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Acabou o racismo; fizeram um editorial de moda com pretos

Desfile de moda apenas com modelos brancas - Getty Images/iStockphoto
Desfile de moda apenas com modelos brancas Imagem: Getty Images/iStockphoto

No Brasil, segundo dados demográficos, temos 54% da população se autodeclarando preta e parda, logo, negra. Mesmo assim, eu e diversas pessoas negras praticamente temos que repetir diariamente esse número para alertar que existe algo de anormal numa sociedade que acredita que a inexistência de negros em determinados ambientes nada tenha a ver com racismo. Palavra essa, que sequer é citada em alguns espaços institucionais, pois se acredita que racismo não deva ser comentado ou dito em voz alta, afinal, é um assunto de "menor escala". Então, estou eu aqui, novamente, repetindo: 54% da população é negra! Contudo, no campo da produção estética, fica evidente que ser maioria não significa nada quando se é negro no Brasil.

Para mim, nada mais simbólico nesse sentido do que lembrar da famigerada e recente festa de 50 anos de Donata Meirelles, ex-editora da revista Vogue Brasil. Uma mulher, que era editora de uma revista de MODA conhecida internacionalmente. Logo, deveria ser capaz de compreender o imagético, o peso por trás das imagens, fotos, desenhos, na estética que criamos. Donata não acha que errou; ela se acostumou que aquilo apresentado ao público em sua festa de 50 anos era o normal e aceitável. Por isso, criou, sem receio, um cenário tipicamente colonial em pleno 2019.

Naquelas imagens que ganharam o mundo, ficou nítido que negros são invisíveis quando convêm, e são cenografia quando também convêm. Nada resume mais a moda brasileira, por trás de suas marcas, semanas de moda, editoriais, capas de revistas e escândalos do que: sermos resumidos a objetos de cenografia na festa de uma mulher branca que não trabalhava com no mínimo metade de negros em sua equipe fixa na Vogue Brasil, mesmo tendo possibilidade de influenciar em relação a isso.

O que é isso senão a manutenção de uma lógica colonial?

Negro bom é o que serve

Negro bom, sim, é o que serve, e não o que tem as mesmas chances e ocupa os mesmos lugares que brancos. Inclusive, porque os brancos fazem de tudo para tentar impedir isso. Pegando o gancho das revistas, é simbólico que mesmo com a crescente representação de negros em seus editoriais, dada a pressão dos ativistas, esses profissionais negros sejam totalmente ausentes de qualquer cargo de decisão e poder, ou até mesmo de garantia salarial fixa.

Não se pode pensar em precarização do trabalho no contexto neoliberal sem reforçar como essa é a realidade negra por anos; e mesmo no trabalho "freelancer", o sujeito branco é privilegiado pela sua identidade racial. As modelos são um bom exemplo disso, contratadas para trabalhos temporários. Poucas negras estão estabilizadas economicamente ou sequer vivem minimamente bem depois de uma certa idade quando os trabalhos se tornam ainda mais escassos. Essas mulheres são totalmente engolidas por um contexto em que sequer foram aceitas. Se enganam os que acham que elas são de alguma forma, mesmo com medidas "perfeitas" para seu trabalho, aceitas. Não existe aceitação de sujeitos negros numa sociedade racista.

Em contrapartida, nas mesmas posições, muitas brancas seguem adquirindo status mesmo depois de certa idade, não só nas capas que colecionam, mas no que uma capa representa: o valor que você tem nesse mercado. Não é futilidade, é estrutura. Estrutura eugenista mantida maravilhosamente bem, pelo que se entende como "mundo da moda".

Digo que o racismo no Brasil é um sistema tão bem feito e tão bem pensando, que é só o absurdo que nos mobiliza. E na questão racial, mesmo entre campos que se colocam como vanguarda, nós não conseguimos ter paz, porque a cada dia há uma nova representação da negação da nossa existência. Na mesma semana que falamos da festa de Donata Meirelles, negros americanos criticavam o blackface por trás de suéters da Gucci. Mesma marca que fez uma série de editoriais com modelos negros, mas que aparentemente não contrata negros para terem poder decisivo em suas equipes de criação. Esses dias, uma marca brasileira em Portugal, a Casa Pau Brasil, focada na área do design, postou uma foto colonial atribuindo como "inspiração", uma imagem que se via claramente negros escravizados seguindo seus senhores.

Estamos nos primeiros dias de março. E aparentemente as pessoas que criam design, estão em mais um no ano de 1600.

E o que nos mostram as marcas?

O ano mal começou e temos mais: no Instagram, um post de campanha de Dior, mostra um vídeo lindo de bailarinas dançando, em que não há uma mulher negra. Nas redes sociais, você vai percebendo a sutileza do racismo que constrói nossa inexistência de forma tão não natural. No perfil da Valisère, em que há, além das modelos, algumas influencers, você rola, rola, rola e vê muitos tipos de brancas, da bronzeada à ruiva, mas negras, ahhh negras não. Talvez a gente não use sutiãs, esse artigo tão fora do comum, não é mesmo? Seguindo esse padrão de analisar contas do Instagram, Martha Medeiros não tem negras em seu perfil desde julho do ano passado. 

Na Hope, que também vende lingeries, mais pessoas brancas. Só há uma modelo negra, mas de pele superclara, e careca. Sempre a mesma usada em meio a um universo de loiras e morenas-claras variadas. Sempre as mesmas influenciadoras, as mesmas poses e em especial, as mesmas cores. Temos ainda Alexandre Birman mostrando em sua conta uma série de pés brancos (em junho, há duas fotos de Lupita N'Yongo). A publicidade concretiza imagens absurdas dessa elite que vive totalmente à parte do resto da sociedade, imersa na própria branquitude brega e retrógrada.

Ou seja: mesmo depois do escândalo de Donata, o mundinho da moda continuou o mesmo. Até nós, negros, fomos colocados no nosso devido lugar, ao sermos vistos como tutores de brancos que não querem ser racistas, e não como humanos feridos por essa estrutura. Estamos sempre servindo. Essa é a grande questão para mim: negros estão em todos os lugares; somos pessoas, somos carne, somos gente, mas, ao mesmo tempo, somos invisíveis aos olhos de muitos, em especial, os que detêm algum tipo de poder estrutural ou simbólico nessa estrutura.

E nisso, temos o universo da moda, da estética, da beleza, das grandes revistas; um mundo que é apartado da realidade social de qualquer contexto e que vende muitas vezes, de forma errônea, a ideia que gostar de moda é não gostar de nada, de ninguém e fazer uso de todos os "ismos" que se referem a preconceitos como forma de mostrar seu poder.

É "cool" achar uma "negra exótica", mas só fazer desfiles, fotos com brancas e repartir conhecimento e dinheiro entre os "seus". O estilo de vida a là "O Diabo Veste Prada" é acompanhado de uma série de lógicas coloniais, eugenistas e deturpadas, que podem até atingir brancas, em especial "não padrão", mas dilaceram qualquer possibilidade de autoestima para uma mulher negra.

Lembro quando minha mãe colocou na cabeça que eu tinha que ser modelo. Primeiro casting em São Paulo, e uma garota negra mais velha me diz que estávamos todas nós, as negras, concorrendo para o mesmo lugar. Se o mundo fosse uma mesa de jantar, nós negros estamos lutando por uma cadeira, enquanto na verdade a vaga é pro carpete.

Quer mudar a estrutura sendo branco? Levante do assento e permita que outros experimentem essa sensação. Não precisamos de "paliativos"; não mais.

Vivemos anos de revistas como a Vogue, impondo uma estética abertamente racista, que chega ao ponto de em um ano colocar um "black is beautiful" na chamada e, no país dos 54% negros, soltar um total de 11 capas só com brancos no mesmo ano. É uma piada. Donata Meirelles em sua festa com negros como cenografia diz muito sobre como não podemos levar a sério quando nos chamam de lindos e queridos --quando convém, quando fazem uma capa ou um editorial quando convém, quando querem estar alinhados a mulheres negras pois convém muito, dado que se tornaram grandes influenciados. Agora é simples, é fácil fortalecer a negritude que lhes é conveniente. O complexo é tentar entender por que ambientes como o da moda, que se propõe a ser vanguarda, continuam na manutenção da ideia de que negros servem para uma capa ao ano e pronto, ou nem isso. Onde estão os negros na moda?

Lindsay Peoples Wagner, sucessora de Elaine Welteroth na Teen Vogue, provavelmente a terceira negra no mundo a ter o cargo de editora chefe no grupo de revistas CondéNast, mesmo esse grupo tendo mais de um século,  escreveu um texto com a chamada: Negros na Moda - Todo Lugar, Lugar Nenhum. Um resumo mais sucinto que esse impossível.

Depois do escândalo da festa de 50 anos de uma representante do que existe de mais brega no mundo da moda da elite brasileira, não vimos sequer impacto no meio, sequer uma mea-culpa. Um teste do pescoço adaptado ao Instagram mostra exatamente isso. Continuam no seu mundo brancos, alheio a qualquer responsabilidade coletiva. Tampouco os que se dizem empáticos estão trabalhando para ascensão de negras a cargos de decisão nos ambientes criticados. Não aguento mais editorial, quero saber das equipes. Não é sobre talento, nem currículo, é sobre raça.

 Estar em todo lugar e em lugar nenhum, é sobre raça.