Topo

Ela criou ONG após agressão do ex: "Hoje sou a vizinha que mete a colher"

Adda Torres fundou ONG para ajudar mulheres vítimas de violência - Arquivo pessoal
Adda Torres fundou ONG para ajudar mulheres vítimas de violência Imagem: Arquivo pessoal

Camila Brandalise

Da Universa

27/03/2019 04h00

A brasiliense Adda Torres, 35, foi vítima de uma tentativa de feminicídio aos 23 anos, quando seu então marido tentou matá-la com uma faca. "Estávamos discutindo, porque ele estava com ciúme de uma roupa minha. Ele veio por trás de mim e tentou me esfaquear. Eu consegui me desvencilhar, mas ele ainda cortou o meu braço", conta Adda.

O episódio foi o ápice da violência doméstica sofrida por Adda; as agressões ocorriam havia dois anos. Eram muitas as discussões que terminavam com tapas, socos e empurrões. Ela registrou tantos boletins de ocorrência que até "perdeu a conta". Após a separação, foi morar numa casa na região administrativa de Ceilândia, também no Distrito Federal, para se esconder do ex-marido.

Depois que ele saiu do apartamento em que haviam vivido juntos, Adda voltou para lá, e passou a morar sozinha. E logo começou a receber visitas de mulheres, vizinhas, que queriam ajuda para sair de casamentos em que apanhavam. Esse trabalho cresceu, ela organizou um grupo de voluntários, criou uma ONG, montou parcerias com a prefeitura do Distrito Federal e hoje dá palestras sobre como orientar mulheres em situação de agressão, além de atendê-las presencialmente para passar orientações.


Leia, abaixo, a história de Adda:


"Conheci meu ex-marido aos 14 anos. Aos 21, fomos morar juntos, e ele começou a me controlar. Primeiro só falava; reclamava da minha roupa e do batom. Um dia, reclamou da minha maquiagem e jogou um copo de água na minha cara. A partir daí, as agressões só pioraram.

Apanhei por dois anos consecutivos. Eram tapas, socos, empurrões. Eu ia direto à delegacia para denunciá-lo. Perdi a conta dos boletins de ocorrência que registrei. Mas logo depois de fazer a denúncia eu pedia para retirá-la. É aquela coisa, eu gostava dele, achava que ele ia mudar. Era meu primeiro amor, pai do meu filho. Eu me enganava.

Até que percebi que só eu era capaz de resolver aquela situação, ninguém ia fazer aquilo por mim. E que ele não ia mudar. Foi no dia que ele tentou me matar. A gente estava na cozinha e ele veio por trás de mim para me atacar com uma faca. Tentou duas vezes e me atingiu uma, fazendo um corte no braço. Consegui me proteger e escapei. A discussão, de algum modo, acabou depois do ataque. Lembro de dizer para mim mesma: 'Você precisa tomar uma atitude'.

Decidi me mudar para uma casa que minha mãe havia comprado em um bairro rural do DF. Fiquei lá por três meses. Precisava fugir do meu marido e queria me esconder. Em brigas anteriores, eu até tentei ir para a casa da minha mãe quando a gente brigava, mas ela ficava dizendo que eu tinha que voltar para o meu marido.

Depois desse tempo, ele saiu da nossa casa e voltei a viver lá. Soube que foi morar na rua e até o ajudei numa época levando roupa. Mas nos afastamos e me contaram que ele foi morto em uma briga.

Comecei a receber visitas de vizinhas na minha casa, me procurando para pedir ajuda. Diziam que viviam a mesma situação de violência que eu e queriam saber o que eu havia feito e pedir conselhos.

Eu dizia que, se eu havia conseguido me salvar das facadas, elas também conseguiriam. Falava: 'Tomei uma atitude, você também pode tomar'. De tanto receber pedidos de ajuda, achei que poderia ser útil criar uma ONG. E em 2006, fundei a organização Mulheres de Atitude.

O síndico do prédio me cedeu uma sala dentro do condomínio para que eu use como local de atendimento para mulheres. Criei uma rede de voluntários, com psicólogos e advogados que se dispõem a dar orientações. Organizamos bazares de artesanato para arrecadar dinheiro e pagar internet e telefone.

O primeiro contato que as mulheres fazem é por telefone. Meu número está disponível nas páginas da ONG na internet. Depois dessa conversa, elas vêm me encontrar, e digo o que elas podem fazer, dependendo do caso: se precisam ir à delegacia, como pedir o divórcio, como usar a lei para se proteger de futuras agressões.

"Entrei na casa de uma vizinha que estava quase apanhando e a levei pra minha casa"

Fiquei conhecida no bairro por esse trabalho. Em briga de marido e mulher tem que ter uma vizinha para meter a colher. Eu sou essa vizinha. Uma vez, soube de uma mulher nas redondezas que estava sendo agredida pelo marido. A gente a via com roxos no corpo. Um dia, ouvi os gritos, vi que a casa estava aberta e entrei. O marido estava quebrando tudo e ameaçando agredi-la.

Eu a tirei de casa e a levei para a ONG, no meu prédio. Chamei a polícia, ela registrou a denúncia e pediu uma medida protetiva. A justiça o obrigou a sair de casa. Um dia, eu o vi rondando a ONG. Fiquei com medo; e se ele estivesse armado? Mas ele pediu para falar comigo.

Eu recebi o homem. E ele começou a chorar. Disse que o casamento não estava dando certo, que ela soube de uma traição dele e quebrou o vidro do carro. OUvi tudo e disse que nada era motivo para bater nela. No final, aconselhei que eles se separassem.


"O pastor disse que se eu tivesse ido para igreja, não teria apanhado"

Uma das coisas que mais me doeu foi não ter tido ajuda de um pastor da igreja que eu frequentava. Estava havia alguns dias sem ir aos cultos, e ele foi na nossa casa saber o que estava acontecendo. E chegou logo depois de uma briga. Tinha panelas no chão e comida na parede.

Ele disse: "Você tinha que ter ido para a igreja. Se tivesse ido, tudo ia ter mudado". Fiquei muito triste. Mudei de igreja, mas ouvi de uma pastora do novo lugar que eu estava 'parecendo uma periguete' com as roupas que usava. Mudei novamente de congregação.

Hoje, dez anos depois desses fatos, estou em um casamento com um homem que me respeita e estou feliz. Consegui refazer minha vida. Penso em escrever um livro para contar minha história e mostrar para mulheres que viveram o mesmo que eu que dá, sim, para deixar um relacionamento para trás e construir outra vida. Minha luta não é só para que as mulheres consigam tomar a atitude de mudar sua própria situação.