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Mulheres precisam ser mães? Autora que está na Flip ajuda a responder

Sheila Heiti: quem disse que a mulher precisa ter filho? - Jamie Campbell/ Divulgação
Sheila Heiti: quem disse que a mulher precisa ter filho? Imagem: Jamie Campbell/ Divulgação

Marcella Chartier

Colaboração para Universa

13/07/2019 04h00

A maternidade compulsória é uma construção social. Ela carrega o princípio de que uma mulher só é completa quando tem filhos. Questioná-la é tabu: aquela que opta por não ser mãe é encarada como, na menos pior das hipóteses, alguém que não pode saber do que está falando, já que não vivenciou a magia de segurar seu filho no colo, vê-lo crescer e se desenvolver.

A ideia de que todas devem ser mães está atrelada, entre outras questões, à própria romantização da maternidade: não se pode descartar uma experiência que representa quase que uma ascensão sagrada, reunindo sensações que nenhuma outra vivência pode gerar.

Na 17ª Flip (Festa Literária Internacional de Paraty), uma das mesas terá entre as participantes a escritora canadense Sheila Heti, cujo livro mais recente se chama "Maternidade" e foi lançado há pouco no Brasil pela Companhia das Letras. A obra trata da escolha de uma mulher por não ter filhos e suas páginas trazem uma sequência angustiante de ponderações, questionamentos e projeções em torno da decisão, além de memórias e conclusões da narradora sobre ser filha e a recuperação da história das mulheres mais velhas da família -- sua mãe e sua avó, especialmente.

Não se passam muitas páginas até que apareça uma suposição perturbadora: "Por que continuamos tendo filhos? Uma mulher precisa ter filhos porque ela precisa estar ocupada. Quando penso em todas as pessoas que querem proibir o aborto, isso parece significar apenas uma coisa: não é que eles queiram uma nova pessoa no mundo, o que eles querem é que aquela mulher tenha o trabalho de criar um filho, mais do que querem que ela faça qualquer outra coisa. Há algo de ameaçador em uma mulher que não está ocupada com os filhos. Uma mulher assim provoca certa inquietação. Que tipo de problemas ela vai arrumar?".

A conveniência social de se manter mulheres ocupadas cuidando de crianças dentro de casa enquanto os homens se dedicam, da porta para fora, a assuntos tidos como mais sérios, como dinheiro e trabalho (considerando que todas as tarefas e a dedicação emocional que envolvem a criação de filhos em geral não merecem essa designação) existe não somente para garantir a manutenção de uma ordem social patriarcal, mas decorre também de razões econômicas, segundo a historiadora italiana Silvia Federici.

A serviço dos maridos

Ela aponta em "O ponto zero da revolução" (Editora Elefante) alguns acontecimentos como decisivos na padronização da ideia de família nuclear como temos hoje: foi depois das epidemias, mortes e lutas proletárias pouco antes da metade do século XIX, na Inglaterra, que tornou-se necessário, para a sustentação do capitalismo, um modelo social mais estável, que garantisse a força de trabalho ativa. Antes disso, homens, mulheres e crianças trabalhavam nas fábricas e praticamente não havia vivência familiar. Mas no momento em que ela passou a existir, já era adequado que as mulheres fossem relegadas ao ambiente doméstico. Elas se ocupavam de cozinhar, criar os filhos, manter a casa limpa e atender às necessidades sexuais dos maridos para que eles seguissem operando as engrenagens de um sistema maior.

Ainda que hoje, seja por escolha, em se tratando de classes sociais mais privilegiadas, seja por necessidade, entre as mais pobres, muitas retomem a vida profissional depois da maternidade, é sempre uma mulher quem assume o trabalho doméstico, acumulando funções ou repassando-as a uma empregada, invariavelmente mais pobre e mais vulnerável do que ela. São raros os casos em que há divisão igualitária de tarefas: os homens são, em geral, poupados.

Entre os casais heterossexuais sem filhos, como é o caso da narradora do romance de Heti e seu namorado Miles, costuma ser mais fácil contornar conflitos envolvendo questões de gênero quando há alguma consciência e disposição masculinas a respeito. Mas a chegada de um filho reconfigura completamente a situação. É inegável que exista uma convocação para a permanência da mãe no lar nos primeiros tempos.

E é esse um dos momentos cruciais da cristalização de papéis entre homens e mulheres que se tornam pais e mães: quem fica mais em casa, torna-se responsável pelo funcionamento dela. E em um mundo em que o trabalho doméstico não é considerado relevante, só vivenciando, por meses, a responsabilidade de cuidar de um bebê, de si, e do próprio ambiente, para compreender e valorizar o que é preciso para que todos estejam alimentados, limpos e com suas necessidades emocionais minimamente atendidas no final do dia. Mais do que execução de tarefas, há planejamento, listas, organização, a chamada carga mental. E ainda são raros os casos em que esse papel é desempenhado pelo pai.

Os resultados são o acúmulo de tarefas, o esgotamento físico e o desgaste no relacionamento liderando uma sequência de frustrações que ainda precisam ser encaradas como o ônus do amor avassalador que a maternidade entrega como um presente exclusivo. Parece totalmente compreensível, portanto, que as que parem para refletir sobre a decisão optem pelo risco de não vivenciar esse tal sentimento que não conhecem em troca da manutenção de suas liberdades e de uma vida mais pacífica com o companheiro.

Há ainda o mercado de trabalho: a lógica da penalidade materna, segundo a qual os homens recebem aumento quando se tornam pais e as mulheres que se tornam mães têm seus salários reduzidos quando conseguem manter seus empregos, é mais um motivo para desencorajá-las. O próprio empreendedorismo materno, que pode parecer a solução milagrosa de uma equação complicada, não passa, muitas vezes, de uma ilusão que isola, esgota e responsabiliza ainda mais as mães por fracassos que não são delas. Ou, simplesmente, de tentativas desesperadas de botar comida na mesa.

Cadê os pais?

O trabalho doméstico é invisível em nossa sociedade. É comum que se associe o lugar da "dona de casa" com o de uma pessoa que não trabalha, já que se trata de uma atividade não remunerada. A organização feminista International Wages of Housework Campaign já reivindicava, nos anos 1970, salários para as mulheres que exerciam as tarefas domésticas como uma forma de torná-las visíveis: a partir do momento que um trabalho é remunerado, pode-se escolher não fazê-lo. E o que acontece se isso se dá?

É difícil imaginar transformações, em relação a esse assunto, que não passem por trocas de postos: (algumas) mães já experimentam, mesmo que em outras condições, lugares de poder. Agora os pais precisam cuidar. E sim, pode-se acrescentar à lista de motivos para isso o fato de que há muitos benefícios emocionais para a criança. Mas é preciso que eles assumam a gestão da casa, compartilhem a carga mental, reconheçam a importância de fazer a lista de compras pensando no cardápio da semana, higienizem os legumes e verduras, verifiquem se as roupas das crianças ainda servem... (a lista é grande demais para caber aqui).

Mães arrependidas ou mulheres impedidas?

Em "Maternidade", a narradora compartilha memórias de uma infância em que o pai exercia a maior parte das funções de cuidado e a mãe, médica, chegou a viver por alguns meses sozinha em um apartamento para que pudesse se concentrar nos estudos para as provas da residência. "(...) não raro encontrava minha mãe sentada na cama sob as cobertas, com canetas e marca-textos ao seu redor, grifando passagens nos mais pesados manuais de medicina (...) Não parecia haver nada no mundo tão romântico e heroico quanto uma mãe que vive sozinha em um apartamento, com seus livros e canetas coloridas. Eu queria ser como ela quando eu crescesse".

A sugestão de que talvez essa mulher não quisesse ter sido mãe aparece em alguns momentos ao longo do livro. Mas antes que se chegue a essa conclusão, cabe a reflexão sobre a recusa social em aceitar que as mães têm interesses, desejos e objetivos que não passam por seus filhos. E que sem a figura de um pai que abre mão de parte da sua individualidade para que haja algum equilíbrio, como na passagem transcrita acima, nenhum deles será contemplado.

Mas, para além de todos os motivos oriundos do pacto social que isola e desumaniza as mães, é fundamental que se considere, para as mulheres na mesma medida em que para os homens, a diversidade de caminhos que podem ser trilhados ao longo de uma vida. Qual o problema de se optar por um percurso sem filhos? Fiquemos com mais uma provocação do livro de Heti: "O problema mais feminino que existe é não se conceder tempo ou espaço o bastante, ou não se permitir isso, nos concedemos os menores lotes de tempo para, mal e parcamente, existirmos. Deixamos que todos nos ocupem. Ter um filho soluciona esse ímpeto de não se dar nada. Transforma esse ímpeto em virtude. Se alimentar por último por abnegação, se encaixar nos menores espaços na esperança de ser amada - isso é algo inteiramente feminino."