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Mulheres são humilhadas na delegacia ao registrar queixa contra agressores

Ana Paula: "o delegado disse que eu estava errada" - Arquivo pessoal
Ana Paula: "o delegado disse que eu estava errada" Imagem: Arquivo pessoal

Roseane Santos

Colaboração para Universa

30/09/2018 04h00

Apesar do incentivo de muitas campanhas, nem sempre denunciar a violência contra a mulher é uma tarefa fácil. Algumas vezes, as vítimas não são bem recebidas justamente no lugar onde deveriam ser acolhidas. Esse foi o caso de três mulheres que entrevistamos, que sofreram preconceito em delegacias quando resolveram denunciar seus ex-companheiros.

Inspetor "camarada"

"Logo que me separei, o meu ex começou a mandar muitas mensagens agressivas, que me deixavam psicologicamente abalada. Resolvi dar queixa em uma delegacia de mulheres próxima da minha casa, no Rio de Janeiro. Fui atendida por um inspetor que disse que o meu caso não se enquadraria em violência. Eu também não poderia entrar com uma medida protetiva, pois as agressões não eram físicas.

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Ele falou que uma denúncia em delegacia é para casos sérios. Argumentei, dizendo que fui torturada psicologicamente desde a gravidez, mas ele ignorou. Ainda, acrescentou que ele (o próprio inspetor) também é de temperamento parecido com o do meu ex-companheiro e que quando "pisavam no calo dele", respondia à altura. Disse que quando um homem é "cutucado com vara curta" age assim mesmo, que é normal ter um comportamento deste tipo. Não sei de onde ele tirou que eu provoquei aquela situação.

Eu mesma tive de reler os e-mails com vários xingamentos e acusações fora de cabimento, mas ele não se comoveu. O que mais me impressionou foi saber que esse inspetor ligou para o meu ex e o aconselhou a não escrever mais, prevenindo que eu poderia prejudicá-lo e usar esses e-mails contra ele. Parecia que o inspetor estava muito mais preocupado em proteger o meu ex do que me ajudar. Só consegui registrar a queixa porque meu advogado ligou para lá e conseguiu que eu fosse atendida por uma mulher."

Elaine Souza, assistente social, 41 anos.

"O delegado gritou"

Christiane apanhou do namorado e não foi acolhida na delegacia - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Christiane apanhou do namorado e não foi acolhida na delegacia
Imagem: Arquivo pessoal

"A primeira vez que chamei a polícia, a agressão ainda não tinha acontecido. O meu ex-namorado estava bêbado e já tinha quebrado muitas coisas na minha casa. Estava justamente querendo evitar a agressão. O policial chamou atenção dele, mas, na época, ele tinha a chave da minha casa. Falei três vezes isso para o PM e ele não deu importância. Não deu outra, depois de meia hora que a polícia foi embora, ele voltou. E aí sim me agrediu fisicamente.

Chamei a polícia de novo e nos encaminharam para uma delegacia em uma viatura. Ele entrou em luta corporal com os policiais e, quando chegamos, a delegacia estava muito cheia. Ele chamava atenção, porque estava com o olho machucado e com a camisa suja de sangue. Quando o delegado viu, gritou: "Eu não acredito que em pleno sábado, com a delegacia cheia, eu vou ficar tratando de briga de casal. Manda esses dois para o hospital". E lá fomos nós de novo para a viatura, ele algemado do meu lado brigando o tempo todo. Chegando ao hospital, ele fez o maior escândalo, me xingou muito e falava que eu estava mentindo. Todos pararam para olhar.

Eu estava muito assustada e acho que a mulher quando chega ao ponto de ir a uma delegacia, já está com muito medo. Ela tem que ser tratada com empatia e não ameaçada. Lembro que o delegado falou de forma dura comigo e eu não era culpada por aquela situação. No final da história, o meu ex ficou preso por cinco meses esperando o julgamento. isso porque ele também foi acusado pelos policiais de lesão corporal, resistência a prisão... Como não tive hematomas, porque foram puxões de cabelo e tapas na cara, ele foi absolvido por falta de provas e pagou com serviços sociais apenas pelo que fez com os PMs."

Christine Xavier, jornalista, 33 anos.

"Se fosse minha mulher"

"Eu fui casada durante treze anos. Sou modelo plus size e uma noite tive de acompanhar meu patrão em um evento. O meu ex marido não aceitou, mas eu fui assim mesmo. Ele sabia que fazia parte do meu trabalho e não estava fazendo nada escondido de ninguém. Quando retornei, ele estava alterado, bêbado e me agrediu fisicamente. Fui à delegacia e quando tentei registrar a queixa, o delegado perguntou se realmente eu queria fazer aquilo, mesmo sabendo que eu estava errada. Afinal, eu era casada e sai à noite com o meu chefe.
Eu falei que isso não era motivo para meu marido me bater e foi então que ele falou alto. "Se fosse minha mulher, eu também não deixaria sair com o patrão". Todos que estavam na sala riram de mim. Depois, o delegado ainda disse que não adiantava eu prestar uma queixa, porque já era um casamento de treze anos e logo eu voltaria com ele e apanharia outra vez. Eu sai de lá muito envergonhada. Diferentemente do que ele disse, não voltei para meu ex. Coloquei na cabeça que quem bate uma vez, vai bater sempre. Isso já aconteceu há quase um ano e estou em outro relacionamento."

Ana Paula Lemos, modelo plus size, 30 anos.

Aos olhos da Lei

A Universa procurou esclarecimentos com a advogada especialista em Direito Penal e Processual Penal , Ana Bernal. Ela esclareceu o que a mulher deve saber antes de prestar uma queixa de agressão física ou psicológica.

1. Se houver um crime, deve ser registrado o Boletim de Ocorrência. O policial não pode fazer julgamento ou culpar a vítima. Caso haja recusa, a vítima poderá reclamar na ouvidoria da Policia do respectivo Estado. Dependendo da situação, pode ser considerada prática de crime de prevaricação por parte desse funcionário público, que consiste em retardar, ou deixar de praticar seu ofício.

2. O ideal seria que todas as vítimas de violência doméstica, independentemente de qual fosse a agressão (física, psicológica, patrimonial ou sexual) fossem atendidas por mulheres. Mas nem sempre isso ocorre, pois nem todas as Delegacias tem número suficiente de profissionais para tanto. A mulher que não se sentir confortável pode solicitar ser ouvida por uma policial feminina.

3. O trabalho da polícia é investigar e colher provas, para dar prosseguimento ao Inquérito Policial. O escrivão ou delegada (o) vão fazer diversas perguntas que às vezes podem parecer constrangedoras, para a vítima remexer na sua história. No entanto, isso é necessário para colher provas e para que o agressor possa ser punido. Só isso pode avaliar se há necessidade de medidas protetivas para amparar a vítima das agressões. São elas: a proibição do agressor se aproximar da vitima, ou dos filhos do casal; a saída do agressor de casa; a perda do porte de arma; o direito de a mulher reaver seus bens, entre outras. Se a mulher não se sentir confortável em relatar os detalhes íntimos, pode sim se negar, pois não é obrigada a fazer nada que possa constrangê-la para seguir com a denúncia.

4. A vítima de violência doméstica deve ser mantida em local separado do agressor para dar depoimento, sem que outras pessoas ouçam o que ela relata, Ela deve ser ouvida com respeito por todos os profissionais da Delegacia sem que esses emitam qualquer julgamento. Nenhum policial pode interferir ou tentar fazer a vítima desistir do registro do Boletim de Ocorrência, sob qualquer tipo de alegação.