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Mulheres protagonizam um mundo em evolução


Ciúme do namoro da filha: "Meu pai me ofendia com o revólver do lado"

Mulheres relatam conflitos em casa e até agressões por parte de seus pais - Getty Images/iStockphoto
Mulheres relatam conflitos em casa e até agressões por parte de seus pais Imagem: Getty Images/iStockphoto

Jacqueline Elise

Da Universa

19/06/2019 04h00

Há algumas décadas, era muito comum a frase "meu pai não me deixa namorar". Os tempos mudaram, as mulheres conquistaram a independência e muitos homens já cresceram sabendo que, quando tiverem filhas, a mulher poderá, sim, escolher seu parceiro.

Mas há exceções. Homens que agem de maneira possessiva e impedem as filhas de viverem suas relações. Alguns podem ter fim trágico, como o do ator Rafael Miguel e de seus pais. Segundo relatos, o pai da namorada do rapaz matou sua família porque não queria aceitar que a filha tivesse um parceiro. A investigação, aliás, apurou que o comportamento não se restringia à relação da filha. Ele também a impedia de ir à escola e agredia a esposa. Segundo o advogado, a garota está com estresse pós traumático.

A tragédia que envolveu a família de Rafael pode ser considerada o extremo do ciúme. Mas ainda há pais que tratam sua família, especialmente as filhas, como objeto de posse e as proíbem ao máximo de se libertarem de suas relações -- e ninguém garante que, numa briga mais tensa, algo muito grave não aconteça.

"Ele falou comigo com o revólver do lado"

A balconista Letícia*, 23, conta que desde a infância lida com o comportamento agressivo e ciumento do pai.

"Ele falava que eu poderia morrer por tiro, que homem não prestava. Meu pai e minha mãe se divorciaram quando eu tinha 15 anos, e ele reclamava para ela que eu estava me 'arrumando demais' para sair, que eu provavelmente tinha um namoradinho. Tive muito problema com relacionamentos por não saber confiar nos outros, achar que as pessoas tinham a mesma índole do meu pai. Isso afeta a vida de uma mulher", conta.

Letícia também relata que o pai foi agressivo com ela mais de uma vez: quando ela tinha 8 anos, tentou enforcá-la por ter corrido para a sacada do prédio onde moravam. Aos 19, foi morar com ele para tentar entrar na faculdade (o pai morava em uma cidade do interior onde ela gostaria de estudar) e ele a agrediu de novo.

"Ele chegou em casa gritando para eu lavar a louça e eu disse 'já vou'. Ele não gostou do meu tom e tentou me enforcar. Como eu sabia lutar, o tirei de cima de mim. Saí chorando e fui dormir na casa de uma amiga. No outro dia, ele me ligou com um tom ameaçador, falando que queria conversar comigo. Quando cheguei em casa, tinha deixado o revólver dele do lado, me disse coisas horríveis, como se eu fosse uma vagabunda". Hoje, Letícia conseguiu sair da casa do pai e mora com o namorado.

"Ele não suportava a ideia de eu namorar, ficava sem falar comigo"

A vendedora Marília*, 23, percebeu que seu pai era possessivo quando ela tinha 14 anos -- ela queria sair com os amigos e não podia. "Ele achava que não eu não poderia ter amigos homens, que todos só queriam abusar de mim. Então ele só deixava eu sair com meninas", conta. Quando ela teve seu primeiro namorado, aos 17, a situação se intensificou.

"Ele não suportava a ideia de eu namorar, ficava sem falar comigo e às vezes até me humilhava. Não deixava eu dormir na casa de namorado e vice-versa. Foi me dar liberdade somente aos 20 anos, mas até hoje não respeita meu atual relacionamento". Ela conta que só conseguiu se libertar quando ela o peitou e começou a trabalhar. Mas não sem represálias: ele ficou três meses sem olhar na cara dela, mesmo morando na mesma casa. "A gente brigou muito mesmo, tudo porque ele achou que meu ex estava tomando o lugar dele", explica.

Marília conta que não chegou a morar com a mãe e que ela fica distante da situação, mas vive também com sua madrasta, que a defende. Ela pretende se estabilizar com seu emprego para, enfim, poder sair da casa do pai. "Hoje ele aceita que meu namorado durma aqui e eu lá. Mas toda vez que ele vem, meu pai começa a me tratar mal".

Há diferença entre se preocupar e controlar a filha

Yuri Busin, psicólogo e doutor em neurociência do comportamento pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e diretor do Centro de Atenção à Saúde Mental - Equilíbrio (CASME), afirma que "ser possessivo não necessariamente tem a ver com comportamento agressivo", mas que, mesmo quando os pais sabem que a filha consegue cuidar de si, eles querem colocá-la em uma espécie de redoma.

"Geralmente, esse comportamento é mais ligado a um receio enorme de algo acontecer com os filhos. Infelizmente, ainda existe uma confusão por parte dos pais, que muitas vezes protegem tanto os filhos que essa criança fica emocionalmente dependente deles. A gente precisa criar os filhos para que eles consigam viver sozinhos, ensinar isso desde a infância", explica.

Marina Vasconcellos, psicóloga, psicodramatista e terapeuta familiar pela PUC-SP, explica que uma coisa é se preocupar com o assédio ou abuso que as filhas possam sofrer; outra é achar que prendê-las em casa é a melhor solução.

"Esse nível de controle, que pode chegar à agressão, ao assassinato, já é doença: chamamos de ciúme excessivo, que muitas vezes a pessoa precisa até de medicação porque pode haver uma depressão em jogo, uma ansiedade. Será que esse pai teve uma criação complicada na infância? Ele está projetando a própria imagem dele nos homens da vida dessa filha? Tem várias questões por trás do que está causando isso, mas sobretudo é um descontrole emocional".

Que consequências isso traz?

Marina cita quais são as consequências mais comuns para filhas com pais controladores:

  • Têm dificuldades de criar mecanismos de defesa: com tanta proteção, elas não conseguem arrumar alternativas e soluções fáceis para os problemas da vida;
  • Não têm chances de errar: qualquer equívoco pode ser passível de punição para esses pais. Os castigos podem vir em forma de broncas frequentes, grosseria e até mesmo agressão em casos mais extremos;
  • Recebem um mau exemplo de masculinidade: as filhas podem crescer achando que todos os homens vão repetir o comportamento do pai, e que ser controlador é uma característica normal da masculinidade;
  • Elas não conseguem criar maturidade emocional: pessoas que crescem em lares muito autoritários podem desenvolver uma dependência emocional aos pais, o que dificulta o processo de se livrar da relação controladora;
  • Filhas de pais possessivos têm mais chances de se rebelarem: em matéria publicada na revista "Scientific American", em 2014, estudos mostram que mulheres que tinham lembranças desagradáveis de seus pais estavam mais propensas a se envolver em comportamentos sexuais de risco. O comportamento controlador, ao invés de colocar as filhas "na linha", pode influenciá-las a quebrar as regras;
  • Podem criar padrões de relacionamentos tóxicos: inconscientemente, as mulheres filhas de pais controladores acabam entrando em relações nada saudáveis por não conseguirem identificar, imediatamente, o comportamento controlador. Outra possibilidade é que elas não consigam se relacionar, desenvolver ojeriza à ideia de se envolver com outro homem.

Quebrar o ciclo é complicado, mas necessário

Não é fácil romper com uma relação tóxica ou abusiva, ainda mais se a parte problemática da relação é um pai ou alguém com quem a pessoa mora. Mas os especialistas listam mecanismos de defesa que podem ser adotados:

"Mentir nunca é uma boa ideia, isso só provoca mais raiva no outro, e bater de frente pode piorar a situação", diz Busin. Para lidar com conflitos, é necessário manter a calma e procurar soluções, para que os pais entendam que a filha tem o direito de se impor também.

Marina ressalta que o ideal seria buscar uma terapia familiar e que o pai possessivo pudesse buscar apoio psicológico, mas ela entende que isso pode ser difícil.

"Se a filha puder se cercar de pessoas que podem ajudá-la, que tenham influência sobre o pai ou que possam ouvi-la, já é um caminho. Pedir ajuda para mães, amigos, parentes próximos, que possam tentar convencer o pai a ir se tratar, ou que pelo menos possam oferecer algum refúgio se for necessário. E o mais importante é essa mulher arrumar meios de sair de casa, e tentar se colocar de forma tranquila, mas firme, enquanto ainda estiver em casa".