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Mês do Orgulho LGBTQ+

Eles diziam que iam me arrastar numa moto. Eu tinha 12 anos e era gay

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Imagem: iStock

Aquele momento de choque da família e dos amigos quando eu contei que era gay não foi exatamente como eu esperava: a verdade é que não surpreendi ninguém --ou quase. Todo mundo sabia que eu era gay muito antes de mim. Quando eu tinha quatro ou cinco anos, meus pais já falavam sobre essa desconfiança --apenas entre eles e o pediatra. Queriam que eu não sofresse, saber como lidar, mas o médico disse: "Bobagem. Ele é criança. Esqueçam disso." Mas, na pré-escola, eu já era o garoto "diferente" que não jogava futebol. A professora questionava: "Mas como?"

É da primeira série a minha memória mais antiga de alguém me chamar do que ouviria pelo resto da minha vida: viado. O responsável por essa lembrança é Biro-Biro, apelido do meu colega de classe, também de sete anos. Eu, no entanto, o chamava de Loirinho. Nem passava pela minha cabeça quem era Biro-Biro, o que originou a alcunha. Como não sabia o nome do menino, criei um, baseado no cabelo amarelo de cachos miudinhos.

O que eu quero deixar bem claro é que, na maioria das vezes, todo mundo sabe que você é homossexual, mesmo que você nem compreenda o que isso significa. Imaginava, na vida adulta, que não seria diferente de ninguém: eu dizia, nessa idade, que me casaria com uma das Frenéticas ou com a minha mãe. Do contrário, seria solteiro. Minha mãe achava uma graça; meu psicanalista gruda no teto.

Os anos foram passando e eu fui sendo chamado de bicha e apelidado com o nome de todas as bichas da TV (Sarita, Bene, Seu Peru...). Eu não gostava, obviamente. Ficava triste, mas não falava nada em casa, pois não queria contar para os meus pais que eu era o viadinho da escola.

A coisa começou a ficar mais violenta. Na sexta série, com 12 anos, estudava em uma escola no pé de um morro, instalada numa rua cinza e feia, coberta de terra e brita, em São Vicente (SP). Uma turma do que era o colegial me jurou: "Vamos pegar você, arrancar sua roupa, te amarrar numa moto e arrastar pela rua". Não fui mais à escola. Passei um ano levantando todas as manhãs, colocando o uniforme, pegando a bicicleta e rodando os bairros vizinhos pedalando. Quando sabia que minha mãe havia saído para o trabalho, voltava e dormia. Repeti de ano. Não expliquei o motivo para os meus pais. Eu não queria nem pensar no assunto e não tinha como olhar para os dois e dizer: eles me ameaçam porque dizem que sou gay.

Mudei de escola. Ela ficava no sentido oposto da antiga. Eu passava por uma rua onde uma meia dúzia de garotos, uns anos mais velhos do que eu, formavam uma turma. E me ameaçavam. Eles me derrubavam no chão, me davam uns tapas e riam muito. Mudei de caminho. Era muito mais fácil do que chegar em casa e dizer: pai, os garotos da rua do lado me batem porque acham que desmunheco.

No novo colégio, tomei tapa na cara, levava empurrões, fui xingado quase que diariamente e sempre me prometiam uma surra. Às vezes, uma professora me dava carona até uma rua mais longe da escola, mas ela achava que eu pedia só por preguiça de andar. Quando contei o real motivo, há poucos meses, ela ficou triste.

O menino mais bonito da escola me odiava. Ele era um sucesso entre as meninas. E me ameaçava. Passava por mim nos corredores e me dava encontrões, me encurralava em paredes e achava muita graça do meu pavor. Ele sorria, de queixo levantado. Eu olhava para o chão. Nós dois tínhamos 13 anos. Outro dia, encontrei com ele, por acaso: está "mais feio do que a necessidade", como diz uma amiga escritora, a Laïs de Castro. Mas como contar em casa o que eu passava sem entrar no assunto: "Mãe, pensam que sou gay e me agridem por isso."

Até uns 16 anos, nem me ocorreu que eu fosse viado, mesmo. Meu analista deve saber explicar melhor do que eu como pude não sacar algo que todo mundo me dizia, todos os dias, desde sempre. Foi com essa idade que fiz um novo amigo: Leonardo. Ele era lindo. Não, ele não era lindo. Eu o achava lindo. Eu não conseguia ver nada de errado em querer estar com ele o tempo todo, para todo lado, dentro e fora da escola. Ele, sim. O Leonardo entendeu o que eu não havia entendido: eu estava apaixonado. Ele se afastou e eu sofri demais. Foi quando eu disse para mim mesmo: "Ok, sou gay. Mas eu jamais vou ter algo com um homem na minha vida."

Finalmente, acabou a escola. Um alívio. Eu já tinha 18 anos. Não tenho saudade nenhuma. Odeio essa fase da minha vida. Entrei no cursinho pré-vestibular, particular. Eu, que sempre havia estudado em escolas ruins, estava encantado com apostilas bonitas, cheias de exercícios, e professores divertidos e articulados. Pela primeira vez, entendi matemática.

Um dia, estava conversando com uma amiga durante a aula de geografia. O professor nos interrompeu e disse: "As meninas podem parar de conversar?". Bastou. Todos os dias seguintes, eu descia o corredor do auditório, onde tínhamos aula, e os cerca de 200 alunos imitavam os sons de um peru, enquanto eu entrava. Aguentei uns dias. Parei o cursinho. Mudei para um outro, intensivo, que estava começando, e perdi a vontade de ir. Mas como eu ia falar isso para os meus pais? Eu não conseguia nem pensar sobre o fato de ser gay.

Dos 17 anos 24 anos, eu sabia que sentia atração por homens. Cogitei de ser padre ao suicídio. Junto com a consciência de que eu era gay, veio um novo problema: ser chamado de viado passou a me causar crises de pânico. Meus braços formigavam, começando bem da pontinha de cada dedo. A boca ficava amortecida e seca. A língua ficava áspera e não conseguia acomodá-la na boca. Era inundado por um medo inexplicável que eu tentava segurar. Tinha de ir imediatamente para casa.

Chegando no meu quarto, deitava na cama e dizia para mim mesmo: "Vem". E ela vinha. A crise me fazia sentir cada pedaço de pele sensível, as raízes dos pelos do corpo todo ardidas, as minhas extremidades congeladas. Começava a transpirar muito, sentia o peito ferver, como se meu coração estivesse mergulhado em óleo quente. Caía no sono e acordava melado do suor. E melhor --até ter a próxima crise.

Continuava tentando levar a vida de um jovem como outro qualquer --era só o que eu queria ser. Com meus amigos, todos heterossexuais, suponho, fui para uma balada. Na pista, dançando com minha melhor amiga, sugeri, brincando, um início de strip tease. O segurança me arrastou para o depósito de bebidas e gritou: "Me respeita como homem que eu te respeito como viado". E me espancou. Ele deu muitos murros no mesmo lugar da cabeça: atrás da orelha direita. Quando parou, me levou para a saída por uma porta de fundos, me abraçando, dizendo algo que eu não me lembro direito, mas que queria dizer que ele me desculpava e que seria uma boa lição para mim. Liguei para o meu pai me buscar. Mas como contar para ele o que havia acontecido? Minha irmã estava junto, queria ir para a delegacia. Fomos para casa.

Eu não podia dividir isso com ninguém. Falar me obrigaria a entrar em um assunto que eu não queria entrar. Foram longos sete anos de crises e de dúvidas sobre o que eu faria com o que sentia em relação a homens, sem ter com quem conversar ou algum lugar que me oferecesse informação sobre ser homossexual. Em algum momento, neste intervalo de tempo, ganhei um computador com acesso à internet. Sobre homossexualidade, encontrei duas coisas: pornografia e o mIRC, um programa de troca de mensagens com um layout tosco e alguns canais destinados a bate-papo entre gays. Finalmente, eu poderia dizer a alguém quem eu era.

Alguns não tinham a menor paciência com quem estava começando, como Susana Vieira. Outros vinham babando para experimentar a inocência do novato. Dali, saiu meu primeiro beijo em um homem, aos 24 anos. Guilherme. Depois dele, vieram novas questões. E relacionamentos. Curtos e longos. Com paixão, com amor, com os dois ou nenhum dos dois. Com frustrações, flores, brigas, emoções, romantismo, pés na bunda, músicas, traições, declarações, ciúme, carinho... Tudo o que todo mundo que se dispõe a se relacionar com outro humano vive. Comecei a entender que eu não era diferente, não. Era igual.

Hoje, sou editor de Universa, a plataforma feminina e de diversidade do UOL. Aqui, eu esqueço que ser gay é considerado "diferente". Todo mundo fala sobre tudo com naturalidade, sem nariz torcido, conta as intimidades (as mais profundas) e divide experiências abertamente. E todo mundo está sempre preocupado em não fazer julgamentos.

Junho, mês do orgulho LGBTQ+, faremos uma cobertura especial ao longo desses 30 dias. Conteúdos que podem ajudar pessoas como eu fui a se compreender. Que mostram caminhos aos pais. Contam histórias de amor, de alegria, de trabalho e da lenta --mas positiva-- mudança que o mundo vive sobre respeito. Mas, principalmente, histórias de gente. Gente como eu, como você, independentemente do desejo que sente.

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