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"Ainda bem que puxou seu cabelo": o que casais de raças diferentes escutam

Elisa Soupin

Colaboração para Universa

27/05/2019 04h00

Mais do que amor, carinho, brigas e problemas, um relacionamento amoroso e afetivo entre pessoas de raças diferentes traz à tona uma característica comum: em todos os relatos ouvidos por Universa, a questão racial esteve, de uma forma ou de outra, presente e marcou o curso dessas relações.

"O racismo, por ser estrutural, é o tangenciador de todas as relações sociais. Está acima de qualquer relação que se possa estabelecer, seja familiar, profissional ou afetiva. Toda relação é atravessada pelo racismo. Quando você se relaciona com uma pessoa de outra raça, parece que muitas vezes existe um esquecimento nas relações afetivas de que há a diferença entre elas e, na verdade, o racismo está visivelmente na melanina e, principalmente, no nosso consciente. A subjetividade é comprometida pelo racismo", explica a filósofa Katiusca Ribeiro, professora da UFRJ e doutorando em Estudos Africanos.

A seguir, Universa conta histórias para pensar nas idiossincrasias das histórias de amor, que são comuns para pessoas que se relacionam com alguém de outra raça.

'Éramos crentes e ele gozou e terminou comigo'

"Eu tinha 19 anos e Vinícius* era branco e foi meu primeiro namorado. Hoje percebo que, além do racismo, houve outros preconceitos naquela relação. Eu era muito evangélica. Isso foi uma questão também. Ele era evangélico, mas da Igreja Batista, e eles enxergavam os neopentecostais com muito desdém. Ele sempre foi classe média, viajava, e eu sou negra e de comunidade.

Ele já tinha comentado que a família dele era racista, fazia piadinhas. Um dia, no telefone com ele, ouvi a mãe dele falando que não queria me conhecer. Fiquei muito mal, mas ele insistiu, e eu acabei indo almoçar na casa dele para ser apresentada. Na época, eu alisava o cabelo, e fiz uma superchapinha, escondi minhas tatuagens, coloquei uma roupa nada a ver comigo. Quando eu cheguei lá, foi horrível. A mãe dele estava obviamente muito desconfortável com a minha presença, ficou calada, mal me olhava.

Ela brigou com ele no dia. A gente seguiu namorando e, como a gente era crente, não fazia sexo. Uma vez, contei para ele que um outro cara já tinha feito sexo oral em mim, e ele terminou comigo, fiquei arrasada. Acabamos voltando. Chegou uma viagem para um congresso da igreja e a gente já estava com muito fogo e resolveu ficar em um apartamento separado, só nos dois. E, na primeira noite, ele forçou muito a barra para eu fazer sexo oral nele. Eu fiquei com muita raiva, porque não queria que fosse daquela forma. Ele gozou e terminou comigo.

Hoje vejo que fui muito sexualizada. Ele me deixou sentindo muito culpada. Eu chorei muito, pedi desculpas! Ele me deixou lá sozinha, foi para a casa de um amigo. Apesar de ele ter sido quem insistiu, senti como se a culpa fosse minha, pensei que eu era muito safada e tinha desviado ele, que queria ser pastor, e eu tinha atrapalhado.

Eu vi depois, no Facebook dele, que ele já estava de conversa com uma menina branca. Ela era de classe média, de família batista, tinha estudado fora, a menina perfeita que a família dele queria. Eles ficaram junto um tempão. Nenhum cara negro com quem me relacionei antes ou depois nunca me tratou assim'", conta a produtora Marcela Lisboa, de 28 anos.

'Ainda bem que a sua filha puxou o seu cabelo'

"Eu já tive relacionamentos com homens negros e brancos, mas prefiro me relacionar com negros, porque fui percebendo que é mais fácil para eles entenderem opressões como machismo, por exemplo. Tive um ex-namorado com quem fiquei três anos, ele era negro com traços característicos: lábios grossos, nariz largo, mais de um 1,90. Era do movimento negro e bem radical. Volta e meia eu escutava que era 'bonita demais' para ele. Morria de raiva.

Sou vista como branca por ter cabelo liso, mas tenho uma linhagem muito indígena. Mesmo assim, era vista como demais para um negro, que no fundo era o que essa frase queria dizer.

Gabrielle Cotrim com o marido Fausto e a filha, Liz - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Imagem: Arquivo Pessoal

Hoje, sou casada com outro negro. Ele é muito diferente do meu ex, não problematiza racismo. Foi criado em um bairro de classe média e, por conta da ascensão social da família, estudou em escolas particulares e todos os amigos e ex-namoradas dele são brancos.

Então, ele nunca nem esteve muito por dentro dos debates da militância, é um cara muito tranquilo que procura não se aborrecer com racismo. Uma vez, meu marido estava em uma loja cara comprando roupa e um vendedor falou para ele aproveitar a promoção para revender no morro, assumindo que ele morava na favela. Desde então, ele só compra pela internet.

Temos uma filha, a Liz, de um ano, e a gente ouve coisas do tipo 'ai, ainda bem que ela puxou o cabelo mais como o seu, né?', fico muito irritada, ele não se importa muito. Acho que, afinal, o incômodo com o racismo é maior em mim, que estou mais ligada na militância, do que nele, que nunca foi muito próximo desses assuntos", conta a socióloga Gabrielle Cotrim, de 29 anos.

'Ouvi que estou traindo minha raça por namorar um branco'

"Eu sou casada há 13 anos com o Bruno, que é branco. Quando a gente começou a se relacionar, eu nunca tinha ouvido falar em termos como palmitagem. Hoje em dia, sou taxada disso.

Ele morre de rir dessas coisas, fala que vou trocar ele por um negão. Já escutei de gente de dentro do movimento negro que eu estou traindo a minha raça, porque eu milito pelas pautas de igualdade racial, mas sou casada com um branco. Já me falaram que eu estava com ele por grana, sendo que meu marido não me banca, mas se bancasse: e daí? Na verdade, ele ganha menos que eu há muito tempo.

Tassia e Bruno: ela é criticada por estar com um branco - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal

Parece que não importa tudo que a gente passou, o fato dele ser um homem incrível e empenhado em me fazer feliz diariamente, um grande companheiro. Para algumas pessoas do movimento, devo me divorciar dele para fazer com que outros pretos fiquem bem consigo mesmos.

Se há 15 anos meus ex-namorados pretos tivessem me tratado com respeito, eu nem teria dado a chance para o meu marido ficar comigo, mas meus exs me trataram pior que lixo -- teve até um que falou na minha cara que ia terminar comigo para tentar ficar com a amiga branca loura, mas se não desse certo, a gente voltava. A errada sou eu? Mulher preta não palmita, nem tem esse direito de escolha, ela é deixada de lado, então qual mulher preta vai abrir mão de um cara que a trate ela bem, leve para sair, para ficar esperando o príncipe negro no cavalo branco?", Tássia Di Carvalho, de 33 anos, dona de uma agência que trabalha com ações de impacto social.

'Imagina esse novinho aguentando o negão'

"Eu namoro com o Arthur há três anos e meio. Eu tenho 27 e ele tem 21. Quando começamos, nem eu nem ele éramos assumidos. Então a família dele teve dois choques. Primeiro: meu filho é gay. Segundo: meu filho namora um homem negro. A mãe dele inclusive fez um comentário tipo 'é, você gostou de um pretinho'.

Mostrou um desconforto da parte dela, com, além dele ser gay, me namorar. Eu também já precisei explicar para família dele como o racismo acontecia, porque eles achavam que racismo era só alguém chamar o outro de macaco.

Lucas com Arthur: gays e de raças diferentes - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal

Eu percebo muito a hipersexualização do corpo negro no meu relacionamento. Quando a gente está em uma festa, as pessoas olham e comentam que eu sou o ativo da relação. No carnaval, rolou uma situação surreal: a gente estava na fila para comer e um cara totalmente desconhecido falou 'olha, o negão e o novinho, eu fico imaginando o que esse novinho aguenta".

Como branco, o Arthur também nunca tinha passado por certas coisas que são comuns para mim. Chegar em um lugar e chamar a atenção do segurança, que se aproxima, foi uma coisa que ele passou a notar. Outra é que em um restaurante caro, a conta é sempre direcionada a ele, e nunca a mim. Em lojas caras, ele é sempre atendido primeiro. Nos lugares em que vamos, sou sempre um dos poucos negros. Essas situações acabam sempre marcando a relação", conta o administrador de empresas Lucas de Jesus, de 27 anos.