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Como em "O Escolhido": entrar em uma seita pode ser mais fácil do que pensa

Na série O Escolhido, população vive isolada e jura que seu líder é capaz de curá-los de tudo - Reprodução/Instagram/@oescolhido
Na série O Escolhido, população vive isolada e jura que seu líder é capaz de curá-los de tudo Imagem: Reprodução/Instagram/@oescolhido

Jacqueline Elise

Da Universa

15/07/2019 04h00

Na série brasileira "O Escolhido", produzida pela Netflix, um trio de médicos é mandado para uma comunidade fictícia isolada na região do Pantanal, no Mato Grosso do Sul, para vacinar a população contra uma nova mutação do zika vírus. Chegando lá, eles encontram uma comunidade que segue ao Escolhido, um homem que promete curar as pessoas -- tanto que, segundo ele e os moradores da vila, ninguém fica doente lá e as pessoas só morrem quando querem, por isso não há necessidade de serem vacinados. Inclusive, eles acreditam que vacina é um "veneno" para seu organismo.

Ao longo da série, os médicos veem suas respectivas crenças e a própria ciência sendo testada pelo suposto poder do Escolhido de dar boa saúde e vida eterna a quem acredita em seu chamado "dom". Os ares de seita são bem estabelecidos na comunidade: eles possuem vestimentas próprias, funções estabelecidas na comunidade, doutrinas, cânticos e símbolos específicos e, mais do que tudo, veneram um líder que faz grandes promessas e conquista o povo com seu carisma. O programa, então, levanta a pergunta se é tão fácil assim ser persuadido para fazer parte de uma seita. A resposta simples é que qualquer um pode ser convencido, desde que ele veja que tenha algo a ganhar ao se juntar ao grupo.

Religião vs. seita

Mário Ernesto Schweriner, psicólogo, professor e coordenador do curso de Ciências Sociais da ESPM (Escola Superior de Propaganda e Marketing de São Paulo), explica que o que mais diferencia uma religião de uma seita é a figura que é venerada em cada uma.

"A característica principal da seita é que ela normalmente tem um líder muito carismático, com uma certa aura mística, que representa a solução para os problemas das pessoas", explica. "Esse líder tem que 'vender' sabedoria, um ideal, mesmo que ele não seja sábio. E ele é visto como uma divindade na Terra. A diferença disso para uma religião é que a religião congrega adeptos que veneram um deus ou deuses, e os representantes passam a palavra desses deuses para quem crê. Na seita, a figura venerada é o líder que comanda o grupo, uma pessoa magnetizante, que agrega e convence as pessoas de seu propósito, porque ele é o portador da verdade".

As seitas, também, não têm um propósito só: o especialista explica que existem as de cunho político (de colocar uma figura política como líder), religioso (em torno de alguém que se afirma como um ser com características extraordinárias) e até mesmo econômico.

Grupos têm um público-alvo, mas qualquer um pode se sentir incluso no discurso

Schweriner relata quem é o perfil mais procurado pelos líderes de seita para agregarem ao seu objetivo: "São indivíduos socialmente isolados, que têm pilares sociais frágeis e não têm muitos propósitos de vida. Essa seita vai dar um sentido de afiliação às pessoas, algo que é fundamental para o ser humano, para que elas sintam que sua própria existência faz sentido".

Mas, segundo ele, não são somente as "típicas ovelhas desgarradas", em suas palavras, que são seduzidas pelo idealismo. "Tem pessoas extremamente centradas e equilibradas que entram para essas seitas, que você pensaria que elas são 'inteligentes demais' para cair nesse papo, mas que caem. Um exemplo claro é ver como doutores, filósofos, pessoas estudadas e inteligentes aderiram ao nazismo. E o nazismo pode ser visto como seita: tinha símbolos específicos, vestimentas próprias, cânticos, um líder que agregou muita gente, uma ideologia bem definida. Então, o que se defende é que a inteligência e o nível de cultura de alguém não estão ligados ao fanatismo, porque pessoas cultas também podem aderir a ideologias fanáticas".

Mas por que isso acontece? Segundo a professora e doutora em psicanálise Andréa Ladislau, essas pessoas vistas como "esclarecidas" enxergam que têm algo a ganhar ao entrar para as seitas. "O tema pode atrair e elas passam a achar que são as donas da razão, porque ali encontraram uma certeza, uma verdade para a vida delas, e os outros precisam se enquadrar nisso. Ela pode vislumbrar, também, uma posição de poder, uma ascensão na vida dentro daquele grupo que a acolheu".

Liderança masculina, manutenção feminina

O Escolhido 2 - Reprodução/Instagram/@oescolhido - Reprodução/Instagram/@oescolhido
Na série, mulheres da seita são o "braço direito" do líder, um homem
Imagem: Reprodução/Instagram/@oescolhido

Assim como em "O Escolhido", seitas costumam ter líderes homens e ajudantes mulheres. A razão para isso acontecer ainda é geralmente justificada por valores machistas da sociedade. "O homem é visto ainda como um ser com maior capacidade de persuasão. Então eles se utilizam disso para convencer as pessoas de que é preciso acreditar naquele propósito dele para que os seguidores encontrem a salvação. E as mulheres ainda são vistas como 'muito emocionais', por isso acabam sendo as aliadas que fazem tudo pelo líder, e que ficam a cargo de arrebanhar mais pessoas e fazer o 'trabalho emocional' do grupo", diz Andréa.

Um exemplo recente desta dinâmica veio com o escândalo da seita NXIVM (pronunciada "Nexium"), nos Estados Unidos. Ela dizia que promovia encontros de autoajuda e workshops de empoderamento feminino, ministrados por um homem, Keith Raniere, mas que na verdade fazia mulheres de escravas sexuais. Quem aliciava outras mulheres era a atriz Allison Mack, conhecida pela série "Smallville". Quando o caso veio a público, descobriu-se que Mack tentou trazer a atriz Emma Watson para o esquema, via Twitter.

Por que sair de seitas é tão difícil?

"Lá se usa da manipulação e da lavagem cerebral para convencer as pessoas a participarem. Os líderes falam aquilo que a pessoa quer ouvir no momento, que pode ser uma resposta fácil, uma solução rápida para os problemas ou prometem que coisas boas acontecerão com ela se ela passar a servir aos propósitos daquele grupo. Eles, inclusive, compartilham essa característica com os psicopatas: tentar entender a personalidade de cada indivíduo para identificar como trazê-los para seu lado. Nisso, vão conquistando a confiança das pessoas e convencendo-as a se isolarem de amigos, família e todos aqueles que podem despertar a desconfiança nas práticas do grupo", relata Andréa.

O que acontece, então, é que o membro da seita perde sua autonomia e vai se desfazendo de qualquer recurso que poderia fazê-la duvidar do líder e das intenções daquelas pessoas. "Quem entra nessa fica até monotemático, só quer falar sobre isso e trazer o máximo de pessoas para a seita, para ter aprovação do coletivo", explica a especialista.

O que Andréa e Schweriner afirmam é que, para sair dessa, não é tão fácil. Antes de tudo, a pessoa precisa estar disposta a realmente se livrar daquela doutrina. A partir daí, é preciso desconfiar de promessas muito mirabolantes de salvação e resolução dos problemas e não se isolar completamente do mundo: manter amigos e família por perto pode facilitar que pessoas "de fora" consigam identificar se há um problema e podem ajudar a sair.