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"Tinha certeza que era autista, mas os médicos só me diagnosticaram aos 34"

Arquivo Pessoal
Imagem: Arquivo Pessoal

Manuela Aquino

Colaboração para Universa

01/04/2019 04h00

A pedagoga Rita Louzeiro, de 34 anos, de Brasília, carregou a vida toda um sentimento de inadequação. Nunca teve muitos amigos, sempre preferiu ficar sozinha a socializar. Achava a escola muito barulhenta, tinha rompantes e fugia da classe. Certos tecidos a incomodavam e ela nunca usava peças de roupa justa, como uma legging.

Diante da ansiedade que sentia, desenvolveu mecanismos para ficar aliviada como andar de um lado para o outro sem parar. Até hoje, ao enfrentar algum estresse mais pesado, seu corpo inteiro pode travar. Mesmo assim, diante de todos esses sinais, o diagnóstico de autismo só veio em novembro do ano passado. "Fui a diversos psiquiatras e psicólogos que, diante da minha desconfiança, diziam que não podia ser", conta. Ela ouviu frases do tipo "você veio de carro, mora sozinha, é independente, não é autista". Mas Rita insistiu pois sabia do que estava falando. Afinal, seu irmão cinco anos mais novo tem um quadro severo e ela estudou muito sobre sintomas e tratamentos para ajudá-lo.

"Isso é coisa de meninos"

Demorar para ter a confirmação pode acontecer com muitas mulheres, pois "isso é coisa de meninos". "A proporção é de 5 deles para uma menina diagnosticada dentro do Transtorno do Espectro Autista", diz Daniela Bordini, psiquiatra infantil, coordenadora do ambulatório de autismo TEAMM, da Universidade Federal de São Paulo. Uma explicação pode estar na genética. "Há algumas hipóteses não-exclusivas, mas é possível que seja mesmo multifatorial. Uma dessas ideias vem da genética pois estão no cromossomo X. Meninos possuem apenas uma cópia, portanto apenas uma cópia desses genes, deixando-os mais vulnerárveis. Outras questões envolvem fatores ambientais, como hormônios, e mesmo sociais como aprendizado e camuflagem dos sintomas.", diz o médico pesquisador Allyson Mutori, professor da Faculdade de Medicina da Universidade da Califórnia em San Diego.

O diagnóstico que coloca uma pessoa dentro do espectro depende de uma combinação de fatores como déficit de sociabilidade e comunicação, além de interesses restritos e padronizados. Os critérios para ambos os sexos são iguais mas com o foco no masculino e diante de sintomas leves, muitos médicos nem encaminham a um especialista. "Quem não é especializado pode não perceber as sutilezas do quadro e achar, em um caso leve, que ela é tímida, envergonhada", fala Daniela. No caso de Rita, a luz só acendeu porque foi buscar conhecimento sobre o que afetava o irmão. Para lutar pelos direitos dela, dele e dos seus se tornou ativista e divide com Universa sua história.

"Comecei a desconfiar que tinha autismo pois me destacava das outras meninas. Não compartilhava os mesmos interesses, não fazia amizade e não me vestia como elas. Alguns tipos de tecido e as roupas justas me incomodavam muito, só usava camisetas e calças largas, de skatista, e sofria bullying por isso. Sempre achei a escola um lugar muito barulhento, às vezes me escondia no banheiro para ficar quieta ou saía da sala de aula do nada e só me dava conta quando estava no corredor. Suportei bem e fui boa aluna. Passei por cima de tudo mas meu olhar estava atendo aos sintomas pois meu irmão caçula (sou cinco anos mais velha) foi diagnosticado cedo.

Nasci em Planaltina de Goiás e moro em Planaltina do Distrito Federal desde 1984. Tive uma infância bem feliz e tranquila. Minha mãe, Eva Barreira Louzeiro, costureira, de 66 anos, recebeu o diagnóstico do Sérgio, quando ele tinha três. Já dava para perceber desde que ele era bebê, pois é um caso clássico. Foi difícil pois o único apoio do governo sempre foi somente para as consultas e remédios. Não tivemos acesso à terapia ocupacional ou fonoaudilogia. Hoje, aos 28 anos, como um autista severo, Sérgio precisa de muito apoio: ajuda para comer, tomar banho...

Com a assinatura do médico

Cursei Pedagogia na Univeridade de Brasília e foi tudo bem pois eu nem precisava me socializar, já que fazia as matérias cada hora em uma sala. Minha ficha caiu de verdade quando comecei a ter dificuldades no trabalho. Em 2011 comecei a trabalhar no Ministério da Saúde em uma equipe de 60 pessoas. Ali ficou nítido para mim que eu não entendia indiretas, figuras de linguagem, muito menos piadas. Mais um sinal. Falava sem pensar tudo o que vinha na cabeça e isso gerava reações negativas, claro. Aí, diante da falta de uma confirmação oficial, já que nenhum médico pelo qual passei desconfiou de nada, nem levou a sério meus relatos, me 'autodiagnostiquei' aos 27 anos.

Tive um laudo oficial em novembro do ano passado. Fiz uma consulta em maio de 2018 com um clínico geral pois andava exausta. Ele sugeriu que poderia ser ansiedade ou Transtorno de Déficit de Atenção. Só consegui ver o psiquiatra seis meses depois. Já cheguei contando que tinha certeza do que era. Ele fez um monte de perguntas e falou que eu era asperger. Desde então, faço sessões de terapia.

Rita Louzeiro - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Imagem: Arquivo Pessoal

Dia a dia de luta

Moro sozinha desde 2012 para ficar perto do trabalho. Amo minha vida, mesmo tendo uma rotina tão diferente dos outros. Trabalho com horário e salário reduzidos para poder ir todo dia até a casa da minha mãe ajudar a cuidar do meu irmão. Faço a viagem de Brasília até Planaltina para realizar meu projeto pedagógico com o Sérgio e trabalhar a autonomia dele. Amo de paixão meu irmão, é a melhor pessoa do mundo. Às vezes ele se bate, se morde e depois da crise tento fazê-lo entender o que aconteceu e ele já compreende mais o que o fez perder o controle.

Ativismo das redes para fora

Assim que comecei a ter acesso à internet, passei a frenquentar grupos de discussão e fóruns sobre autismo. Perguntava aos participantes sobre medicamentos, como cuidar... Percebi que não concordava com muita coisa que os familiares diziam. Muitos pais, por exemplo, davam dicas de como tirar os stims das crianças mas esses movimentos (como andar de um lado para o outro, pular ou balançar as mãos) acalmam e aliviam a ansiedade. Comecei a postar textos em meu perfil do Facebook para provocar discussão e, em 2012, criei a página Primavera Autista. Passei a criticar termos que a sociedade usa como 'anjos azuis' para se referir a quem está no espectro. Acho que só serve para esteriotipar. Anjo não tem sexo, não tem idade e azul é cor de menino. É um eufemismo desnecessário. O fato de muitas muitas pessoas falarem que foram as escolhidas por Deus para cuidar desses anjos, coloca um peso na existência.

Através dessa rede passei a me comunicar com outros autistas adultos e passamos a formar um movimento para tirar o protagonismo das mães e dos profissionais, que muitas vezes sabem o que está nos livros. Comecei, por exemplo, a ser chamada para dar palestras e falar audiências públicas. Também participo das ações e desenvolvimento das campanhas anuais da Associação Brasileira para Ação por Direitos da Pessoa com Autismo, que luta pela neurodiversidade. Sou tesoureira do Coletivo de Mulheres com Deficiência do Distrito Federal onde estamos desenvolvendo projetos para geração de renda. O lema das pessoas com deficiência é 'Nada sobre nós sem nós' e só a partir do momento em que formos ouvidos haverá mudanças. Queremos fazer parte das políticas públicas e chegar na fase em que os autistas não oralizados, como meu irmão, também possam ter voz e participação política."