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"Dispensei um homem, ele se matou e fui chamada de assassina por isso"

Arquivo Pessoal
Imagem: Arquivo Pessoal

Marcelo Testoni

Colaboração para Universa

09/04/2019 04h00

Quando adolescente, Leonidia Rodrigues, 95, resistiu aos assédios frequentes de um vizinho, que, inconformado por ter sido dispensado por ela, cometeu suicídio e deixou uma carta responsabilizando-a. Se não bastasse a acusação injusta, Léo ficou com fama de assassina na cidade onde morava, Araçatuba, no interior paulista, e com o emocional fragilizado acabou engatando relacionamentos tóxicos, que lhe renderam enormes desafios pela frente: o de criar duas filhas como mãe solo e ainda driblar o preconceito existente na década de 1950.

"Fui uma garota muita bonita, mas a verdade é que a beleza também me trouxe problemas. Quando tinha uns 15 anos, comecei a namorar um filho de fazendeiro que estudava na minha cidade e despertei ciúme em um vizinho, que era jovem como o outro e gostava de mim.

Leonidia Rodrigues - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Léo, por resistir ao assédio de um vizinho, que se suicidou, ganhou fama 'assassina' na cidade de interior onde morava
Imagem: Arquivo Pessoal

Um dia, a caminho de casa, encontrei o tal vizinho, que, como de costume, não podia me ver sozinha que corria atrás de mim, me cantando e puxando conversa fiada. Estávamos nós dois andando lado a lado, quando meu namorado apareceu na nossa frente com um presente para mim e ficou possesso com a situação. Já dá para ter uma ideia do que aconteceu. Os dois rapazes discutiram, se ameaçaram com direito a revólver empunhado e, como resultado, não só perdi o namorado, como vi o outro sair dali transtornado, soltando ameaças.

Cheguei em casa nervosa e de noite sonhei que o vizinho havia morrido. Na manhã seguinte, levantei com um mau pressentimento e, ao passar por sua casa, descobri que ele havia se suicidado após ingerir formicida. Ao lado do corpo, que estava com os cabelos até desbotados, encontraram uma carta escrita por ele me acusando como responsável. Entrei em choque, ainda mais quando nos dias seguintes as pessoas da cidade passaram a me apontar o dedo e a falar coisas horrorosas. Eu, chamada de 'assassina' por não querer nada com ele? Na época, ninguém falava sobre assédio, mas eu sabia que não tinha feito nada de errado. Aquilo me fez tão mal que, por um tempo, me mantive reclusa, sem sair de casa, até a situação se acalmar.

Emocional fragilizado e relacionamentos tóxicos

Leonilda - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Imagem: Arquivo Pessoal

Nos anos seguintes, ainda fragilizada por conta do que havia passado e querendo recomeçar minha vida com alguém, acabei me envolvendo com um herdeiro de família rica que não queria nada sério comigo. Eu, ingênua, amava-o e cheguei a esperá-lo várias vezes na porta de casa para namorarmos, mesmo sabendo que antes de me encontrar ele estava na farra com outras. Pensava que depois de casarmos as coisas mudariam, mas não. Engravidei dele, mas sua família não nos quis juntos e o mandaram para fora do país. Eu, que já tinha uma má reputação pela morte do vizinho, acabei não me casando e ainda virei mãe solteira. Diziam: 'nossa, coitada'.

Sem saída, acabei me mudando com minha filha pequena para São Paulo em 1950, onde conheci um aviador e passei a morar com ele em um hotel no centro da cidade. Ele queria se casar comigo no Uruguai, pois legalmente ainda era casado com sua primeira esposa, embora vivessem separados. Vivi essa relação por dois anos, quando grávida de minha segunda filha descobri que ele me traia. Além de ser alertada pelo gerente do hotel, cheguei a encontrar sinais, como os lenços que usava na neném sujos de batom. Desgostosa, acabei me mudando para a casa de minha mãe, que por sorte também veio morar em São Paulo com meus irmãos.

Visão moderna garantiu um recomeço

Leonilda - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Imagem: Arquivo Pessoal

Minha segunda filha nasceu em 1955, e as pessoas nessa época tinham uma mentalidade de que mãe não podia sair para se divertir, que o lugar delas era trancada em casa limpando e fazendo o almoço. Contrariei as regras e fui viver o que São Paulo, em sua era de ouro, tinha a oferecer. Frequentei os antigos cinemas da capital, assim como cassinos, restaurantes e bailes de carnaval. Foi com essa visão moderna que a vida me deu uma nova oportunidade. Em uma festa junina, acabei conhecendo o homem que viria a se tornar meu marido e, detalhe, ele era dez anos mais jovem do que eu. Aos 27 anos, se casou comigo e assumiu a paternidade da minha então filha mais nova. Teve uma verdadeira atitude de pai. Porém, quem não gostou nada da ideia foram os meus sogros e a família dele, que me trocariam fácil por uma pretendente jovem, virgem e sem filhos.

Eu percebia, nas atitudes e comentários deles, que me desaprovavam por tudo o que havia vivido. 'Você vai se casar com essa mulher que já tem duas filhas, o que você espera do futuro', um dia meu marido me confidenciou. Mas ele não se importava e juntos tivemos mais duas meninas. Quando nos mudamos para nosso primeiro apartamento, uma de minhas cunhadas chegou até mesmo a levar uma ex-namorada do meu marido 'disfarçada' de diarista para, no meu entendimento, tentar provocar nele alguma recaída ou descobrir algum podre meu, o que não aconteceu, pois ele não sentia mais nada por ela e eu também nunca tive nada a esconder. Fui descobrir essa armação e a identidade da moça nos anos seguintes, por acaso.

Depois desses muitos desafios, uma depressão e até síndrome do pânico, com o tempo, meu relacionamento com a família do meu marido acabou melhorando. Todos perceberam que não era por eu ter tido duas filhas de pais diferentes que eu era uma má pessoa e não merecia ter uma família. A vida toma muitos caminhos, alguns sem nem mesmo a gente querer, e o que nos resta é extrair uma lição disso tudo. O que passei me fez tornar uma mãe, avó e, agora bisavó, não menos preocupada, mas mais compreensiva, amiga e aberta às diferenças (que são muitas) dentro de minha própria família".