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Violência doméstica não é caso exclusivo de polícia, afirma pesquisadora

Amanda Sadalla trabalha com mulheres vítimas de violência doméstica: "Elas vão morrer se não fizermos nada" - Isabela Rechtman/ Divulgação
Amanda Sadalla trabalha com mulheres vítimas de violência doméstica: "Elas vão morrer se não fizermos nada" Imagem: Isabela Rechtman/ Divulgação

Manuela Rached Pereira

Colaboração para Universa

21/05/2019 04h00

"Lá, eu só abri o BO e vim embora para casa com duas folhas na mão. Depois disso, ainda continuei sofrendo agressões várias vezes. Quem vai em delegacia denunciar agressão sai pior do que quando entra, você se sente humilhada"

O relato acima é de Maria*, 39, moradora da zona sul de São Paulo, que sobreviveu a agressões físicas e psicológicas. Foi para mudar a história de mulheres como ela que a jovem pesquisadora e administradora pública Amanda Sadalla, de 23 anos, entrou de cabeça no assunto quando tinha apenas 18 anos.

O interesse de Amanda por auxiliar vítimas de violência doméstica começou muito cedo. "Durante dois anos eu não consegui frequentar a escola porque tive síndrome do pânico causada por um trauma que sofri na infância", conta ela, que prefere não mencionar o que viveu. "Durante esse tempo, me sentia muito sozinha e não via que tinha espaço para conversar com outras crianças sobre o que eu sentia. Quando voltei para a escola, decidi dedicar a minha vida para evitar que outras pessoas se sentissem sozinhas como eu e para ajudá-las a lidar com seus traumas. Não quero que ninguém sofra para o resto da vida com a violência realizada por outra pessoa", conta.

Na faculdade, o interesse aumentou

Ela diz que desde a faculdade muitas alunas que sofreram violência de gênero iam falar com ela. "E eu me perguntava: como posso ajudar? Fui atrás disso. Fui entender os serviços que poderiam atender quem não poderia pagar por uma psicóloga, por exemplo", ela diz.

Nesse período, foi trabalhar em uma escola localizada em uma área onde há muita exploração sexual infantil. Um dia, acompanhava a aula de uma turma de oitavo ano em que os alunos não prestavam atenção na professora. A diretora perguntou para ela como poderia exigir que uma aluna preste atenção em uma aula de matemática, enquanto, em casa, ela sofre abuso sexual. "Foi aí que entendi que me dedicaria a unir duas coisas: os direitos humanos e a educação".

A vontade de ajudar os outros foi direcionando seu caminho: ao ouvir o relato de uma mulher vítima de violência que havia sido maltratada na delegacia, decidiu que daria palestras para policiais. "Entendi que não adianta só criticar os policiais, precisaria ensiná-los, pensar junto, construir junto".

"É cansativo e tem momentos que desabo. Mas escuto uma garota de 15 anos dizer que entendeu que o que aconteceu com ela é uma violência e ela não tem culpa. Aí todas as dificuldades valem a pena".

Ela estudou e trabalhou na área de gênero nos últimos cinco anos. Isso inclui experiências na Coordenação de Políticas para as Mulheres, da Prefeitura de São Paulo, e no Grupo de Atuação Especial de Enfrentamento à Violência Doméstica, do Ministério Público paulista. Sadalla diagnosticou que, se para alguns segurança pública é caso exclusivo de polícia, quando se trata de crimes de violência doméstica, o buraco é sempre mais embaixo.

Nem a vítima entende o crime

"Não é como qualquer outro tipo de violência em que a pessoa chega na delegacia e diz que quer seu agressor preso, porque geralmente esse agressor é seu próprio marido e ela não entende que o que está sofrendo é crime. A conduta é outra e a solução não passa pela cadeia, pela polícia, mas principalmente por áreas de assistência social e atendimento psicológico", argumenta a pesquisadora.

Hoje, a administradora pública vem percorrendo o sudeste do país dando oficinas de combate à violência contra a mulher e exploração sexual infantil para alunos do ensino fundamental de escolas públicas e particulares. Em São Paulo, promove aulas de formação a delegados e agentes de saúde sobre atendimento e gestão pública em casos de violência doméstica.

À Universa, ela falou sobre a sua atuação em delegacias e escolas, as dificuldades enfrentadas pelas mulheres na busca por ajuda e possíveis soluções que vem tentando articular dentro do setor público, entre outras questões. Confira os principais trechos da entrevista:

Por que escolheu trabalhar com violência de gênero ainda tão nova?

Isso surgiu durante a faculdade, quando eu me deparei com dois dados que mostram que, enquanto o Brasil tem a terceira melhor lei mundial de combate à violência contra a mulher, ele é o quinto país com o maior número de feminicídios do mundo. Foi aí que eu entendi que algo estava errado no meio do caminho, pois temos lei e ela não está sendo efetiva. Entender o porquê disso é a minha busca há 5 anos, só que precisamos entender os problemas justamente para tentar achar uma solução. Focando só nós problemas as mulheres continuam a morrer.

O que você descobriu nesses anos de busca?

Primeiro, entendi que violência contra a mulher é, antes de tudo, um problema estrutural e cultural, e que a gente precisa reconhecer que vive numa sociedade em que a mulher entendeu que ser violentada é normal, que faz parte do amor. Eu já ouvi, inclusive de policiais, que eles não conseguem entender como uma mesma mulher sofre violência de vários homens. E é daí que surge o tipo de expressão "parece que ela até gosta". Só que todo mundo sabe que ninguém gosta de apanhar, que ninguém gosta de sofrer. Depois, percebi que não dá para ficar esperando o legislativo e o executivo falarem que se importam. Violência contra a mulher não é prioridade no Brasil e combatê-la dá muito mais trabalho do que qualquer outra política. Então, a gente precisa começar entendendo quem aqui está comprometido e o que a gente pode fazer na prática.

Amanda Sadalla e alunos em escola estadual de SP - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Amanda Sadalla e alunos (Arquivo Oficina Projeto Ta na Hora, do Instituto Liberta)
Imagem: Arquivo pessoal

O que explica essa lógica social de que mulher é agredida porque gosta?

Mulheres que sofrem violência de diversos parceiros seguem um padrão e a psicologia explica. Se você foi criada ou criado num ambiente onde viu que a violência fazia parte do relacionamento, como acontece na maioria dos casos que acompanho, a sua referência será essa, seja você o agressor ou a agredida.

Quem você acompanhou durante os seus anos de pesquisa na área de gênero e o que descobriu?

Entrevistei sobreviventes, delegados, promotoras e defensores públicos para entender porque a nossa lei não estava sendo efetiva. Uma das principais coisas que descobri nesse tempo com eles é que a Lei Maria da Penha diz que é preciso criar redes de apoio que integrem serviços públicos de atendimento às mulheres, mas que elas continuam morrendo porque a lei não diz de quem é a responsabilidade. Ou seja, é preciso que esteja na lei quem paga, como paga e sob a responsabilidade de quem.

Como deveriam funcionar essas redes de apoio?

Hoje, as políticas públicas em boa parte dos municípios brasileiros ainda são pensadas em caixinhas. A assistência social pensa a sua própria política, a educação, a sua própria política, e a segurança pública, a mesma coisa. Mas quando se trata de violência doméstica, precisamos entender que é um problema social e estrutural como tantos outros no país, e que, nesse caso, afeta diversas áreas da vida da mulher e a solução não está em uma só área de atendimento. Por isso, a primeira coisa que a gente tem que investir é em redes com políticas compartilhadas para que diferentes setores pensem nelas juntas.

Por que isso ainda não acontece?

A gente não investe nisso, principalmente, porque passa por um diálogo que não é fácil de articular. Não é fácil uma secretaria de educação articular com uma secretaria de segurança, por exemplo, porque são áreas diferentes com prioridades e lógicas diferentes. Além disso, falta vontade política de enfrentar esse problema, que é complexo e dá trabalho.

E como enfrentar na prática essa violência, que é tão estrutural e cultural?

Primeiramente, se estamos lidando com um problema complexo e multidisciplinar, a gente precisa articular soluções complexas e multidisciplinares. Casos de violência doméstica não encontram solução do dia para noite e muito menos em uma delegacia, como espera-se que aconteça hoje. Isso porque por mais que o agressor vá preso, pode ser que no dia seguinte a mulher queira voltar com ele. Primeiro, porque ela pode estar sendo manipulada e, depois, porque essa mulher depende de muitos outros fatores que vão além da prisão de seu agressor.

Quais fatores?

A violência doméstica afeta a saúde e o psicológico da mulher, pois ela vive em situação de constante estresse e medo, além dos casos que envolvem agressões físicas. Afeta também a educação de seus filhos, que convivem diariamente com a violência dentro de casa e isso acaba interferindo no desempenho deles e na forma como se relacionam na escola. Afeta ainda a situação financeira dela, que muitas vezes depende do agressor para se sustentar. Por isso, precisamos entender de uma vez por todas que a violência doméstica não é como qualquer outro tipo de violência em que a pessoa chega na delegacia e diz que quer seu agressor preso, porque geralmente esse agressor é seu próprio marido e ela nem entende que o que está sofrendo é crime. A conduta é outra e a solução não passa pela cadeia, pela polícia, mas principalmente por áreas de assistência social e atendimento psicológico. E trazer essa transformação de mentalidade pro poder público é o nosso grande desafio hoje.

Como você vem atuando com o setor público para mudar esse cenário?

Parte do meu trabalho hoje é capacitar delegados e agentes de saúde para fazer com que eles entendam que aquela mulher está vivendo num ciclo não só de violência, mas também de dependência. Isso porque, tradicionalmente, o policial é capacitado para fazer atendimento policial e para investigar. O médico sabe fazer diagnósticos, sabe operar. O educador, educa. E a gestão? Não está nessas carreiras, ou está muito pouco.

O que você quer dizer com gestão?

O que eu quero dizer é que o delegado não foi treinado para saber como ele se articula com outras áreas, ele foi treinado para investigar um caso. O médico a mesma coisa. Então, o meu papel é estimulá-los a formar redes de apoio às mulheres. Eles precisam entender que, antes de tudo, essa mulher agredida precisa se enxergar capaz de viver sem aquele homem e saber que existem outras saídas pra ela, como centros de referência e abrigos. Para isso, é necessário que tanto os delegados, como profissionais de outros setores, como o da saúde, busquem articular essa rede dentro de sua própria área de atuação.

E nas escolas, como se dá a sua atuação?

Nas escolas, além de oficinas sobre exploração sexual infantil, eu faço um trabalho voluntário de levar a crianças de 10 a 14 anos o que é violência contra a mulher e quais suas raízes. Com eles, eu uso teatro, simulações de casos, música, rodas de conversa...Lá, eu também peço pesquisas sobre onde elas podem buscar ajuda, porque são elas que tem que conhecer seus territórios e espalhar para as outras onde ficam esses centros de apoio e como elas procuram ajuda. Nas escolas, não tem uma oficina onde no final um aluno ou aluna não vem me relatar um caso de violência e me pedir ajuda.

Por que você escolheu atuar nessas três pontas; segurança pública, saúde e educação?

Porque delegacias, hospitais e escolas são os três lugares onde mais se diagnostica as violências. Também porque, se eu preciso criar redes, eu preciso atuar em rede. Ou seja, para dizer ao policial que ele precisa contatar a Unidade Básica de Saúde, eu tenho que entrar na UBS para entender como ela funciona, colocá-los em conjunto. Não adianta falar para polícia criar redes se eu não tenho ideia de como a saúde e a educação funcionam. Quando eu digo que amo trabalhar em escolas e delegacias ao mesmo tempo é porque eu incentivo a criança a denunciar, mas eu também formo quem vai receber essa denúncia. Eu tenho que confiar muito em quem vai receber a denúncia dessa criança.

As minhas aulas não são para falar de utopia, mas de como a gente resolve o que não está funcionando

Qual a realidade dos municípios em que você atua no que tange a violência doméstica?

Não há um padrão, a gente precisaria investigar o que cada município precisa, mas num cenário geral a gente precisa investir mais em assistência social.

Em São Paulo, o que falta?

Em São Paulo até existe uma rede que integra os setores públicos, mas o que a gente tem na cidade é uma falta de investimento financeiro nessa rede, porque aqui a gente não tem abrigo o suficiente e carece de profissionais para atenderem em serviços municipais da Secretaria de Direitos Humanos e de Assistência Social, como, por exemplo, os Centros de Defesa e de Convivência da Mulher e as Casas Abrigo. Hoje, a gente tem pouquíssimas vagas nesses centros. A Casa Abrigo, por exemplo, é onde a mulher busca se está correndo risco de morte, e o que acontece na grande maioria dos casos é que a mulher que está correndo risco vai procurar a delegacia e, o delegado, se estiver preparado, liga pro abrigo e não tem vaga. A partir daí, já sabemos que se essa mulher for para casa, ela pode morrer.

A quem podemos cobrar esses investimentos hoje no Brasil?

Nos municípios, como é o caso de São Paulo, principalmente do prefeito e do governador. Mas de forma mais ampla, precisamos cobrar o executivo e o legislativo de como estão investindo nessa área, entendendo que todo governante tem um plano de metas com suas prioridades. Temos que cobrar de cada servidor e, principalmente, de cada político que não se compromete em fazer política compartilhada. Eles precisam entender que, para servidores que não encontram redes de apoio e não sabem a quem recorrer, eles só fazem se existir uma vontade pessoal muito forte, se não, não faz. Só que a gente está tratando de um caso em que se você não faz alguma coisa, tem alguém que morre, não estamos falando de um produto que não vai ser entregue, não estamos falando de trânsito, mas de uma pessoa que a gente sabe que vai morrer se não fizermos nada.

*O nome foi mudado a pedido da entrevistada.