duas vezes por semana está aberto para que os refugiados utilizem os serviços gratuitamente. Nos outros dias, são oferecidos cursos de beleza. Quando há casamentos no campo, o salão também prepara os noivos. 

“No começo, quando montamos o estabelecimento, tivemos um retorno bem negativo. As pessoas pensavam que não era uma prioridade. Mas a energia positiva que elas têm aqui reflete no relacionamento com as famílias. Pode acreditar em mim, está refletindo nos parentes, maridos, filhos...”, conta Olfat Abu Alassal, coordenadora de ações comunitárias no campo.

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"Aqui posso cuidar de mim mesma"

Naquele dia, Basima, que se profissionalizou em Azraq, estava oferecendo um curso de penteados para noivas. Ela disse que o trabalho no salão foi importante para que, em meio aos problemas da sua situação, ela lembrasse que “como mulher, eu posso cuidar de mim mesma”.

As cerca de 15 mulheres riem e parecem se divertir. Claramente, aquele é um espaço onde elas estão livres para compartilhar suas alegrias e tristezas. Badrya, que deixou a cidade de Homs há dois anos, começou a frequentar o salão meses atrás. “Eu não tinha nada para fazer no abrigo. Aqui, fiz muitas amizades, adoro conversar com elas. E não fico lá pensando... Faz uma diferença enorme, agora tenho tempo com mulheres”. Enquanto conversamos, somos interrompidas por batidas na porta. Ahmad, o policial, está nos chamando lá fora e temos que ir.

Muhammad Hamed/Reuters Muhammad Hamed/Reuters
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"Difícil é viver sem marido"

Quando entro na casa de Siham, me surpreendo com a decoração. É impossível não sorrir diante do esforço para transformar o contêiner em lar. Ela tem 30 anos, é de Aleppo e tem três filhos. Antes de chegar a Azraq, permaneceu por cinco meses com a família na área de fronteira entre a Síria e a Jordânia chamada de “berma”. O local é conhecido pela falta de estrutura para receber os refugiados e pelas dificuldades que as próprias agências de assistência humanitária têm para atuar lá. O marido de Siham tem autorização para trabalhar fora do campo, então mora longe da família. Sem ele por perto, ela vive com o sogro, Mustafa.

Faço várias perguntas a Siham, mas obtenho poucas respostas. Quem fala por ela é o sogro. Quero saber sobre a rotina dela e ele diz que o que a mantém ocupada são os afazeres domésticos. Segundo ele, ela também se queixa das escolas, pois a qualidade da educação não seria a mesma que as crianças poderiam ter lá fora. Pergunto sobre as dificuldades que enfrenta como mulher no campo. Ele responde prontamente: “a maior dificuldade é viver aqui sem o marido”. Siham é diferente das mulheres que entrevistei antes que, longe dos homens, parecem ter bem mais liberdade e desenvoltura.

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"Vai ficando mais fácil"

Com a guerra, a estrutura de muitas famílias se alterou radicalmente. Com maridos ou filhos mortos ou feridos, frequentemente cabe às mulheres sustentar seus lares. O que não é fácil dentro ou fora do campo. Todas as mulheres entrevistadas nesta reportagem nunca haviam trabalhado fora de casa. A necessidade impõe o desafio da exposição social, que não era típica em suas vidas anteriormente.

Mouna é de Aleppo e trabalha na oficina de costura de Azraq há dois anos. Hoje, ela é instrutora e ensina outras refugiadas. “Lá atrás, tudo parecia bem difícil. Mas foi ficando mais fácil. Viver aqui mudou minha vida de 0 para 100. Eu estava parada, não ia a lugar nenhum”, lembra.

Na oficina, as mulheres (e os homens, em horários distintos), aprendem a fazer roupas que podem ser vendidas fora do campo. Atualmente, a ONG trabalha junto ao governo da Jordânia para providenciar a certificação dos treinamentos, garantindo a qualificação oficial dos trabalhadores aos possíveis empregadores. O desafio é abrir o mercado para esses produtos e garantir que, de fato, os refugiados possam aplicar profissionalmente o que aprendem no campo. Afinal, há outra vida lá fora esperando por eles.

Sam McNeil/AP Sam McNeil/AP

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