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Mês do Orgulho LGBTQ+

Ex-evangélico, hoje Samuel Gomes ajuda outras pessoas a saírem do armário

Samuel Gomes - Divulgação
Samuel Gomes Imagem: Divulgação

Luara Calvi Anic

Colaboração para Universa

15/06/2019 04h00

Há quatro anos, o youtuber Samuel Gomes, do canal Guardei no Armário, grava relatos de homens e mulheres gays que se assumiram para o mundo. Nos programas, há histórias dramáticas envolvendo traumas, repressão dos familiares, tentativas de suicídio, quebras de amizade e também da vida depois disso tudo -- de maneira geral, mais leve e distante da escuridão de um armário de portas fechadas.

Em um dos episódios do canal, Samuel também manda um recado para as mães de filhos homossexuais sobre a importância do amor incondicional. "O maior medo dessas pessoas é perder o amor da família, principalmente dos pais. Uma coisa é você sofrer preconceito mas chegar em casa e receber um abraço da família, ouvir alguém que fale que vai ficar tudo bem. A outra é não ter esse apoio. Quando não tem isso há um grande medo da solidão, de ser rejeitado", diz à Universa. Um dos episódios com mais visualizações é o que Eduardo Camargo e Filipe Oliveira, do canal Diva Depressão, relatam essa experiência com os pais.

Aos 31 anos, Samuca, que também é designer gráfico, palestrante e cuida de todo o visual do projeto, irá relançar seu livro "Guardei no Armário" (editora Paralela) no próximo semestre. No texto, ele relata a sua própria experiência como ex-evangélico e membro de uma igreja que não aceita homossexuais. "A parte que mais pesa para aqueles que querem sair da religião e viver como LGBTQ+ é o fato da igreja colocar um terrorismo muito grande de que, fora dela, a sua vida vai ser um caos. Só que as pessoas que estão lá não entendem que a vida humana já é um caos", diz.

Samuel Gomes - Divulgação - Divulgação
Imagem: Divulgação

Foi a partir desses questionamentos em relação a postura da igreja que o paulistano começou a fazer movimentos em busca de um novo caminho. Aos 21 anos, marcou sessões com uma psicóloga e passou a frequentar o Projeto Purpurina, criado pela ong GPH (Associação Brasileira de Pais e Mães de Homossexuais) para dar apoio a jovens LGBTQ+.

"Lá eu percebi que não estava sozinho, que muitas pessoas passavam pela mesma coisa do que eu". Aos poucos, conseguiu dividir sua realidade com a irmã, que o apoiou, e depois com os pais que, embora resistentes num primeiro momento, acolheram o filho. O Guardei no Armário surgiu desse processo. "Saí do armário, mas não joguei meu armário fora. Nele, comecei a guardar várias coisas que fui aprendendo antes e depois de me assumir", diz.

Há dois meses, Samuca veio a público dar um recado ao deputado Douglas Garcia (PSL), que se revelou gay, porém contrário ao movimento LGBTQ+: "Se a gente não fizesse barulho, nem você estaria onde está hoje", disse ao político por meio do seu Instagram. Pelo seu ativismo, Samuel é um dos indicados ao 19º Prêmio Cidadania em Respeito à Diversidade LGBT+, organizado pela Parada Gay, evento que acontece dia 23 de junho, em São Paulo. Confira a seguir a conversa com a Universa.

Universa: Qual a importância de sair do armário para a população LGBTQ+?

Samuel Gomes: Costumo dizer que nascemos duas vezes: do ventre que gerou e a partir do momento em que falamos da nossa sexualidade abertamente para os pais. Esse momento é importante porque muitas vezes vivemos um personagem. Aqueles que nos criaram projetam em nós o que gostariam de ser, não nos veem como pessoa independente, que vai descobrir como quer viver. Acredito que a população LGBTQ+ seja a única que acaba descobrindo que o amor incondicional de fato não existe.

Por quê?

Porque as pessoas homossexuais que se assumem acabam ouvindo de pais e mães 'ah, eu não queria que você fosse gay. Eu acho que você vai para o inferno. Eu não te aceito assim. Você vai morrer sozinho'. São frases que fazem você se questionar se esse amor incondicional realmente existe. Ouço pessoas que querem se matar porque os pais não aceitam, ou que apanham todos os dias, acordam com o pai dando a cinta na cara porque assumiu que é LGBTQ+, relatos de pessoas sendo expulsas de casa.

O que você diria para quem ainda não aceita essa população?

Enxergue o outro como ser humano, em toda a sua totalidade. Ninguém escolhe ser gay, a pessoa escolhe falar que é gay para que possa viver plenamente, com respeito e dignidade. É uma comunidade que vive à base do medo: de ser morto, de ser espancado, de ser jogado para fora de casa, de morrer sozinho, de nunca encontrar um amor.

Qual a sua principal proposta com o canal e com o livro?

O que tento fazer é mostrar que aquilo que a pessoa está contando é real: os choros, as situações de não-aceitação. Sair do armário é um processo traumático, doloroso, solitário. Quando pastores, pais, políticos falam que é errado ser homossexual, que é falta de apanhar em casa ou quando você começa a ver essas pessoas sendo mortas -- e do jeito que são mortas -- entende que a sociedade nos enxerga como uma abominação.

E especificamente quando uma pessoa LGBTQ+ negra sai do armário?

Fica muito mais pesado. O que se espera do homem negro? Que ele seja másculo, que tenha filhos, que seja viril e todos esses estereótipos. E então a gente começa a analisar como o homem negro e gay é representado na mídia: nos anos 1990, a gente tinha a Vera Verão, interpretada pelo Jorge Lafond (ator, 1952-2003). Era o único negro e gay que levava essa desconstrução de gênero para um programa em rede nacional, o A Praça é Nossa. Fazia sucesso no país que mais mata LGBTQ+, mas estava em um lugar de chacota, de riso, de colocar para baixo.

Como era a sua relação com a igreja que frequentava?

Eu não tinha meus dreads, por exemplo. Usava o cabelo bem raspado porque a igreja evangélica tem uma regra de vestimenta. Era tão rígido que, nos cultos, as mulheres sentavam de um lado e os homens do outro. Minhas tias tinham que alisar os cabelos na chapa quente porque cabelo black não era aceito.

Você dividia com alguém da igreja o fato de ser homossexual?

Em nenhum momento eu falava sobre a minha sexualidade, embora eu soubesse que era gay desde os 6 anos. Eu ia à igreja todos os dias de terno e gravata, suando. Só queria ir para o céu. Orava todas as noites pedindo para que eu não amanhecesse com vida ou que eu amanhecesse hétero. E isso é muito ruim, imagina uma criança crescer com medo? Pesquisas mostram que pensamos em nos matar cinco vezes mais do que pessoas heterossexuais. É uma pressão muito grande.

Como você conseguiu sair do armário?

Quando eu ainda estava no processo de tentar me entender tinha uma menina da igreja que gostava de mim, mas eu não conseguia ter nada com ela. Eu já estava trabalhando como designer e tinha convênio médico, passei por um psiquiatra e pedi um remédio para ser hétero. Ele disse que não era bem assim, que ia me encaminhar para uma psicóloga porque hoje em dia a sociedade entende que não é uma doença e que eu poderia ter minha vida plena e feliz. As sessões com a psicóloga foram fundamentais para que eu pudesse existir e me entender. Foi a primeira vez que eu tive alguém para falar que eu sou gay.

E como foi contar para a sua família?

Eu levei minha irmã para conhecer uns amigos que eram gays e na volta para casa falei 'acho que deu para você perceber que eu sou gay, né?'. E ela 'e quem não sabe?'. Na época, eu ia muito para a balada e meus pais estavam preocupados. Sempre fiz questão de trazer meus amigos gays em casa, não escondia. Comecei a introduzir o assunto só que percebi que eles não estavam entendendo a mensagem. Morria de medo do meu pai porque ele sempre foi muito rígido, muito machista, minha mãe sempre muito condescendente.

E como foi contar para ele?

Uma noite fui no quarto deles, sentei na beira da cama e meu pai falou ' você não acha que já está na hora de você casar, de ter sua própria vida?'. Eu falei 'não, não quero me casar porque eu não gosto de mulher'. Aí foi aquele silêncio, o olho do meu pai encheu de lágrima, ele começou a tremer e minha mãe remediando. Antes de eu ir embora do quarto ele falou 'como eu sou um servo de Deus, dentro do mesmo teto a gente não vai poder ficar'. E aí fui para quarto, mandei mensagem para os meus amigos pedindo ajuda para procurar uma casa para alugar.

Como sua irmã te ajudou nessa?

Ela botou meus pais para assistir "Oração para Bob" (2009), um filme sobre um menino gay de uma família evangélica. Os pais não querem que ele seja gay e ele acaba se matando. Enquanto eu estava procurando onde morar minha irmã estava salvando minha vida. No fim do expediente, meu pai me ligou e disse que ia me buscar no trabalho. Chegamos em casa e ele disse 'eu posso não entender o que você está passando, mas eu te aceito porque a gente construiu esta casa e esta família juntos. Como eu posso não amar você que é meu filho?' Aquele dia eu chorei feito uma criança. Foi o primeiro abraço verdadeiro que dei no meu pai porque até então eu não me sentia verdadeiro e ele também não me conhecia.

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