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Barbara Gancia e o álcool: porre aos 3 anos, pó e mico com Roberto Carlos

Barbara Gancia lançou o livro "A Saideira", em que conta sua trajetória na luta contra o alcoolismo - Divulgação/Arte UOL
Barbara Gancia lançou o livro "A Saideira", em que conta sua trajetória na luta contra o alcoolismo Imagem: Divulgação/Arte UOL

Talyta Vespa

Da Universa

15/11/2018 04h00

Foram trinta anos de vício e três internações em clínicas de recuperação para que a jornalista Barbara Gancia conseguisse se livrar do álcool — na última delas, a viagem para a rehab que deveria durar duas horas, levou uma tarde e uma noite quase toda porque ela bebeu “todo o álcool existente entre a minha casa e a clínica”.

Em seu recente livro “A Saideira”, Barbara, que já trabalhou em veículos como Folha de S.Paulo, UOL e Bandeirantes – e foi demitida de vários deles por causa de problemas relacionados ao seu temperamento escrachado e ao vício – conta detalhes muitos tristes de três décadas de uísque (quase duas garrafas por dia), cigarro e cocaína. Aos 61 anos e há 11 sóbria, graças ao apreço diligente aos 12 passos do AA e ao amor pela namorada, Barbara relata, por exemplo, a perda da visão de um olho, durante um acidente de carro em que estava bêbada. “Ter dois bares no nome é uma puta ironia”, diz.

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Aos três anos, você tomou o primeiro porre, depois de beber vários copos de cerveja em uma festa de família. Depois, aos seis, o segundo, com bombons de licor. Aos nove, num churrasco de seu pai, veio o terceiro: de poncho. Dessa vez, te encontraram à noite, deitada numa estrada, “vendo as estrelas”. Dada essa precocidade, acha que seu alcoolismo tem explicação genética?
Sim. As condições para que uma pessoa se torne alcoólatra são três: metabolismo, genética e meio social em que vive. Sou mulher, tenho mais gordura no corpo e essa característica faz com que o álcool não seja metabolizado logo, nos deixando bêbadas mais rapidamente. Além disso, vivi em um ambiente favorável ao alcoolismo: meus pais foram muito liberais, sou a caçula, fui mimada, e a única dos três filhos criada quando a falta de grana não era um problema (os pais de Barbara eram italianos, na maior parte da vida, ricos; seu pai pilotava carros de corrida, vendia Alfa-Romeos, Ferraris e Lamborghinis). Estudei em uma escola inglesa em que os alunos bebiam cerveja, todos os adultos sabiam, mas ninguém alertava sobre os riscos. Tenho dois “bar" no nome, né? Além de um sobrenome de bebida; Gancia é uma marca de espumante criada na Itália pelo meu bisavô.

Você sofreu um acidente de carro que a fez perder a visão de um olho (Barbara conta que gostava de dirigir à noite, bêbada, à toda velocidade, sem respeitar os faróis), já acordou em uma poça de sangue com a cabeça aberta e vestida em uma cueca cujo dono, não se lembrava quem era. Algum arrependimento?
Vários. Muitos deles não contei porque sinto vergonha e, por eles, não me perdoo. Quando estava bêbada, era capaz de dar até para uma banana; ficava desinibida, com tesão. Acordava com um cara do meu lado, virado de bunda para mim, e pensava: “Não vou levantar para ver quem é, preciso lembrar”. Nunca lembrava. Eu era irresponsável, transava sem camisinha. Fiz sexo com vários homens, mas, hoje, só faço com mulheres. Digo, com a minha mulher (ela é casada há nove anos com a empresária Marcela, filha do advogado criminalista Márcio Thomaz Bastos, falecido em 2014).

Por que escolheu o uísque para te acompanhar nesses 30 anos?
Pelo barato que dava. Nunca gostei do sabor da bebida; eu bebia para ficar chumbada. Com o uísque, era rápido, e eu misturava com refrigerante ou água tônica. Por sorte, nunca me interessei por gin. Se tivesse, já estaria morta. O teor alcoólico dele é muito alto e facilmente absorvido pelo organismo.

No livro, você conta que, alcoolizada, colocou uma caneta no ouvido do então prefeito Mario Covas; num show de Roberto Carlos gritou para ele: “Perneta FDP! Tirano, filho de uma égua (porque ele havia proibido a comercialização de sua biografia); e numa entrevista a Jô Soares, ele revelou que você costumava escrever atrás de cheques “TB” – que queria dizer tô bêbada). Seus pais deviam sofrer muito com esses constrangimentos, não?
Muito. Um dia, participei de um programa de TV, e minha mãe me ligou perguntando: “Você está bêbada, né?”. Eu não estava. Aquilo me chateou muito, eu estava presa ao estigma. Meus pais foram os que mais sofreram com a minha dependência. Eles se culpavam. Meu pai morreu em 2007, depois de viver dez anos com Alzheimer. Minha mãe morreu depois e, felizmente, orgulhosa de mim, porque na época eu já tinha parado de beber. Eu não tive filhos porque sabia que a bebida seria um problema.

Como funciona a vida sóbria de um alcoólatra?
Tenho uma doença que sei que é progressiva, incurável e mortal. A progressão é comparada a uma vela nova, apagada. Ela representa o momento em que alguém começa a beber. À medida que ela vai bebendo, a vela vai queimando. Se parar, deixa de queimar. Mas, se voltar, mesmo após ter ficado décadas sem ingerir álcool, ela continuará queimando de onde parou. Isso quer dizer que a pessoa volta beber a quantidade de onde parou. O corpo não se renova porque as células estão gravadas com a memória alcoólica. O álcool não permite que o organismo produza os hormônios da felicidade -- serotonina, dopamina e oxitocina. Por isso, a euforia fica dependente da bebida. Quando você larga o álcool, o corpo pode demorar anos para voltar a produzir essas substâncias, e vem daí a angústia da abstinência. Mas é uma questão de tempo: quando volta, é um alívio grande e a sensação de desespero acaba.

Você pode tomar uma cerveja?
Não. O maior risco da sobriedade é esquecer o alcoolismo. Você pensa: “estou bem, vou tomar só uma cervejinha, já que estou há décadas sem beber”. Esse é o erro crucial. Uma dose faz com que você perca tudo o que conquistou. Eu estou sóbria. Mas não posso falar que é para sempre. É só por hoje.

É impressionante saber que você tomava uma garrafa de uísque antes do almoço, e outra, quase inteira, depois, fumava ao menos dois maços de cigarro por dia e ainda cheirava cocaína. É quase um milagre ter conseguido largar tudo, não?
Sim. O cigarro, larguei com o pé nas costas, já que ele não envolve a conjuntura social de happy hours da bebida. Com o álcool, tem o bar, os amigos, a maluquice em volta e a exaltação da sua maluquice. Hoje, meu happy hour é num café em Pinheiros, em São Paulo: bebo um macchiato e como um croissant de presunto e queijo emmental. A cocaína só fez parte dos meus últimos oito anos bebendo. Eu usava porque não conseguia mais ficar sóbria. Para ter o barato da bebida, eu precisava beber tanto, que não aguentava ficar de pé. Aí entrava a cocaína, que me deixava sóbria. Ainda bem que nunca cheguei nem perto de ficar viciada.

Por que você participa das reuniões dos Narcóticos Anônimos e não dos Alcoólicos Anônimos, se não é viciada em drogas?
Porque eles falam a língua dos jovens. Lá, encontro de tudo: gente que teve perda cerebral por causa da droga, gente que mora na favela e até filhos de algumas das famílias mais tchuns de São Paulo. São histórias diferentes. No Alcoólicos Anônimos, só tem velho chato. Já frequentei de tudo, inclusive as reuniões de AA só para mulheres -- e sempre as recomendo para as minas que estão em busca de tratamento. Nas reuniões mistas, há muitos homens que se aproveitam da fragilidade das pacientes para tentar trepar com elas. O alcoolismo é muito democrático: atinge inteligentes, burros, ricos, pobres, cultos e incultos. Por sorte, o álcool não me deixou cicatrizes em órgãos vitais, e nem a cocaína. Só problemas emocionais. Se você me vir dirigindo, vai achar que estou completamente alterada, mas não estou. Eu sou agitada porque bombardeei meu sistema imunológico com bebida, droga e cigarro por muito tempo. Não tenho problema grave no fígado e nos pulmões, mas tenho refluxo e uma lesão no esôfago.

Você tem uma lista de demissões provocadas pela bebida. A sua saída da GNT foi pelo mesmo motivo?
Nunca fui demitida porque bebia, mas porque fazia merda, sóbria ou não. Saí da Folha de S.Paulo quando fiz uma brincadeira infeliz com o Boris Casoy (que ela não quis contar qual foi); do UOL, porque falei merda (ela tinha um programa ao vivo e o apresentava, muitas vezes, bêbada). Eu não saí do GNT (ela continua fazendo reportagens para o programa “Saia Justa”) e não aguento mais ouvir boatos de que fui afastada por uma suposta briga com a Maria (Ribeiro, outras das apresentadoras do programa). Claro que já brigamos, todo mundo briga no Saia. A demissão dela foi uma sacanagem, mas não teve a ver com a gente. Sempre que surgem boatos, meu nome está envolvido, é impressionante. Minha analista dizia que é por causa do meu histórico: vão falar, independentemente de eu fazer algo ou não.

Quais são os sentimentos mais marcantes da sua abstinência?
Meu corpo demorou quase dois anos para voltar a produzir os hormônios da felicidade, e foi aí que me reconheci sóbria. Culpa, vergonha e humilhação prevaleceram ao longo da minha vida e caracterizavam todas as minhas abstinências. Ainda não me livrei desses sentimentos. Agora que escrevi o livro, estou começando a me desculpar. Eu magoei minha família, perdi amizades, agredi pessoas. Não me orgulho nem um pouquinho. Se eu pudesse escolher, não seria essa pessoa. A única coisa que me dá orgulho na vida é ter conseguido sair fora.