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"Minha mãe nunca me amou": relatos de filhas das chamadas genitoras tóxicas

Problema pode ser indício de síndrome da genitora tóxica - Getty Images/iStockphoto
Problema pode ser indício de síndrome da genitora tóxica Imagem: Getty Images/iStockphoto

Priscila Ribeiro

Colaboração para Universa

16/04/2019 04h00

Elas cresceram sendo vítimas de violências psicológicas e físicas dentro de casa, em uma relação de grande dependência emocional com suas mães. A seguir, contam os sacrifícios que fizeram na tentativa de conseguir uma única demonstração de amor materno --em vão, pois são filhas das chamadas mães narcisistas ou genitoras tóxicas.

"Pensei em suicídio"

"Desde muito nova, percebi que minha mãe era diferente da maioria. Nenhum abraço, beijo, carinho, nunca falou um 'eu te amo' ou teve qualquer demonstração de afeto com os filhos. Não tenho nenhuma lembrança dela brincando comigo, minhas memórias são da minha mãe falando que destruí a vida dela, que tinha vontade de me matar. Eu tinha pavor dela. Tudo começou a piorar na minha adolescência, quando meus irmãos saíram de casa e eu, a caçula, fiquei só. Fui muito espancada, humilhada, entrei em depressão e engordei 30 kg. Daí, ela começou a me chamar de gorda, falava que não havia lugar onde pudesse comprar roupa para mim, coisas desse tipo. Tentei estudar fora também, por um tempo, mas não consegui. Apesar do distanciamento físico, ainda não tinha alcançado minha independência emocional. Foram várias idas e vindas na busca desse amor impossível, até meu esgotamento. Não consegui concluir a faculdade, me tornei uma pessoa insegura, infeliz e depressiva. Há um tempo atrás, já não via mais saída e decidi pelo suicídio. Mas me deparei com os vídeos falando sobre o transtorno da minha mãe, que pode ser classificada como narcisista ou genitora tóxica. Foi como um clarão e comecei a estudar o assunto. Num primeiro momento, foi muito difícil aceitar que não havia nada que eu pudesse fazer, mas depois me livrei da culpa e, finalmente, comecei a me preparar para tentar uma vida feliz. Hoje, tenho contato zero com ela e com todas as pessoas que se deixaram intoxicar e se omitiram. Ainda estou em tratamento para depressão e esse vazio existencial causado pela falta de um núcleo familiar emocionalmente estruturado. Mas parei de viver para tentar o amor da minha genitora e passei a cultivar o amor próprio."
Marcela*, 32 anos, agente de viagens

"Minhas memórias com minha mãe são de cobranças e surras"

"Na minha infância, tive mais contato com minha avó materna e uma tia do que com a minha própria mãe, que vinha me visitar a cada 30 ou 40 dias. Por isso, nunca consegui estabelecer um vínculo afetivo com ela. Desde que me conheço por gente, minha mãe nunca foi aquela que contava historinhas, abraçava e beijava os filhos. Ela também não teve isso na infância e, sinceramente, eu me acostumei com a situação. Na realidade, só comecei a sentir a diferença entre a minha mãe e as outras quando eu fui para a escola, observando as relações das outras famílias. As memórias que tenho da minha mãe, na infância, estão sempre relacionadas a cobranças e surras. Eu tinha oito ou nove anos e, se não limpasse a casa enquanto ela saía para trabalhar, apanhava. Tentei me aproximar dela na adolescência, com 13 ou 14 anos, para tirar dúvidas sobre namorados. Mas ela se irritou e não quis me explicar nada. Aos 18, desisti e saí de casa. Comecei a faculdade e ela, em vez de me estimular, dizia que eu não ia aguentar. Até depois que eu me casei ela ia à minha casa para ver se tinha comida feita, se eu tinha lavado a roupa ou limpado a casa. O problema não é só comigo. Tenho uma irmã que sofreu um aborto e a única preocupação da minha mãe, ao saber do ocorrido, é se ela iria perder a cesta básica do do mês, por causa da licença. Ela não foi ao hospital vê-la nem perguntou se estava bem."
Caroline, 24 anos, autônoma

"Minha mãe dizia que, grávida, pulava no chuveiro para ver se me perdia"

"Minha mãe sempre fez questão de dizer, abertamente, que não queria ter engravidado nem de mim, que sou a primeira filha, muito menos da minha irmã. Ela contava que, quando descobriu que estava grávida, pulava no chuveiro para ver se perdia, que havia pensado, várias vezes, em abortar. Deixava claro que 'filho separa casamento', que 'estragamos o corpo dela' e que, a partir do nosso nascimento, ela passou a viver por nós. Isso causou uma grande confusão na nossa cabeça, porque ela se fazia de supermãe, de superprotetora mas, na verdade, vivíamos sob opressão. A sensação era a de um colo vazio. Ela era superficial, não gostava de contato físico, nem de conversar. Lembro de ela limpar o rosto depois de receber um beijo nosso. Quando passei no vestibular, aos 17 anos, em uma faculdade pública, ela me deu um tapa na cara 'porque eu queria ir para longe dela'. Nesse ponto, meu pai me salvou, me apoiando. E foram nesses anos que passei longe que fui criando um senso de identidade. Hoje, busco espaçar meu contato com ela, olhar mais para mim mesma e para a família que eu construí. Tenho uma filha e posso assegurar que o maior medo das filhas de mães narcisistas é perpetuar os comportamentos disfuncionais da mãe. Faço um exercício consciente de criar comportamentos que minha mãe não teve comigo, monitoro minhas falas para sempre focar no desenvolvimento das potencialidades da minha filha. O fato de fazer terapia por muitos anos me permitiu olhar para mim mesma e escolher meu caminho, felizmente."
Mariana*, 37 anos, psicóloga

"A coisa que mais escuto dela é que sou uma fracassada"

"Na infância, minha mãe estava sempre enchendo a gente de presentes caros, mas nunca fazia um almoço em família. Com 13 anos, meus pais já separados, ela me expulsava de casa quase que diariamente; eu ia para a casa da minha tia. Daí, minha mãe aparecia, chorando, pedindo para eu voltar. Isso aconteceu várias vezes. Ela brigava muito comigo e me batia por motivos bestas. Na adolescência, sempre que eu arrumava algum namorado, ela colocava defeito. Dizia que eu não ia conseguir passar na faculdade, que não ia parar em nenhum emprego. Eu cheguei a passar no vestibular, trabalhava o dia todo e estudava à noite. Quando chegava, ela me fazia limpar a casa. Se eu sentasse para assistir televisão, era um inferno! Ela nunca me motivou a fazer nada, pelo contrário, sempre me diminuiu. A coisa que eu mais escuto dela é que sou uma fracassada. Isso afetou muito a minha vida, de modo que sou bastante insegura, com autoestima baixa e até já tive um relacionamento abusivo. Tentei me suicidar algumas vezes, mas minha irmã me salvou. Hoje, ainda moro na edícula da casa dela, mas nunca conseguimos ter uma conversa saudável."
Aparecida*, 23 anos, autônoma

"Ela me deu uma surra de vassoura"

"Minha mãe era uma pessoa classificada como difícil por muita gente. Ela era bem materialista, maldosa, gostava de criar intrigas. Por outro lado, era batalhadora, a típica mãe guerreira, mas muito perfeccionista quando se tratava de trabalho doméstico. Desde muito cedo, eu percebi o tratamento desigual dado a mim e a meu irmão, nove anos mais velho. Na primeira infância, não me lembro muito de sua presença, fui criada pela minha avó paterna, que morava conosco. Minha mãe era doméstica e estava sempre trabalhando. Quando eu tinha uns 8 anos, ela sofreu o primeiro AVC isquêmico, o que a levou a se aposentar e, consequentemente, a passar mais tempo em casa comigo. Aí eu realmente comecei a ter um contato tóxico com a minha mãe narcisista. Logo nas primeiras semanas em casa, ela me deu uma surra de vassoura, porque mandou que eu varresse o quintal e não ficou do jeito que ela queria. Eu demorei para aprender a lidar com ela, tinha muito medo. Mas a adolescência foi a pior parte. Tive depressão aos 12 e ela sempre falava mal de mim para os outros e aquilo me entristecia. Na fase adulta, já formada, fui morar com meu ex-namorado, permanecemos juntos por 10 anos e minha relação com ela melhorou muito por causa da distância. Mas isso foi só até eu retornar para a casa dela, quando meu casamento acabou. Aos 26 anos, eu morria de medo de passar uma noite fora de casa. Evitava namoros. Iniciei a terapia nessa fase e, então, consegui sair de casa definitivamente. No ano passado, minha mãe faleceu, em 2017. Na verdade, eu a amava, o que havia muito em mim era mágoa. Mágoa de não ter tido uma mãe companheira, presente, amiga. Quando ela ficou hospitalizada, em coma, por seis meses, eu a acompanhei o tempo todo. E ali foi a nossa redenção. Eu a perdoei e me libertei da culpa. Sigo fazendo terapia e curando uma partezinha de mim todos os dias, nos grupos de apoio de filhas de mães narcisistas."
Núbia*, 30 anos, advogada

Especialista explica o transtorno

A síndrome da genitora tóxica está ligada à maternidade compulsória, na qual a gestação e a chegada dos filhos são fruto da vontade de terceiros ou, ainda, encarados como uma obrigação social. A mãe, nessa situação, vê os filhos como um fardo, os responsáveis por toda angústia e frustração que tem pela vida. Os sinais do problema costumam aparecem nos primeiros anos de vida da criança, com características de superproteção ou negligência total.

Na adolescência, os filhos já conseguem ter mais clareza sobre a total falta de afetividade da mãe. "Filhos de genitoras tóxicas crescem em um ambiente de abandono, onde seus direitos muitas vezes são violados. Eles se sentem intimidados por aquela que deveria preservá-los", explica a psicóloga Ana Gabriela Costa.

A especialista explica que é como se os filhos se tornassem reféns de sua própria família. "Os sentimentos de hostilidade e repugnância são comuns na genitora tóxica, assim com as atitudes de desvalorização do filho", afirma Ana.

Quem convive com uma mãe assim precisa buscar tratamento, até para não repetir esse mesmo ciclo com o próprio filho. Aspectos de ansiedade e depressão oriundos da falta de amor materno também precisam ser ressignificados.

"Na terapia, mostramos que o paciente terá condições de se automaternar, ou seja, ser complacente, acolhedor e empático para com ele mesmo. Ele deverá suprir as expectativas não realizadas por essa mãe. É preciso desmistificar o conceito de que toda mãe é boa. Algumas, de fato, são. Outras, não", esclarece a psicóloga Erika Ribeiro.