Reprise de "Por Amor" faz sucesso e mostra que o mundo mudou; ainda bem!
A novela "Por Amor" é um sucesso inegável. Escrita por Manoel Carlos, a trama, que estreou em 1997, tem como mote a história de uma mãe, Helena (Regina Duarte), que troca o próprio bebê pelo de sua filha, Eduarda (Gabriela Duarte), que morre logo após o nascimento. Ela faz tudo em segredo, abrindo mão da criança por amor à filha, como sugere o título.
A novela está sendo reprisada pela quarta vez, e a audiência alta prova que os 22 anos que se passaram não mudaram o impacto nem a força de dramas cotidianos comuns. Relações conjugais, ciúme, brigas, traições, amizades, família: muitos temas se mantiveram atuais.
Por outro lado, o mundo mudou muito desde que "Por Amor" foi ao ar pela primeira vez. Vale lembrar: foi no século --e também no milênio-- passado. Assim como os celulares pré-históricos, o uso de orelhões e os notebooks gigantes que aparecem na trama, antes encarados com naturalidade, hoje podem causar estranhamento em quem assiste.
Galã cafajeste
Antes de se apaixonar por Helena, o galã Atílio (Antônio Fagundes) tinha uma relação longa com Isabel (Cássia Kiss), o que nunca o impediu de flertar livremente com toda mulher que cruzasse o seu caminho.
Em uma cena, ele vai à festa com a namorada, mas joga charme para Helena e Flávia (Maria Zilda Bethlem) e pega o telefone das duas --que ainda por cima são amigas. No início da trama, ele está à mesa com Helena, mas olha e sorri descaradamente para a mulher da mesa ao lado. O comportamento é encarado com absoluta naturalidade, como se a condição de cafajeste fosse inerente ao gênero masculino.
Filho bom é filho menino
Outra atitude sexista que chama a atenção é o fato de Marcelo (Fábio Assunção) querer, especificamente, um filho homem. Ele encomenda à mulher, Eduarda, um bebê com esse pré-requisito básico. E não é o único. Em vários momentos, os outros personagens comentam a bênção de ter um herdeiro menino. Filhas mulheres, aparentemente, não estavam em alta em 1997 --e ninguém achava nada demais.
Violência doméstica retratada como briguinha de casal
Assim como na vida, nas tramas nenhum casal é feliz e está aos beijos o tempo inteiro --do contrário não haveria novela. Mas, na versão original, em cenas que ainda não foram ao ar na reprise atual, em mais de uma ocasião durante as discussões do casal, Marcelo parte para cima de Maria Eduarda. Em um desses momentos, ele precisa ser contido por Virgínia (Ângela Vieira) e Helena para não agredir a mulher, de quem está separado.
Em outra cena, eles discutem, e ele diz que vai quebrá-la, a puxa pelos cabelos, a imobiliza, a aperta, dá um tapa na cara dela e diz que ela precisa de uma surra. Para se defender, ela acerta a cabeça dele com um castiçal. Meses depois, eles terminam juntos. Laura (Viviane Pasmanter), sua ex-namorada, também não escapa e toma um tapa na cara em meio a uma discussão. Ela ainda justifica a atitude dele dizendo ser esse seu jeito de amar.
Vale lembrar que a novela acontece em um contexto pré lei Maria da Penha, de 2006, em que a violência doméstica não era tão discutida como em 2019. E os episódios são tratados como brigas corriqueiras de casal. Difícil acreditar que, hoje, um homem que agride a companheira ia ter as atitudes perdoadas e chegar ao fim da trama com final feliz e música romântica ao fundo.
Trabalhar era coisa de homem
Toda novela, como também acontece na vida real, tem mulheres que não trabalham ou estudam e se dedicam integralmente ao lar, aos filhos, ao marido e ao casamento. Tudo normal. Mas, em "Por Amor", a situação é extrema. Até há mulheres que trabalham na trama, mas a taxa de desocupação feminina é altíssima --e não só entre as personagens mais velhas. Muitas das mulheres não têm ocupação alguma. Passeios no shopping, idas ao salão, mergulhos na piscina, viagens e festas, além de fofocas e questões familiares, dão conta de preencher tanto tempo livre.
Eduarda era odiada, Marcelo não
Em uma época pré-redes sociais, em que a internet ainda dava seus primeiros passos, a personagem de Gabriela Duarte foi pioneira em colecionar haters, que fundaram o site Eu Odeio a Eduarda. A verdade é que ela era mala e, 22 anos depois, continua sendo. A pergunta que fica é: por que Marcelo não sofreu a mesma rejeição? Ele era autoritário e, como ela, muito mimado.
Se Eduarda era insegura, ele, por sua vez, mantinha a ex-namorada Laura, que ainda era apaixonada por ele, sempre por perto, alimentando o ciúme de Eduarda. Além de ter agredido a mãe de seu filho, tinha um histórico de violência contra mulheres, comentado na trama. Apesar de tudo, seu personagem não caiu no desgosto do público. Em 2019, a audiência teria sido tão benevolente com ele?
Milena, a mulher moderna do passado
A personagem Milena (Carolina Ferraz) fez sucesso, e os beijos ardentes trocados com Nando (Eduardo Moscovis) deram o que falar à época. Mas, hoje, já não causam tanto espanto. Na trama, sua vida amorosa e sexual livre era motivo de comentários preconceituosos, sobretudo por parte de sua mãe, Branca (Susana Vieira).
Provavelmente, hoje o comportamento dela seria encarado com mais naturalidade. Já uma certa situação soa estranha agora: em determinado momento, a jovem decide tatuar (de henna) o nome do namorado. Confrontada pela mãe, ela responde: "Ele é meu dono. Quando a gente ama, a gente pertence à pessoa amada". Pouco crível ouvir essa frase de uma mulher dona da própria vida em 2019.
Perceber que tanto ficou para trás desde quando a novela estreou não faz com que a trama perca o seu valor. É apenas sinal da passagem do tempo na sociedade. Ainda bem.
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